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Delito de Opinião

Pensamento da semana

Pedro Correia, 23.06.25

A situação do mundo está explosiva como nunca no último meio século. Há causas diversas, mas a principal tem uma data: 24 de Fevereiro de 2022. O dia que mudou a geopolítica, fazendo regressar a guerra à Europa. A força da razão foi pulverizada enquanto prevalecia a inaceitável razão da força. Putin abriu a caixa de Pandora. Estilhaçou o direito internacional, tentou refazer fronteiras à bomba, tudo fez para reduzir a pó o quadro global nascido em 1945. O resto veio em sequência, segundo a lógica do dominó. Impossível criticar de boa fé e com elementar sentido de justiça as fases subsequentes sem condenar aquela, a primeira de todas.

DELITO há cinco anos

Pedro Correia, 23.06.25

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Diogo Noivo: «Escolho o Corta-Fitas como blogue da semana. Um dos espaços de maior consistência (e persistência) na blogosfera nacional, tornou-se minha leitura diária há já vários anos. E espero acompanhá-lo durante muitos mais.»

 

Eu: «"Amália - Nem chegaste a partir" - eis o título-legenda. Justo, conciso e feliz. Quase um verso. Aliás, é mesmo um verso, extraído da letra que David Mourão-Ferreira escreveu para o Barco Negro, a que ela deu expressão eterna: "Eu sei, meu amor, / Que nem chegaste a partir / Pois tudo em meu redor / Me diz que estás sempre comigo." (...) Sendo o jornalismo uma actividade cuja carpintaria se desenvolve com frequência no anonimato das salas de trabalho, ignoro a quem devemos, enquanto leitores, este título tão digno de elogio. Mas foi seguramente alguém que leu com muita atenção o primeiro dos três textos que justificam esta capa. Um texto de Jorge Calado que vivamente recomendo, em que o autor equipara Amália a Maria Callas e Ella Fitzgerald, convicto de que ela "habita o panteão das maiores vozes do século XX"

Antes a surdez do que tal sorte

Pedro Correia, 22.06.25

 

Não deixem o homem voltar a assassinar o hino nacional se querem mesmo que ele seja eleito Presidente da República.

Implorem-lhe que fique calado: ninguém é menos patriota se escutar o hino em silêncio. Mau (péssimo) é destroçá-lo nota por nota, numa confirmação viva, quase desesperada, da profunda incultura musical dos portugueses.

Se ele insistir, assegurem-se de que não tem nenhum microfone perto dele. Ou desliguem-no, se for necessário. Os fins justificam os meios.

Quem avisa, amigo é.

Pensamento da semana

Pedro Correia, 22.06.25

Os países livres são, em média, doze vezes mais ricos do que os países onde a democracia está amordaçada. As sociedades livres são aquelas onde há mais crescimento económico e melhores salários. E também são aquelas onde existem mais pessoas felizes, ao contrário do que advogam alguns extremistas, entre hossanas às atrocidades das ditaduras. Mereciam experimentá-las, na pele e na carne, para se manterem fiéis ao que apregoam.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

DELITO há cinco anos

Pedro Correia, 22.06.25

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Cristina Torrão«Há cerca de 650.000 pessoas na Alemanha sem habitação; cerca de metade são refugiados, ou pessoas à espera da resposta ao seu pedido de asilo, e vivem em abrigos; contudo, e apesar de haver albergues para sem-abrigo, calcula-se que cerca de 48.000 vivam na rua. Existe muita pobreza no país considerado o mais rico da Europa.»

 

JPT: «Li anteontem muitos elaborando sobre "depressão". Esse mal escondido, qual maleita vergonhosa, pois como se sendo défice próprio. E o que me espantou, e me desagradou, é ver tanta gente valorizar a depressão e os deprimidos. A estes atribuir uma especificidade intelectual, uma densidade sentimental. Ou seja, como se os deprimidos o sejam porque são especiais, mais sensitivos, mais inteligentes. Mais lúcidos, e assim sentindo-se diante dos males do mundo, os próprios e os alheios. E essa ideia tem até um corolário implícito, o de que julga os aparentes antónimos "felizes" como menos inteligentes e menos sensitivos. Alienados, até. E contesto essa ideia. Um deprimido não é melhor do que os outros, mais lúcido ou mais sensitivo. Está doente, apenas.»

