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CRISE NO SNS
Podia ter sido noutro ano, pois já vem de longe. A crise no Serviço Nacional de Saúde foi destacada, pelos autores do DELITO DE OPINIÃO, como Acontecimento Nacional de 2024 pelo impacto que teve junto de um número crescente de portugueses - e até de cidadãos estrangeiros residentes no nosso país. Num ano em que o Instituto Nacional de Emergência Médica teve três presidentes sucessivos.
Houve demissões em cascata de conselhos de administração de unidades locais de saúde. O Conselho de Administração do Hospital Garcia de Orta foi exonerado em Setembro. No mês seguinte, demitiram-se o director de cirurgia e outros dez cirurgiões do Hospital Amadora-Sintra. Em Dezembro, o director do serviço de urgência do Hospital São Francisco Xavier saiu a seu pedido. Já em Abril, havia saído o próprio director-executivo do SNS, Fernando Araújo.
«Se não foi fácil erguer o SNS, mantê-lo e geri-lo condignamente está a pôr à prova não apenas os governos, mas diferentes níveis de administração, grupos profissionais e autarquias.» Observação certeira de alguém que assumiu esta opção de voto.
Outro membro do DELITO foi mais longe: aludiu a crise endémica dos serviços estatais. Especificando: «Não é só o SNS que recebemos minado: são também os muitos meses de espera por uma junta médica; os meses de espera para quem se pretende reformar; os serviços do Ministério da Educação que são incapazes de fornecer números fiáveis; os transportes públicos que continuam pouco dignos de confiança (o jornalismo não parece interessado em investigar seriamente o estado actual do Metro e da Transtejo, tendo mesmo de ser um presidente da Câmara a reportar aos jornais a bandalheira dos barcos eléctricos); as forças policiais em conflito entre si; etc.»
Com sete votos, apenas menos um do que o acontecimento mais destacado, foi mencionado o novo ciclo político ocorrido com as eleições legislativas de 10 de Março e a formação do executivo minoritário da AD liderado por Luís Montenegro.
«Pela primeira vez em muitos anos a esquerda é minoritária na Assembleia da República, o que coincidiu com o fim do ciclo de mais de oito anos de governação PS», observou alguém.
Outros factos ou percepções, cada qual com um voto. Passo a enunciá-los para ficarem lavrados em acta como sempre sucede, ano após ano, no nosso blogue:
- Aprovação do Orçamento do Estado, em 29 de Novembro, contrariando muitas previsões que davam como garantido o chumbo parlamentar deste instrumento essencial à governação do País.
- A contínua emigração de jovens, que vai adquirindo «contornos de calamidade».
- Os distúrbios nas imediações de Lisboa, na sequência da morte do caboverdiano Odair Moniz, a 21 de Outubro, por revelarem «tensões sociais e de inspiração racista que devem merecer toda a atenção».
- A queda de Pinto da Costa, «com as consequências desportivas e penais que isso implica», após 42 anos de poder absoluto no comando do FC Porto.
- A confirmação da mediocridade da elite política, «o que só agrava a resolução dos problemas nacionais».
Participaram na votação 18 membros do DELITO. Como sempre acontece, cada um pode votar em mais de um tema ou em nenhum, se assim o entender.
Facto nacional de 2010: crise financeira
Facto nacional de 2011: chegada da troika a Portugal
Facto nacional de 2013: crise política de Julho
Facto nacional de 2014: derrocada do Grupo Espírito Santo
Facto nacional de 2015: acordos parlamentares à esquerda
Facto nacional de 2016: Portugal conquista Europeu de Futebol
Facto nacional de 2017: Portugal a arder de Junho a Outubro
Facto nacional de 2018: incúria do Estado
Facto nacional de 2019: novos partidos no Parlamento
Facto nacional de 2020: o vírus que nos mudou a vida
Facto nacional de 2021: vacinação em massa
Facto nacional de 2022: o regresso da inflação
Facto nacional de 2023: queda do governo de maioria absoluta
(créditos: Luísa Nhantumbo/Lusa)
Nas eleições venezuelanas de Julho do ano passado, a LUSA informou-nos que “[o] Governo português apelou à transparência do processo eleitoral na Venezuela, após a declaração de vitória de Nicolas Maduro", que estava, e continua, a ser contestada nas ruas pela oposição.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, disse nessa ocasião que “[s]ó há legitimidade se houver transparência e para que os resultados sejam aceites como legítimos, apelamos no fundo a que eles sejam verificados”.
