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Delito de Opinião

Glória póstuma

João Pedro Pimenta, 31.12.24

O fenómeno é curioso, mas já sobejamente conhecido: José Pinhal, cantor romântico de "música de baile", usando normalmente um fato branco, um bigode afirmativo e um penteado à Rudi Voeller, frequentador dos circuitos musicais sobretudo no Norte do país, despareceu num acidente viário com pouco mais de 40 anos e ficou esquecido alguns anos até as suas cassetes serem encontradas no escritório do seu agente, digitalizadas e depois colocadas no Youtube, onde se começou a gerar um pequeno culto. Surgiu um grupo de tributo para recriar em palco as suas músicas, o José Pinhal Post -Mortem Experience, e desde então Pinhal conheceu postumamente a popularidade de que nunca gozou em vida, sendo mesmo objecto de um artigo do Guardian

Celebridade após a morte: o obscuro cantor popular português que é notícia  em Inglaterra – NiT

Vi a banda-tributo há meses, por alturas dos Santos Populares. Uma enorme multidão cantava de cor as músicas, para mim até então quase desconhecidas, transformando Pinhal numa autêntica estrela pop de além-túmulo e os músicos ali presentes nos seus mensageiros. Aí consegui ver o verdadeiro fenómeno em que se tornou este músico pouco conhecido no seu tempo e fora de moda para os parâmetros actuais e o culto que se gerou. Nos meses seguintes tornei a ouvir as músicas e a ver gente a trauteá-las de cor e salteado, sobretudo da meia-idade para baixo.

Toda essa descoberta inevitavelmente levou-me a pensar: e se Pinhal tivesse sobrevivido? Teria continuado nos seus circuitos de baile e ficado meramente conhecido nas festas de verão e em algumas danceterias (sim, ainda as há), com algumas cassetes editadas, daquelas que se vendem nas roulottes? Ou teria aproveitado a onda "pimba" que se gerou depois e alcançado o sucesso, sendo chamado regularmente para programas de tarde de fim de semana da TVI e SIC? Não tenho a menor dúvida de que não teria o êxito actual, sobretudo entre os mais novos. A sua morte, o seu relativo desconhecimento em vida, a descoberta do seu espólio e o crescimento paulatino da sua música criaram este culto, o de um homem que não conheceu a fama em vida e que por vicissitudes várias se tornou famoso postumamente. Não é caso único, o de encontrar sucesso muito tempo após a morte (e recorda também um pouco o de Sixto Rodriguez, que o teve em vida mas ainda a tempo de o saber), mas falamos de um conjunto de factores que permitiram que um homem relativamente desconhecido, com imagem ultrapassada e música fora de época gerasse este fenómeno de popularidade. Para isso permitiu também um certo revivalismo dos anos oitenta e noventa e o crescente interesse e consumo de música portuguesa, aliados a algumas tendências hipsters (também elas agora um pouco em baixo). Mas não haja a menor dúvida: a morte de José Pinhal, desencadeando todos estes passos, é que lhe deu o passaporte para a glória póstuma. Paz à sua alma, que a obra não a tem e continua a circular por esses palcos fora. 

 

Bom 2025 a todos. O possível.

As velhas redacções

Luís Naves, 31.12.24

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Nas redações era comum usar a expressão "encher chouriços", pois as páginas do jornal eram enormes, o corpo da letra pequeno e naquele tempo escrevia-se muito. Os redatores antigos usavam de cor e salteado uma técnica de escrita que permitia alongar os textos sem sair do tema ou sem maçar os leitores. Estes jornalistas veteranos sabiam "virar frangos" e escreviam a uma velocidade estonteante. As máquinas de escrever enlouqueciam e os dedos cravavam-se no teclado com uma fúria que se ouvia na sala ao lado, enquanto a redação se ia enchendo com as nuvens de fumo do tabaco e se iluminava a penumbra com o olhar em brasa dos repórteres em plena euforia da escrita. Ainda chamavam "linguados" às folhas que iam saindo dactilografadas e que quase voavam para longe quando o jornalista impaciente rodava o cilindro para colocar um novo papel. Não se perdia tempo, um texto normal podia ter sete ou oito páginas de 150 palavras, se fosse metade era matéria para novatos como eu, que não sabiam fazer aberturas decentes e não conseguiam prolongar a prosa a descrever ambientes, factos laterais e personagens secundárias da história.

imagem gerada por IA, deep dream generator, curioso como a máquina não compreende o assunto, o jornal a sair já impresso, o repórter bem vestido e penteado, ainda por cima de gravata.  Esta é mesmo uma memória que se perde.