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 21.06.25

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Livro dez: A Neve Estava Suja, de Georges Simenon

Edição Cavalo de Ferro, 2025

257 páginas

 

Surpreendente romance existencial de Georges Simenon ambientado durante a expansão nazi na Europa, em país ou região nunca expressamente mencionados – talvez na Flandres Oriental, numa vila afastada do oceano, atmosfera alegórica mesclada com o real. Onde nada é o que parece, sob o primado do medo. Onde todos suspeitam de todos. Onde ninguém, no fundo, pode reclamar inocência. Onde não sobra uma alma sem parcela de culpa para expiar. Onde cada pecado individual ganha dimensão colectiva. 

«Há muita gente a fazer um jogo duplo. Fuzilaram um que todos os dias era visto na companhia de oficiais superiores, e era tão conhecido que as crianças cuspiam na calçada quando ele passava. Agora, afirma-se que era um herói» (p. 65, tradução de Diogo Paiva).

O prolífico escritor belga escreveu-o longe dali, no seu voluntário exílio de Tucson, sudoeste dos Estados Unidos, onde se instalou depois da guerra. Não podia haver maior contraste climático entre as viscosas brumas da noite flamenga e a secura poeirenta do Arizona.

 

Esta “neve suja” simboliza a corrupção moral e política, irmãs siamesas. Ideias e escrita estão ao nível d’ O Estrangeiro, de Albert Camus, surgido seis anos antes, em 1942. Dois romances marcados pelo mesmo estigma do homicídio gratuito: quem prime o gatilho situa-se para além do bem e do mal. Mas enquanto Mersault mata por impulso na praia alegando súbita cegueira devido ao excesso de sol, o Fred Friedmaier de Simenon chega aos 19 anos sem jamais ter visto o mar e torna-se assassino com premeditação, instigado pelas trevas neste romance que decorre num Inverno que parece interminável. Quase todos os verbos estão no presente do indicativo, indiciando que o pesadelo pode perpetuar-se. Impossível restituir a neve à pureza original.

«Porque é que essas pessoas o haveriam de executar? Ele não lhes fez nada. Na verdade, abatem sobretudo aqueles que, de entre os seus, os traem, e Frank não pode traí-los, visto que os não conhece. É certo que o desprezam. Mas, tal como a sua mãe, tem muito mais a temer da cólera dos vizinhos, que se baseia em inveja, que não é senão um assunto de carvão, roupas quentes e provisões» (p. 141).

 

É possível aprender como se escreve ficção de qualidade lendo com a indispensável atenção livros como este não-policial de Simenon. A Neve Estava Suja é um dos seus 117 «romances duros» - ou negros ou psicológicos – publicados entre 1931 e 1972. Dois agora disponíveis em Portugal nesta nova série da Cavalo de Ferro. 

O criador de Maigret tinha como lema «escrever é cortar». Notável economia de meios, acentuando a tensão dramática. 

Hoje, pelo contrário, vai sendo rara a obra literária com menos de 400 ou 500 páginas. Também na literatura portuguesa. Gente que gasta cada vez mais palavras para dizer cada vez menos.

 

Sugestão 10 de 2016:

Bairro Ocidental, de Manuel Alegre (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2017:

Santos e Milagres, de Alexandre Borges (Casa das Letras)

Sugestão 10 de 2018:

Sonhos Públicos, de Joana Amaral Dias (D. Quixote)

Sugestão 10 de 2020:

A Minha Intenção, de Czeslaw Milosz (Cavalo de Ferro)

Sugestão 10 de 2021:

O Retorno, de Dulce Maria Cardoso (Tinta da China)

Sugestão 10 de 2022:

De Quase Nada a Quase Rei, de Pedro Sena-Lino (Contraponto)

Sugestão 10 de 2023:

Perseguição, de Jorge de Sena (Assírio & Alvim)

Sugestão 10 de 2024:

O Príncipe da Democracia, de Nuno Gonçalo Poças (D. Quixote)

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 21.06.25

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Hoje lemos Amin Maalouf: "Leão Africano".