O primeiro-ministro Luís Montenegro, em declaração datada de 03/08/2024, e subscrita com o Chanceler da República Federal da Alemanha, o Presidente do Governo de Espanha, o Presidente da República Francesa, o Presidente do Conselho de Ministros da República Italiana, o Primeiro-Ministro dos Países Baixos e o Primeiro-Ministro da República da Polónia, mostrou “forte preocupação com a situação na Venezuela após as eleições presidenciais do passado domingo”. Impunha-se que as autoridades venezuelanas procedessem à rápida divulgação das actas eleitorais, "de forma a garantir a total transparência e a integridade do processo eleitoral”.
Em resultado desta situação, Portugal não enviou nenhum representante à tomada de posse de Nicolas Maduro e o ministro Paulo Rangel enfaticamente afirmou que Portugal “não reconheceu os resultados das eleições presidenciais venezuelana, na sequência da posição tomada pela União Europeia, e que a ausência de Portugal dessa investidura tem um significado claro.”
Já em relação às eleições moçambicanas, a CPLP esclareceu que “muitas horas depois do encerramento das urnas não havia ainda resultados oficiais e publicados”, colocando em causa as opções de muitas mesas de voto.
A Missão da União Europeia, após emissão da declaração preliminar de 11 de Outubro, esclareceu que os observadores da UE foram “impedidos de observar os processos de apuramento em alguns distritos e províncias, bem como a nível nacional”, acrescentando-se que foram constatadas “irregularidades durante a contagem e alterações injustificadas dos resultados eleitorais a nível das assembleias de voto e a nível distrital”, sugerindo-se por razões de integridade que os órgãos eleitorais conduzissem o processo de apuramento de uma forma transparente e credível. Laura Ballarín, chefe de missão, declarou que "a publicação dos resultados desagregados por mesa de voto não é apenas uma questão de boas práticas, mas também uma forte salvaguarda para a integridade dos resultados".
Sublinhe-se que os observadores da CPLP assistiram também a "diversos casos de contagem errónea de votos, nomeadamente: boletins de voto dobrados de forma sobreposta e contados como válidos, indiciando que a mesma pessoa teria votado mais do que uma vez", e ainda se referiram a "muitas dezenas de votos com uma marca idêntica, indiciando que a marcação no boletim de voto terá sido feita pela mesma pessoa". (…) O anúncio dos resultados finais pela CNE em 24 de Outubro resultou de uma decisão maioritária dos seus membros e não foi feita por consenso "o que contribui para um sentimento de incerteza sobre a fiabilidade dos resultados". Seis dos 13 comissários contestaram em declaração de voto a deliberação final da CNE.
Perante este cenário, a Assembleia da República aprovou uma resolução no sentido de o Governo português não reconhecer os resultados eleitorais de 9 de Outubro de 2024 em Moçambique devido “às graves irregularidades e fraudes denunciadas e documentadas”.
Na votação desse projecto de resolução, o PSD, o CDS-PP e o PS entenderam abster-se, como se não estivéssemos efectivamente perante um cenário de irregularidades e fraudes em tudo semelhante ao que aconteceu na Venezuela e não houvesse que tomar posição.
Não obstante, o Governo português entendeu enviar a Moçambique o seu ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, que deste modo avalizou as “graves irregularidades e fraudes” que antes determinaram a abstenção no parlamento do seu próprio partido.
Se na Venezuela a ausência de um representante do Estado português tem um significado claro, por igual ordem de razões, a presença de Rangel em Moçambique na tomada de posse de Daniel Chapo também tem um significado claro, qual seja o de sancionar com a sua presença as moscambilhas eleitorais da Frelimo e a violência pós-eleitoral, aliás na linha do recomendado por um ex-MNE, Martins da Cruz, sempre pronto a servir quem manda ou quem paga em qualquer latitude e em quaisquer circunstâncias.
Falta de coerência e meias-tintas, vê-se, não são apanágio exclusivo dos frequentadores do Largo do Rato. No Ribadouro, à segunda rodada, e desde que a cerveja esteja fresca, não se distingue o barril. Nem quem paga.
