Nas recentes eleições autárquicas quis-se ver um grande significado nacional. E como o Chega, a novidade, juntou a correr um ramalhete de personalidades que não tinham relevo, nem ligações locais, ou paraquedizou umas figuras nacionais que pareciam, e eram, depositárias de um palavreado ideológico que não falava em jardins, ou saneamento, ou recolha de lixos, ou habitação, ou IMI, o resultado foi relativamente medíocre.
Quando, como em Loures, o candidato do PS se cheguizou no discurso, num assunto que tinha importância local, ganhou. Mas como o PS não se vai, nacionalmente, cheguizar, nada verdadeiramente mudou em relação às últimas legislativas. A ideia de que regressamos ao bipartidarismo é assim wishful thinking e não mais do que isso. A menos que o PSD se dedique de alma e coração à tarefa de esvaziar o Chega comprando-lhe as bandeiras (coisa que evidentemente fez no problema da imigração), a tendência recente acentuar-se-á e em qualquer caso o PS vai fazer uma cura de águas duradoura para a Oposição, o que só lhe fará bem e a nós.
As presidenciais são vinho de outra pipa e põem às pessoas de senso um problema.
Depois de Marcelo de nenhum presidente se poderá imaginar que pode ser pior, donde até mesmo Marques Mendes, o mais marceléfilo de todos, pode ser incluído na lista de presidenciáveis. Nenhum, vírgula, que António Filipe ou Catarina Martins seriam piores, mas o primeiro é o simpático guardião de uma ideologia mumificada e a segunda enfermeira de um doente em coma irreversível. Recentemente o Livre, achando que de candidatos quanto mais melhor, também apresentou o seu, esquece-me agora o nome. Ignoro neste momento se o PAN também apresenta candidato, dúvida que o meu Cacau poderia esclarecer – mas não estou para lhe perguntar. Já Cotrim seria imensamente melhor que todos estes mas a função não casa com o perfil da personagem, nem com a sua imagem, nem com a sua carreira, nem a Presidência é o lugar para fazer avançar ideias liberais, mesmo que o país delas esteja muito carecido. O PS regressará um dia (longínquo, espero) porque a democracia faz-se, entre outras coisas, de alternância, mas o PS de Costa, ou Pedro Nuno, ficará bem no armário das velharias.
Quem desconfiar do europeísmo cego, do bem-pensismo de esquerda moderninha (vulgo social-democracia caseira), do wokismo larvar em questões como racismo, igualdade de “género”, discriminação positiva de minorias, defesa do folclore LGBTurbo, e toda a parafernália das causas, deve pesar bem o seu voto porque todos os candidatos (salvo Ventura, que todavia em cinco dos sete dias da semana é socialista na economia) sofrem em maior ou menor grau destas escaras no corpo são do recto pensar, mas nem todos têm a vontade de respeitarem os limites que a Constituição põe ao exercício dos seus poderes, e que os transforma em reis constitucionais a prazo.
Além de Marques, há três com potencial para ganharem, e são eles o Almirante, Ventura e António José Seguro.
Marques é apresentado como tendo uma vasta experiência política, implicitamente se querendo dizer que isso é uma grande vantagem. Tem, é inegável, mas de rodilhices, leva-e-trás politiqueiro, manobras, declarações e discursos, tudo pilotado pelo apalpar ansioso do pulso da opinião pública, tentando sempre agradar ao maior número e passar a mão pelo dorso do patrioteirismo. O Professor serviu-nos disso durante dez anos, seria desejável que, escarmentados, não fôssemos acabrunhados com mais dez do aluno.
Do Almirante ouvem-se declarações sobre tudo e um par de botas, e o tudo é um chorrilho de banalidades que se destinam a comprar o centrão eleitoral, para o que veste o seu activo para a corrida: uma farda e o seu brilhante desempenho como enfermeiro-mor da Nação. Porém: A farda não desqualifica ninguém para o exercício de funções mas também não qualifica; e a capacidade para liderar uma task-force para um programa que foi apresentado como um desígnio nacional que justificava o atropelo de várias liberdades constitucionalmente garantidas assegura que o Almirante tem condições para comandar um submarino por baixo do Ártico ou liderar uma missão humanitária no Sudão, mas só isso. Ser o pináculo do Estado e árbitro do jogo constitucional de poderes é outra coisa.
Ventura não é candidato à presidência da República mas à visibilidade que lhe dará a campanha. E, se ganhasse, seria uma grande desgraça para a crescente massa de apoiantes do Chega porque nem o Presidente pode liderar um partido nem este tem segundas figuras que se possam afirmar como primeiras. Poder-se-ia julgar que Ventura, na presidência, daria um suplemento de alma a algumas mudanças que o Chega encarna e que são necessárias. Mas quem tem poderes legislativos é sobretudo a AR, e quem os tem executivos é o Governo. E são portanto esses órgãos, e não a presidência, agentes da mudança. Depois, a função, por muito que Marcelo a tenha desvalorizado, tem uma componente de gravitas da qual Ventura não dispõe.
Resta António José Seguro. Deu sobejas provas de independência porque não hesitou em subordinar as suas possibilidades de êxito na carreira política às suas convicções, pelo que não foi um áulico de Sócrates; de soldado disciplinado porque tendo sido injustiçado não veio para a praça pública esbracejar contra os que (como Costa) o esfaquearam; e de modéstia porque nunca cultivou obsessivamente a presença na comunicação social. É inequivocamente um homem sério e talvez seja um homem bom, ainda que muitíssimo chato. Não faz mal, quando falar muda-se de canal na certeza de que enquanto vemos um filme ele está a cuidar de não fazer, nem dizer, asneiras.
É socialista e o PS vai apoiá-lo? Sim, a perfeição não é deste mundo, e ademais o apoio é pouco sincero. Mas não será um obstáculo às mudanças que maiorias e governos legítimos queiram operar; não acredito que seja no palco pessoa diferente da que é nos bastidores; não se toma por homem providencial; e, sobretudo, não acho que leve para Belém o seu PS de sempre.
Tem algumas companhias sulfurosas, como a pasionaria do asneirol Ana Gomes? Tem. Mas não deixo de ir a um restaurante que serve bem lá porque na clientela há alguns indesejáveis.
Para mim, até mais ver, isto basta. E, se ainda aparecer outro melhor, cá estou.
* Publicado no Observador