Passagem a L' Azular: "Onde quer que estejas, alguns vão querer fazer perguntas sobre a tua pele ou as suas orações. Cuidado para não satisfazeres os seus instintos, meu filho, cuidado para não te curvares perante a multidão! Muçulmano, judeu ou cristão, devem aceitar-te como és, ou perder-te. Quando a mente dos homens te parecer pequena, diz a ti mesmo que a terra de Deus é ampla; amplas são as Suas mãos e amplo é o Seu coração. Nunca hesites em ir mais longe, para além de todos os mares, de todas as fronteiras, de todos os países, de todas as crenças."

A verdade é que as pessoas simples, que vivem no seu dia a dia para o seu trabalho, para a sua família e para as suas orações e que não se deixam radicalizar por cães raivosos, aceitam o vizinho como seu semelhante, sem juízos de crença ou cor de pele. Isso foi algo que eu própria verifiquei. Não existe tolo maior do que aquele que se deixa ir na manada furiosa de touros desembolados. Não existe tolo maior do que aquele que se deixa engolir pela mentalidade de turba, sem lhe entender sequer a intenção. 

Não existe tolo maior do que aquele que acredita no que ouve, sem escutar com atenção. 

A Cartilha do "Público"

jpt, 21.06.25

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Morre Mouta Liz, esse que tão conhecido foi nos anos 1980... Trata-se de terrorismo? É de "extrema-direita", logo clama o "Público"! Mero erro de frenesim noticioso, qual velha "gralha"? É evidente que não o é. Um dislate ignorante de um "jovem estagiário", esse sempre invocado inculto bode expiatório? Não, por mais "jovem" que seja o teclista. Mas sim de um reflexo condicionado, efeito de uma ideologia inculcada: a "esquerda" é virtuosa, sê-lo-á ainda mais a "extrema". O Mal, o Terror(ismo)? Só pode provir da "direita", ainda mais da sua "extrema".

A SONAE financia...

Khamenei em Bogotá

jpt, 21.06.25

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Não trato aqui de opinar sobre a já velhíssima polémica relativa a Israel. Nem sobre a recente deriva a propósito de Gaza (já disse o pouco que me ocorre). Nem sobre o conflito (guerra mesmo) entre Irão e Israel, menos ainda discorrendo sobre os respectivos projectos políticos. Pois são questões complexas. E apesar de muitos opinarem, e com veemência, sobre o assunto, estou ciente de que a minha opinião nada conta - se contasse para algo faria um relatório e vendê-lo-ia. Nem sobre as questões geoestratégicas que acompanham tudo aquilo. E sobre estas para quê aflorar o papel do Catar?, se os meus compatriotas andam encantados com o Vitinha, o Nuno Mendes, o João Neves e até o Gonçalo Ramos do clube da bola caterense… E o da Arábia Saudita, se idem com o Bernardo Silva e o Rúben Dias, já para não falar do outro Rúben, o Neves, e - acima de tudo - o Cristiano Ronaldo, nesse arquipélago futebolístico saudita? Não há dúvida, as “relações públicas” do Golfo têm muito sucesso por cá. Ou seja, à primeira vista até parecerão caras - milionárias mesmo, como o reafirma a imprensa desportiva - mas, pensando bem, são “marketing” político barato.

Venho apenas deixar uma breve memória. Em 2023 pude viajar pela Colômbia. A minha estada coincidiu com a afamada Feira do Livro de Bogotá, e fui visitá-la. Um certame enorme, e muito popular. As instalações que acolhiam as editoras colombianas (e hispânicas) eram vastíssimas, apenas as percorri sem vasculhar, até porque não iria comprar livros - aquela malfadada questão do peso da bagagem em viagens aéreas. Lateralmente havia o pavilhão do país convidado, naquele ano o México, que se apresentou com uma bela e rica representação.