Hoje lemos: Peter Frankopan, "As Rotas da Seda"
Passagem a L'Azular: "Muitos judeus optaram por ir para Constantinopla. Foram recebidos pelos novos governantes muçulmanos da cidade. “Chamas a Fernando um sábio governante”, terá exclamado Bāyezīd II, saudando a chegada dos judeus à cidade em 1492, embora “ele empobreça o seu próprio país para enriquecer o meu”, os judeus não só eram tratados com respeito, como também eram bem-vindos. Os novos colonos receberam protecção e direitos legais e, em muitos casos, receberam assistência para começarem novas vidas num país estranho. A tolerância era uma característica básica de uma sociedade autoconfiante e confiante na sua própria identidade – o que era mais do que se poderia dizer do mundo cristão, onde a intolerância e o fundamentalismo religioso estavam rapidamente a tornar-se características definidoras.”
E cá está mais uma vez explicado que o fundamentalismo religioso e os ódios figadais no Oriente são causa de acontecimentos recentes e do inculcamento de valores obtusos aos povos das sociedades contemporâneas.
Quando nos comparamos com os EUA ou os países desenvolvidos da Europa Central, encontramos vários aspectos que explicam o nosso, já antigo, atraso económico e social. Desde a Revolução Industrial que quem liderou a criação de riqueza foram os países onde existiam minas de carvão e outros recursos naturais a partir dos quais isso aconteceu. Ali, havia também uma relação diferente com o trabalho, pois as sociedades protestantes sempre colocaram mais energia na prevenção dos azares, do que as católicas que se focam mais na explicação do que não nos é favorável. O “se trabalharmos arduamente as coisas correrão bem” dessas paragens, contrasta com o nosso “se as coisas não correrem bem, é porque fizemos por o merecer”. Perante um ponto de partida tão diferente teríamos mesmo de aceitar o nosso atraso. Lá está. As coisas são como são, e por isso teríamos de as aceitar.
E é então que nos deparamos com um caso que abala esta visão que só serve para nos anestesiar na nossa resignação. A Irlanda, tal como nós, um país de matriz católica, periférico e sem recursos naturais, tem conseguido resultados económicos que, pelo menos, nos devem fazer pensar sobre as nossas decisões das últimas décadas. Em 1986, quando entramos na CEE, a riqueza criada per capita na Irlanda era cerca de 4.000 dólares superior à nossa, mas desde então, essa diferença aumentou para os 75.000 dólares. E digo, 75.000 dólares a mais, por pessoa, em cada ano.
Então, não é a Irlanda um país igualmente católico? Não é a Irlanda um país igualmente periférico? Não é a Irlanda um país igualmente sem recursos naturais? Em que é que ficamos nas comparações tradicionais? O que é que os irlandeses fizeram de maneira diferente dos portugueses? Sem mergulhar em grandes detalhes técnicos, podemos simplificar a explicação dizendo que eles foram muito melhores que nós, mesmo muito melhores, a atrair empresas e negócios. Quando o bolo é maior, há mais para distribuir e perante um bolo pequeno, é normal que se lute por migalhas. A riqueza criada numa economia funciona da mesma forma.
Por falta de espaço neste texto não irei aqui elaborar sobre a comparação das taxas de imposto cobrado a particulares e a empresas nestes dois países, mas a diferença é realmente enorme. Quem quer atrair negócios e riqueza, não deve complicar a vida às empresas, tal e qual como não é com vinagre que se atraem moscas. E a diferença na riqueza produzida permitiu que o salário mínimo irlandês seja de 2.146 euros, o que contrasta com os nossos 956 euros. No salário médio a diferença ainda nos é mais desfavorável.
As consequências destas diferenças de rendimento na qualidade de vida dos dois povos são óbvias. O nosso melhor clima, gastronomia e exposição solar não são suficientes para nos dar a liberdade de escolha que os irlandeses têm, pois no fim das contas é óbvio que os pobres são menos livres. Alcançar uma vida melhor teria sido possível, e ainda será, mas nestes anos consumimos mais uma geração a preferir almoçar e jantar ideologia. Tudo isto é muito irritante e há uma outra consequência com que, ao contrário dos irlandeses, hoje temos de lidar. Refiro-me ao peso eleitoral de um partido que na sua essência se pode descrever como um partido que atrai pessoas irritadas. O Chega irlandês nunca singrou, pois os irlandeses não querem mudar a Irlanda. Desejam apenas manter a trajectória que os trouxe até aqui.
