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Delito de Opinião

A segunda morte de António Feio

Pedro Correia, 10.08.10

 

Conheci António Feio ainda antes de ele se chamar António Feio. Explico melhor: nessa altura todo o País o conhecia por Luisinho. Era assim que se chamava a personagem do miúdo que ele representava naquela que foi a primeira telenovela portuguesa. Muito antes de Vila Faia e de o próprio termo telenovela estar popularizado em Portugal. Era ainda no tempo da TV a preto e branco, no final dos anos 60, e essa telenovela chamava-se Gente Nova. Foi um fenómeno de popularidade nessa época, concorrendo apenas com a série televisiva norte-americana O Fugitivo.

Eu era um miúdo nessa altura, bastante mais novo do que o Luisinho que via no ecrã, adolescente já embora sem perder a cara de garoto que afinal acabaria por conservar durante toda a vida. Mas fazia os possíveis por não perder cada episódio desse “folhetim”, como então eram conhecidas as telenovelas, adaptando o termo clássico popularizado pela imprensa oitocentista.

Sou incapaz de reconstituir hoje pormenores da trama: lembro vagamente que o Luisinho era filho de um casal da classe média. Tinha dois irmãos e era um miúdo irrequieto e desembaraçado. Eventuais complexidades do enredo escapavam obviamente ao meu olhar infantil em busca de modelos e de senhas de identidade. Mas aquilo que recordo bem é do elenco. Já nessa altura tinha o costume de fixar fichas técnicas e fichas artísticas, memorizando os nomes dos actores. Conhecia o David Janssen, protagonista d’ O Fugitivo. E o Don Adams, da série Get Smart. E, claro, a incomparável Elizabeth Montgomery, de Casei com uma Feiticeira. Mas o elenco daquela irrepetível Gente Nova era o primeiro conjunto de actores portugueses que me atraía a atenção. Actores como Rui de Carvalho e Helena Félix, que interpretavam os pais do Luisinho. A loira Leonor Poeira, a morena Henriqueta Maia. O Carlos Queirós – não o seleccionador de futebol, mas o irmão de Florbela Queirós, que viria a radicar-se nos EUA. E, claro, o Luisinho/António Feio, que rapidamente se tornou um dos rostos mais conhecidos do País. Tão depressa o víamos na TV como nas capas das revistas (da Flama à Plateia, do Século Ilustrado à Rádio e Televisão) ou em vistosos cartazes publicitários (lembro-me dele num anúncio de Fosgluten, um “fortificante da memória”).

 

Sabia-o muito doente. Era, aliás, impossível não saber: as publicações mais vampirescas da nossa praça iam dando nota, em parangonas sem qualquer resquício de pudor, da “evolução do cancro” deste actor que tanto fez rir os portugueses sem recorrer à ordinarice nem ao trocadilho fácil. Há pouco mais de um mês vi-o ser entrevistado pela Fátima Lopes na televisão: bastou ver o seu rosto, ouvir a sua fala já arrastada e algo hesitante, reparar naquele olhar que parecia já despojado da centelha da vida para se perceber cruamente que o fim estava próximo. Chegou agora, mais cedo do que muitos esperavam – a morte chega sempre cedo de mais. Os vampiros com carteira profissional de jornalista têm de procurar novos alvos: certamente não lhes faltarão motivos para novas capas que reduzam a estilhaços o direito à privacidade, garantido pela Constituição da República Portuguesa mas diariamente violado com total impunidade.

 

A RTP, que tornou António Feio familiar aos portugueses, tem um canal Memória que bem poderia voltar agora a exibir aquele “folhetim” que nunca mais revi.

Será talvez pedir demasiado à televisão pública: aposto que a primeira telenovela portuguesa já não consta do arquivo da RTP. De uma televisão que foi capaz de apagar grande parte das gravações do histórico Zip Zip e todos os registos do inesquecível concurso A Visita da Cornélia podemos sempre esperar o pior em matéria de conservação e gestão de arquivos. Se for assim, e espero estar enganado, esta seria a segunda morte do Luisinho, desta vez às mãos do “serviço público”. Nada mais feio.

 

Na foto: o jovem António Feio com Carlos Queirós e Henriqueta Maia, seus parceiros no folhetim Gente Nova

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