E um outro pavilhão temático continha várias representações nacionais. Entre outros a Espanha e o Brasil, com pavilhões surpreendentemente despojados - fiquei mesmo estupefacto ao vê-los. Algo que ainda mais sublinhou o meu apreço pela instalação portuguesa - que, por coincidência visitei no dia 25 de Abril, como se comprova pela minha pobre fotografia, a qual não faz jus à excelência do que ali estava composto. A nossa representação era uma cuidada organização conjunta da cátedra de Estudos Portugueses Fernando Pessoa da Universidade dos Andes e da Embaixada de Portugal. 2023 era um ano de centenários de escritores portugueses, p. ex. Eduardo Lourenço, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Mário-Henrique Leiria e Natália Correia. As suas obras estavam ali bem alinhadas, em publicações portuguesas. Tal como uma larga presença de edições colombianas de escritores portugueses - traduções, publicadas por julgo que três editoras locais, que presumo tenham vindo a ser algo induzidas pela dinâmica da referida cátedra. E estavam também conferencistas convidados, que pude ouvir: os professores Leonor Simas-Almeida e Onésimo Teotónio de Almeida (o qual eu havia conhecido um quarto de século antes em Maputo), e o excelente escritor (e também professor) moçambicano João Paulo Borges Coelho.

Enfim, eu que tenho a defeituosa tendência para resmungar (e até rosnar) diante de quase tudo, fiquei mesmo muito bem impressionado. Ufano até, em arremedo patriótico. É certo que tinha amiga na organização, provocando-me uma predisposição simpática. Mas, “juro, sinceramente, palavra de honra…” (como consta em célebre canção moçambicana) não era apenas o “amiguismo” a falar. Pois a “banca” portuguesa estava mesmo boa…

E tudo isto, já antigo, vem a propósito de quê? Pois ladeando o nosso estaminé, escassas dezenas de metros afastada, estava a banca iraniana, com as mesmas dimensões. Por lá passei claro. Estanquei, deliciado com o denotativo de tudo aquilo. Pois nos escaparates e estantes constavam apenas múltiplos exemplares de … dois livros. As edições em espanhol de uma biografia do aiatola Khamenei e de uma das suas obras. Estavam ali quatro homens, sem qualquer visitante, no típico fato-e-gravata - que noutros contextos se diria de apparatchiki. Tendo-me eu aproximado logo um deles veio ter comigo, cortês, indagando-me quem era eu e o que ali fazia. Lá me expliquei, mas nisso algo constrangido e assim deixando ficar o telefone no bolso, desprezando a minha verdadeira vontade de fotografar a peculiar representação bibliográfica nacional naquela grande Feira Internacional - e por falta dessa fotografia até agora não fizera este postal, percebendo-o coxo por falta de ilustração abrangente.

Entretanto o evidente “controleiro” - e percebendo que eu não iria comprar os livros - deu-me este pequeno folheto (que acima reproduzo), basto laudatório do “Gran Sabio y Referente Islámico”… Lembro-me de dali ter saído num breve meneio de cabeça, pois diante de tamanho anacronismo. Denotativo, como já disse…

Enfim, repito-me, é este postal um elogio deste Israel, até destes EUA, um apupo a este Irão? Não, é mesmo um raisparta tudo isto.

(Postal também no meu "O Pimentel")

 

Blogue da semana

Sérgio de Almeida Correia, 21.06.25

É cada vez mais difícil trazer até este espaço uma proposta que seja ao mesmo tempo diferente e interessante, que nos ajude a pensar e a descobrir coisas novas, outras perspectivas, mundos diferentes.

Hoje em dia há quem tenha medo de suscitar interrogações em voz alta e prefira o refúgio no silêncio.

Isso não impede o aparecimento de aventureiros, de gente que se importa e quer que os outros se importem.