* Texto publicado no jornal O Portomosense
A globalização arrancou mais de 500 milhões de pessoas da miséria em apenas 30 anos - não há memória de algo semelhante na história humana. Mas entrámos noutro ciclo, o da contra-globalização. Vai acentuar-se, à medida que o populismo for contaminando as ideologias clássicas. Daqui a uma década já será bem evidente que a página foi virada. É temerário antecipar que seja para melhor.
Este pensamento acompanha o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana
José António Abreu: «Em 2012, o primeiro álbum de Jessie Ware recebeu excelentes críticas mas não me convenceu por aí além. Estava cheio de temas bem feitos e ambiciosos, com ritmo dançável (à la Beyoncé, digamos), mas, no que me diz respeito, sem o que quer que fosse de verdadeiramente especial. Em 2014, o segundo álbum de Jessie Ware recebeu críticas menos entusiásticas mas agradou-me bastante. Continuando a ser pop relativamente standard, afigura-se-me mais ponderado e subtil, fugindo a sonoridades e poses grandiloquentes.»
Luís Naves: «Durante os três anos do programa de ajustamento foi criado um clima de pessimismo que será difícil desfazer. Muitos jornalistas, políticos e comentadores destruíram a auto-estima dos portugueses. As boas notícias foram sistematicamente apresentadas na sua pior vertente, quando a veracidade não era logo posta em causa. Enfim, a ideia da desgraça do País entrou nas consciências e autores de artigos de opinião que não acertaram uma única vez durante esta crise continuam tranquilamente a espalhar o derrotismo e a exercer a sua liberdade de expressão sem um mínimo de responsabilidade.»
Sérgio de Almeida Correia: «O Presidente da República apela ao consenso entre os principais partidos mas ainda não percebeu que os partidos são avessos a uma visão monocromática da incompetência.»
Teresa Ribeiro: «Que tal aplicar umas multinhas aos queridos que tentam rebentar com os tímpanos a quem se desloca a uma sala de cinema para ver um filme? A lei estabelece limites higiénicos para a emissão de ruído, portanto há forma de evitar este flagelo. Sempre são à roda de dez minutos e ainda por cima a levar com publicidade.»
Sister Moonshine, Supertramp
(Álbum: Crisis? What Crisis?, 1975)
Mark Rutte, secretário-geral da NATO, falando ontem no Parlamento Europeu sobre a urgência de aumentar despesas militares na UE
"ELEFANTE NA SALA"
José António Abreu: «Annie Clark incomodou muita gente em 2014. Produziu um vídeo tão estilizado e cerebral que mestres zen e especialistas em feng shui ainda estão a reordenar ideias. Respondeu às acusações de ser uma tipa fria e cerebral - a repetição do termo é propositada - com uma actuação no Saturday Night Live que incluiu sons à guitar hero, executados (por uma mulher, valha-nos deus) com passinhos de bebé e expressão impassível.»
Luís Naves: «O extremismo islâmico combate os valores ocidentais e todas as suas manifestações, das caricaturas aos bonecos de neve, das representações divinas às taxas de juro, do cinema à educação das mulheres. Os radicais islâmicos dizem que não são precisos mais livros, pois o que não está no Corão é inútil ou errado. A vida quotidiana dos ocidentais, que se infiltra em todos os países, vai conquistando as pessoas para ideias diferentes, do casamento por amor à libertação das mulheres, que até começam a conduzir automóveis. A banal televisão ou uma simples canção na rádio representam o horror e um ataque à interpretação fundamentalista da religião. Para estes fanáticos, o ocidente está todo errado, não apenas a sua laicidade e o direito à blasfémia, mas também os valores da liberdade, dos direitos humanos e da convivência de culturas.»
Sérgio de Almeida Correia: «O Sócrates foi dentro, o Jardim está de saída, o Cesário já está outra vez a fazer a ronda por Macau, e as eleições estão à porta. Eu agora sou um mero secretário de Estado. Francamente, não sei qual é o vosso problema.»