A proposta que aqui deixo é a de alguém que se predispôs a criar um "lugar de  interrogação", onde "a cidade transcende o seu espaço físico, tornando-se num labirinto de possibilidades e perspe[c]tivas".

Não é fácil, mas há nada como cada um dos leitores fazer-lhe uma visita e avaliar por si a cidade sem tino, a minha escolha para esta semana de um autor cujo nome desconheço. 

DELITO há cinco anos

Pedro Correia, 21.06.25

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JPT: «Diz-me com o que te calas, dir-te-ei quem és.»

 

Maria Dulce Fernandes: «Metemo-nos à estrada, cada família no seu carro, e entre cantorias e despiques chegámos a Talavera de la Reina onde passámos a primeira noite. Dali seguimos para Toledo. Adorei Toledo: a sua catedral, o seu ar medieval com espadas e armaduras em todos os pontos de comércio, a glória de Espanha, nas palavras do da triste figura.»

 

Paulo Sousa: «Estamos perante uma desonestidade que confirma o grau da lacaização de alguns jornalistas ao poder que, numa atitude bem socialista, preferem o lado confortável da actualidade ao lado certo da história.»

Torga, 50 anos depois (2)

Pedro Correia, 20.06.25

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20 de Junho de 1975

«Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou. A mais imunda vasa humana a vir à tona, as invejas mais sórdidas vingadas, o lugar imerecido e cobiçado tomado de assalto, a retórica balofa a fazer de inteligência. Mas teimo em crer que apesar de tudo valeu a pena assistir ao descalabro. Pelo menos não morro iludido, como os que partiram nas vésperas do terramoto.»

 

Diário XII, de Miguel Torga

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 20.06.25

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Livro nove: Visitar Amigos e Outros Contos, de Luísa Costa Gomes

Edição D. Quixote, 2024

227 páginas

 

É, sem favor, um dos melhores livros de contos surgidos em Portugal nos últimos anos. Não por falta de concorrência: temos excelentes praticantes deste género literário, felizmente ressurgido após anos de incompreensível queda na hierarquia do gosto dominante, sempre tão volúvel.

Luísa Costa Gomes tem vasta experiência nesta área, iniciada como autora em 1981, ao publicar Treze Contos de Sobressalto. Distinguiu-se como directora de Ficções, revista especializada na divulgação de contos. De temática variada, sem regras nem dogmas, excepto a adesão ao formato curto.

Visitar Amigos e Outros Contos reúne 13 histórias de âmbito muito diverso com linguagem camaleónica, apropriada a cada relato ficcional, designadamente à época e ao local em que se situam. Há inegável experiência oficinal neste acto de moldar palavras e inseri-las com exactidão no contexto adequado, em espaço estreito. Pode parecer simples, mas poucos conseguem cultivar esta técnica com tanto esmero.

Veredicto sem hesitação: alguns destes contos justificarão lugar cativo em futuras antologias do género. Logo o primeiro, “A Ditadura do Proletariado”, prodigiosa alegoria de revoluções falhadas a propósito de banais obras numa vivenda. “O Menino-Prodígio”, voo rasante sobre a atmosfera social e política nos anos crepusculares do chamado Estado Novo. “O Bem de Todos”, assumido pastiche do imaginário neo-realista. “As Estrelas”, tocante parábola sobre a culpa e o perdão. “Impaciência”, sobre os labirintos da solidão neste mundo juncado de medos apocalípticos.

Sem mutilar consoantes, a escritora recorre alternadamente a códigos linguísticos hoje em voga ou a chavões de outras eras, recuperados com intenção precisa. E subtil vénia literária a autores tão diversos como Agustina Bessa-Luís na criação de certas atmosferas femininas (“Cabeça Falante”; “o Lenço de Seda Italiano”), Mário de Carvalho na proliferação de neologismos e na ironia por vezes cáustica ou José Cardoso Pires na música da escrita (patente em “Rotas”, diálogo telefónico que encerra o livro, subtil evocação de “Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros”, obra-prima do conto português).

Somados aos restantes méritos, detecta-se aqui o mais louvável de todos: a paixão de narrar histórias.

Repare-se no início de “Património”: «Na Primavera dos seus quarenta e um anos, saindo de um duche frio, Félix teve a consciência de que nunca por nunca viria a ser rico.» Ou nas primeiras linhas d’ “O Menino-Prodígio”: «Ele vivia com a mãe e uma criada velha e escrevia livro atrás de livro numa salinha com vista para um jardim chuvoso conhecido como “o escritório do menino”. (…) Era sobretudo romance histórico, mas não se acanhava da poesia, drama, ficção científica. Nunca lhe veio à cabeça publicar. Ninguém o lia, só ele, com um prazer a roçar o criminoso.»

Assim se dignifica uma nobre arte: a de seduzir o leitor. Ao contrário do protagonista da sua história, repassada de sarcasmo, Luísa Costa Gomes não escreve para a gaveta. Todos ganhamos com isso.

 

  Sugestão 9 de 2016:

Entrevistas da Paris Review, (Tinta da China)

Sugestão 9 de 2017:

Ao Largo da Vida, de Rainer Maria Rilke (Ítaca)

Sugestão 9 de 2018:

Só Acontece aos Outros, de Maria Antónia Palla (Sibila)

Sugestão 9 de 2019:

La Llamada de la Tribu, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara)

Sugestão 9 de 2020:

Estocolmo, de Sérgio Godinho (Quetzal)

Sugestão 9 de 2021:

Woke - Um Guia para a Justiça Social, de Titania McGrath (Guerra & Paz)

Sugestão 9 de 2022:

Carta à Geração que Vai Mudar Tudo, de Raphaël Glucksmann (Guerra & Paz)

Sugestão 9 de 2023:

A Vida por Escrito, de Ruy Castro (Tinta da China)

Sugestão 9 de 2024:

Por Amor à Língua e à Literatura, de Manuel Monteiro (Objectiva)

Um ano com D. Dinis (36)

Doença de D. Dinis

Cristina Torrão, 20.06.25
 

DinisCoimbra.jpgPormenor da estátua de Dom Dinis, em Coimbra

A 20 de Junho de 1322, dois anos e meio antes da sua morte, D. Dinis foi acometido de doença grave. «Um ligeiro ataque vascular-cerebral ou um pequeno ataque cardíaco?», pergunta-se José Augusto Pizarro, autor da biografia de D. Dinis (Temas e Debates, 2008).

O rei Lavrador tinha, nesta altura, sessenta e um anos e não se lhe conheciam doenças. Encontrava-se, porém, numa fase muito desgastante da sua vida: a guerra civil contra o seu próprio filho e herdeiro. Esta doença verificou-se depois do cerco a Coimbra, que implicou duros combates. Através da mediação da rainha D. Isabel e do conde de Barcelos Pedro Afonso (filho ilegítimo de D. Dinis), o rei assinou as pazes com o infante, mas, no seu regresso a Lisboa, sentiu-se mal.

O estado de D. Dinis melhorou no início do ano seguinte, mas as pazes com o filho foram de pouca dura. O acordo seria quebrado em Outubro de 1323, depois das Cortes de Lisboa. A guerra entraria na sua última fase, com a Batalha de Alvalade, mas dedicar-me-ei ao assunto na altura própria. Para já, um excerto do meu romance, quando já não havia entendimento possível entre pai e filho:

De nada adiantava mandar emissários, depois da humilhação nas Cortes de Lisboa, Afonso tudo faria para se apossar do trono. A batalha era inevitável.

Dinis sabia ter ido longe demais. Mas que força o impedia de se entender com o seu próprio herdeiro? Teria inconscientemente guiado os acontecimentos de maneira a que Afonso Sanches lhe pudesse suceder? Na verdade, via-se incapaz de responder a esta pergunta. 

Naquela noite, véspera da batalha, Dinis mortificava-se. Estava a ir contra a vontade de Deus, chefiando um combate contra o seu único filho legítimo? O rei não conseguia adormecer, novamente atacado por tonturas, dores de cabeça e suores. Tornaria a adoecer? Finar-se-ia ainda antes de se dar o combate?