Eu: «A linha defensiva dos réus [nos julgamentos de Nuremberga] era invariável: todos tinham agido em obediência a ordens superiores, como se a responsabilidade de cada um estivesse diluída numa espécie de imperativo categórico ditado pelas forças do mal. O tribunal rejeitou esta tese - e muito bem, condenando a generalidade dos réus a duras penas. Foi uma conquista civilizacional do direito que não deve ser revertida nestes tempos de barbárie à solta em tantos locais.»
Wish You Were Here, Pink Floyd
(Álbum: Wish You Were Here, 1975)
Dedicada ao nosso antigo colega "delituoso" e grande amigo João Carvalho (1952-2013)
Os seres humanos e a sua insatisfação são para lá de inconstantes. Se faz frio é um horror, se faz calor não se aguenta, se chove é uma chatice, se não chove é uma seca…
No Domingo não choveu e após alguma reserva decidimos aproveitar a concessão do S. Pedro para irmos passear a pé, à beira-rio, no Parque das Nações, porque continua a ser uma zona aprazível para caminhadas e onde a fauna lisboeta pulula em toda a sua enorme diversidade.
Aconteceu que, a meio do passeio num pequeno jardinzinho, vi, pela primeira vez na minha vida, um senhor barbudo de mini-saia e ataviado com bijuteria e maquilhagem, a passear duas crianças. Escusado será dizer que não havia passeante ou mero transeunte que não voltasse a cabeça, ou não sentisse os olhos magnetizados naquela direcção, como se fosse a primeira vez que se visse um homem de saias.
Há-os em vários países e ainda mais numerosas são as culturas em que os homens vestem saias e como tal não seria assombroso, não fora o preparo no seu todo fazer crer a quem olhava (porque toda a gente olhava) que fora concebido para chocar. Garantidamente sentia a convergência das miradas disfarçadas na pele nua das pernas, mas não parecia minimamente incomodado. As duas crianças e o senhor exprimiam-se em inglês e os pequenos tratavam-no por mammy, o que destoava bastante do retrato e expunha o senhor como artigo de importação, mas não ponho de parte tratar-se de produto nacional adaptado. Lia, olhava os petizes embevecido e eram um autêntico retrato de felicidade.
Não me considero fundamentalista em questões de atribuição de sexo. Lidei toda a minha vida com pessoas que não se identificavam com o sexo com que nasceram. Algumas mais espalhafatosas do que outras, é certo, mas nunca me tinha acontecido dar de caras com alguém que tivesse feito esta escolha de vida socialmente tão vistosa.
No final quedamo-nos nós, os passeantes e os que por ali passavam, a tentar identificar o(a) senhor(a) como masculino, feminino, diádico, intersexo ou altersexo, ou nenhum dos descritos, isto porque a as nossas crianças nos fazem perguntas enredadas em embaraço, e porque a imagem ficou tão fortemente marcada, que será seguramente difícil de apagar. A conclusão que posso tirar é que quem presenciou esta inocente ida ao jardim se sentiu mal por ele se sentir bem. Posso também rematar com a frase-bordão do Diácono Remédios, mas nem por isso me faz sentir melhor.
(Imagem gerada por IA, muito semelhante ao original)
DONALD TRUMP
É um regresso a esta lista. Tal como ele se prepara para regressar, daqui a uma semana, à Casa Branca. Donald Trump foi eleito, por escassa margem, Figura Internacional do Ano pelos 18 autores do DELITO que participaram na votação. Repetindo-se o que já ocorrera em 2016 e 2017.
O sucessor (e antecessor) de Joe Biden, vencedor da corrida à Casa Branca desta vez não apenas entre os "grandes eleitores" mas também com maioria no voto popular, obteve em 5 de Novembro 77,3 milhões de votos (49,9%) enquanto a sua adversária do Partido Democrata, Kamala Harris, recolheu 75 milhões (48,4%). Desta vez não houve celeuma pós-eleitoral, ao contrário do que aconteceu em 2020.
Os motivos para a escolha, aqui no blogue, foram vários. «O mais forte comeback da história dos EUA», anotou alguém. Eis outra justificação: «O iliberalismo woke foi derrotado pelo iliberal Trump e o mundo acelera na vertigem dos caprichos do seu inflamado ego.»
A estafada e famigerada expressão "figura incontornável" pode aplicar-se ao novo (velho) inquilino da Casa Branca. Muita coisa irá mudar com ele novamente em cena.
Em segundo lugar nesta votação - com cinco votos, só menos um do que Trump - ficou Gisèle Pelicot, que emergiu do anonimato ao assumir a sua identidade como vítima de um chocante caso de violação em massa cometido pelo ex-marido, que a drogava previamente e incentivou dezenas de outros indivíduos a fazerem o mesmo com ela. Hoje com 72 anos, esta francesa nascida na Alemanha renunciou ao direito a ter julgamento à porta fechada como forma de denúncia aberta das agressões sexuais de que foi vítima e do atentado à sua dignidade humana.
«A vergonha deve mudar de lado», afirmou, justificando o que a levou a sujeitar-se à exposição mediática.
Tornou-se ícone da causa feminista: a BBC incluiu-a na lista das cem mulheres mais influentes do ano. O ex-marido recebeu a pena máxima em França: 20 anos de prisão.
No terceiro lugar, com dois votos, ficou o Presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, pela sua inquebrantável resistência ao invasor russo num ano em que o quotidiano do continente europeu continuou marcado pelos horrores da guerra. O líder ucraniano já tinha sido aqui destacado em 2022 e 2023.
Também com dois votos, a carismática dirigente da oposição na Venezuela, María Corina Machdo, impedida pelo autocrata Nicolás Maduro de concorrer à presidência da república. Edmundo González, o candidato alternativo, venceu por larga margem o escrutíno de 23 de Julho. Mas Maduro proclamou-se vencedor, sem nunca ter apresentado provas: bastou-lhe o poder das baionetas que ainda sustentam a tirania de Caracas enquanto as vozes dissidentes estão na cadeia ou no exílio. Maria Corina e Edmundo foram justamente distinguidos com o Prémio Sakharov 2024, do Parlamento Europeu.
Houve ainda três votos isolados nas seguintes figuras:
Elon Musk, o homem mais rico do mundo - Por se ter tornado líder de opinião no X, rede social que agora controla, continuar a expandir a frota milionária dos veículos eléctricos Tesla e ter promovido em Setembro o primeiro voo espacial comercial através da sua empresa espacial SpaceX. Foi ainda o mais notório apoiante da candidatura presidencial de Trump.
Keir Starmer, novo primeiro-ministro britânico, que nas legislativas de 4 de Julho levou o seu Partido Trabalhista a derrotar por larga margem o Partido Conservador, que estava no poder desde 2010. Com mais dez pontos percentuais (33,7% contra 23,7%).
Alexei Navalny, encontrado morto a 16 de Fevereiro num estabelecimento prisional no Círculo Polar Árctico. Corajoso resistente à ditadura russa, escapou a várias tentativas de assassínio e estava encarcerado desde 2 de Fevereiro de 2021, ano em que recebeu o Prémio Sakharov. Dele se dizia que era o homem que Putin mais temia. Pagou por isso.
Figuras internacionais de 2010: Angela Merkel e Julian Assange
Figura internacional de 2011: Angela Merkel
Figura internacional de 2013: Papa Francisco
Figura internacional de 2014: Papa Francisco
Figuras internacionais de 2015: Angela Merkel e Aung San Suu Kyi
Figura internacional de 2016: Donald Trump
Figura internacional de 2017: Donald Trump
Figura internacional de 2018: Jair Bolsonaro
Figura internacional de 2019: Boris Johnson
Figura internacional de 2020: Ursula von Der Leyen
Figura internacional de 2021: Joe Biden
Figura internacional de 2022: Volodimir Zelenski
Figura internacional de 2023: Volodimir Zelenski
Ao equipararem a racismo qualquer opinião negativa sobre o estado da imigração, os partidos de esquerda matam à nascença um debate urgente. A mentalidade portuguesa tem destas coisas: por não poderem ser discutidos, os problemas arrastam-se e agravam-se. Durante alguns anos, houve uma situação de bar aberto e entraram no país centenas de milhares de imigrantes. Muitos não falam português, alguns nem sequer entendem inglês. O anterior governo piorou a situação, ao extinguir o serviço que tratava do tema, o SEF. Quando as reformas são difíceis, desfaz-se o que está feito e inventa-se a pólvora.