Nada mais lhe restava senão confiar na força divina. Desejou um milagre. Sabia que Isabel rezava, recolhida no seu paço, depois de semanas de penitências rigorosas. Conseguiria ela provocar um milagre?

Vai ser o último a entender. Talvez.

Paulo Sousa, 20.06.25

Em 1994 a Rússia assinou o Memorando de Budapeste. Em troca da entrega do terceiro maior arsenal nuclear do mundo, a Ucrânia recebeu garantias de segurança.

Nesse mesmo ano, a Geórgia estabeleceu com Moscovo o Tratado de Amizade, Boa Vizinhança e Cooperação. Com a Arménia foi 1997. O documento mereceu o nome de Tratado de Amizade, Cooperação e Assistência Mútua. Com a Síria dos Assad os acordos eram vários, alguns já do tempo da URSS. Todos eles asseguravam cooperação militar e política.

Já depois de ter invadido a Geórgia em 2008, onde ainda controla as regiões da Abcásia e da Ossétia do Sul, Putin formalizou, em 2015 e 2017, a presença da Força Aérea e da Marinha Russa na Síria com carácter de longo prazo.

Depois disso invadiu a Ucrânia e deixou a Arménia à sua sorte quando o Azerbeijão atacou o enclave de Nagorno-Karabakh.

A lista destes acordos de "cooperação" alarga-se a África. República Centro-africana, Sudão, Líbia, Mali e Burkina Faso. O Kremlin apoia uma facção, explora recursos locais e se o jogo virar, põe-se ao fresco.

Quando o regime sírio caiu, o melhor que Putin teve para oferecer ao seu ditador foi uma autorização de aterragem. Depois disso o carrasco de Damasco nunca mais apareceu. Se Assad ainda não foi defenestrado, deve fazer tudo para nunca ir além do rés do chão.

Mais recentemente, e já este ano no dia 17 de Janeiro, foi a vez do Irão. A tinta do tratado de parceria estratégica assinado entre a Rússia e o Irão (com uma validade de vinte anos) ainda mal deve ter secado. Esperando receber apoio para o seu programa nuclear, o Irão partilhou a tecnologia dos seus drones Shaed e até ajudou na construção de uma fábrica na Rússia. Quando os generais iranianos começaram a ser eliminados, Putin fez o que costuma. Nada. O Irão já não tem nada lhe para dar, apenas a incerteza que faz subir os preços do petróleo.

O currículo do actual Czar tem muitas mais traições que as constam neste pequeno resumo. A sua “confiabilidade” é internacionalmente reconhecida. Quando se assina qualquer coisa com ele, é quase uma garantia do exacto contrário. A minha maior surpresa continua a ser a convicção da excepcionalidade de Donald Trump. Se algum dia lá ele chegar, será o último dos humanos a entender que Putin só respeita a força.

DELITO há cinco anos

Pedro Correia, 20.06.25

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Sérgio de Almeida Correia: «É compreensível que os portugueses fiquem satisfeitos, penso eu, por poderem acolher a fase final da mais importante competição europeia a nível de clubes, a Liga dos Campeões. Com ou sem adeptos nos estádios, com mais ou menos riscos, certo é que a elite do futebol europeu estará durante uns dias por Portugal, ocupando hotéis e restaurantes, dando uso aos estádios, e, concedo, promovendo a imagem do país e das suas cidades no exterior. (...) Como se o facto de ter existido um COVID-19, para todos os efeitos uma desgraça para a maioria, que por um bambúrrio atirou para Portugal a fase final da competição, se devesse ao nosso trabalho, ao nosso esforço, aos nossos êxitos. Fazer do acontecimento um sucesso nacional, nesta fase do combate à epidemia, e quando tantos são os problemas que há para enfrentar, como se daí viesse a solução de todos os nossos dramas, não é sinal de auto-estima ou de feito histórico. Para além da manifestação ser despropositada, na dimensão e na exultação, é acima de tudo provinciana.»

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