Os números oficiais sobre imigração sugerem um fenómeno fora de controlo. Em 2018, havia 480 mil estrangeiros residentes, em 2023 já tinham passado o milhão (1,044), ou seja, mais do dobro em apenas cinco anos. Existe porventura uma explicação económica para a aceleração abrupta, pois nos últimos dez anos foram criados 800 mil empregos em Portugal. Infelizmente, há muito emprego precário, que pode não durar, sobretudo com os efeitos da estagnação alemã. A comunidade imigrante que aproveitou a oportunidade é explorada até ao osso, tem baixos salários e vive em condições precárias (um terço em risco de pobreza e exclusão, também números oficiais).
Os partidos da esquerda aplaudem este fluxo de carne para canhão, que contribui para manter os salários baixos nos empregos de baixas qualificações. As multinacionais ficam contentes e o centro de Lisboa transforma-se progressivamente num enclave de kitsch multicultural. Portugal fez numa década os mesmos erros que a Suécia levou meio século a cometer. Não existe ligação entre criminalidade e imigração, diz o coro da esquerda. Por enquanto, não existe, mas temos de olhar para as sociedades onde a proporção de imigrantes ultrapassou a barreira dos 10% da população e onde esta afirmação não é verdadeira. Os benefícios do curto prazo pagam-se um pouco mais à frente, mas a duplicação em tão pouco tempo significa que o fenómeno é demasiado rápido para que a sociedade portuguesa o consiga absorver.
O meu confrade JPT, num artigo que se aconselha, sobre a ida - e a cerimónia - de Eça para o Panteão Nacional, exprime no último parágrafo o receio de que Camilo Castelo Branco, ao completarem-se duzentos anos do nascimento, poss sofrer igual sorte. Mas desse destino está o autor de A Queda de Um Anjo a salvo. Por sua expressa e perpétua vontade (antes de se matar?), repousa no Cemitério da Lapa, no Porto, perto da escola onde Ramalho instruiu Eça e o coração de D. Pedro está guardado, sem receio de que o venham incomodar. Não fosse isto e já teria andado em bolandas entre o Porto, Samardã, Seide e o tal Panteão de Santa Engrácia, a não ser que os descendentes e órgãos deliberativos actuais sejam de tal forma insensíveis que não hesitem em violar esta sua vontade sagrada. É pouco provável, mas não impossível, se houver quem ligue mais aos restos mortais como "património cultural da nação" do que como pessoas (s)em carne e osso.
José António Abreu: «Sylvan Esso é um duo composto pela cantora folk Amelia Meath, das Mountain Man, e pelo produtor de música electrónica Nick Sanborn. A sonoridade do seu primeiro álbum pende para o lado electrónico da balança mas a voz de Meath, bem como alguns ritmos (mais evidentes no tema de abertura, um daqueles casos em que a primeira reacção tende a ser «WTF?» mas depois não apenas tudo encaixa como parece estranho ter parecido estranho), conferem ao projecto um sabor levemente peculiar que me agrada bastante.»
Teresa Ribeiro: «Quando se fala de intolerância relativamente aos imigrantes, por norma aponta-se o dedo aos povos anfitriões, partindo do princípio discutível de que é a quem recebe e está em maioria que devem ser cobradas as responsabilidades relativas ao bom convívio com as comunidades acolhidas. Mas o multiculturalismo deve pressupor uma abertura recíproca.»
Eu: «Na gala em Zurique onde ontem Cristiano Ronaldo recebeu a terceira Bola de Ouro da sua carreira (já tinha sido galardoado em 2008 e 2013), perguntaram-lhe qual foi o melhor golo da sua carreira. Resposta imediata do nosso campeão: "O próximo." Nesta resposta percebe-se bem o que leva Ronaldo a superar todos os obstáculos. Em vez de contemplar o passado, como é hábito entre os portugueses, fixa sempre novos objectivos a conquistar no futuro. Uma lição para todos nós.»
Acorda Amor, Chico Buarque
(EP: Cuidado com a Outra, 1975)