Brindar ao Novo Ano

Cristina Torrão, 31.12.24

Na sua série "canções com meio século", o Pedro Correia já tinha dado lugar ao austríaco Udo Jürgens, com Wilde Kirschen.

Venho, porém, lembrar uma outra canção do mesmo artista, também com meio século de existência. Aos primeiros acordes, vão decerto reconhecê-la. E ficarão surpreendidos, porque a teriam julgado com outra origem. Talvez não todos, mas acredito que a maior parte de vós.

Como mote para o Novo Ano, e tendo em conta as eleições alemãs em Fevereiro (antecipadas), deixo-vos uma declaração de génio de Elon Musk: "apenas a AfD consegue salvar a Alemanha". Ou seja, um partido que conta com neonazis nas suas fileiras. Mas Elon Musk esclarece, com uma fineza e uma classe incríveis: Alice Weidel, a líder do partido, tem uma parceira do mesmo sexo do Sri Lanka! Isso soa-vos a Hitler? Por favor!

OK, Elon. Se é assim, ficamos todos mais descansados.

Griechischer Wein, Udo Jürgens

(Álbum Meine Lieder, 1974)

Com vinho grego, vinho verde, ou com o tradicional espumante, não deixem de brindar a 2025!

FELIZ ANO NOVO!

Bilhete-postal do fim do mundo: Ushuaia

Ana CB, 31.12.24

Foi com um sorriso aberto e um “Hola chicas!” que Ada nos abriu a porta do Los Calafates B&B, que gere com o filho Hernán. A quase 12 mil quilómetros de distância de Portugal e depois de várias horas de viagem desde Buenos Aires – autocarro, avião, táxi – esta recepção calorosa e familiar fez-me sentir como se chegasse a casa. O frio patagónico ficava lá fora e o fim do mundo já não me parecia assim tão distante do nosso rectângulo do outro lado do Atlântico. Intuindo que estaríamos cansadas, Ada não nos maçou com grandes pormenores e deixou para mais tarde os protocolos burocráticos habituais: deu algumas informações básicas e levou-nos de imediato ao nosso quarto. Uma amostra da informalidade e simpatia que iria ser o mote quase generalizado dos dias que passámos em Ushuaia.

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Conquistada pelo estômago e pela simpatia

Na Primavera austral o céu mantém-se claro até tarde, o que ajudou a ajustar o nosso relógio interno para as 4 horas de diferença daquelas longitudes. Se estivéssemos por cá, jantar quase à uma da manhã seria inconcebível para nós. Só que em Ushuaia ainda não eram 10 da noite, e o almoço já era uma vaga recordação. A pizaria Dieguito – uma sugestão da nossa anfitriã – estava à cunha, mas assim que entrámos o dono saudou-nos com uma alegria tal que parecia que nos conhecia há anos. De imediato arranjou uma mesa para as “chicas”, e enquanto nos acomodou bombardeou-nos com as habituais perguntas de quem percebe que está a receber forasteiros de terras longínquas – o que, de resto, em Ushuaia não é difícil, atendendo a que a cidade está distante de tudo, mesmo se só pensarmos na Argentina. Suspeito também que o nosso espanhol mal-amanhado e com sotaque europeu tenha contribuído para essa conclusão…

 

A atmosfera estava tão abafada que tivemos de ficar só de t-shirt – tal como toda a gente, de resto. Tirando o calor quase excessivo, o ambiente podia ser o de uma cervejaria portuguesa sem pretensões. Mesas e cadeiras simples, de madeira escura envernizada; caixas de cerveja local (com a marca “Beagle”, como o canal que banha a cidade) empilhadas a um canto; paredes e tecto com fotografias várias, cartazes e t-shirts de clubes de futebol, a condizer com o jogo que passava no ecrã de televisão, e uns quantos troféus expostos sobre uma estante. No meio da aparente agitação, a comida foi servida rapidamente, estava saborosa, e o serviço esbanjou simpatia.

Gostámos tanto que no dia seguinte voltámos lá ao almoço, desta vez para provar aquele que é um dos petiscos gastronómicos mais populares em toda a Argentina: as empanadas. Receita herdada da colonização espanhola, no século XVI, foram adaptadas aos ingredientes locais, e cada província da Argentina desenvolveu sua própria fórmula, criando uma variedade infindável de recheios e formas de preparação. A empanada tornou-se especialmente popular entre os trabalhadores rurais, pois era fácil de transportar e consumir em qualquer lugar. Embora parentes das empadas ibéricas, as argentinas são maiores e de formato semicircular ou oval. Têm geralmente uma massa mais fina e flexível, e mais recheio, o que as torna menos pesadas e muito ao meu gosto. Em Ushuaia, as do Dieguito são assadas no forno de barro onde cozinham as pizas e entraram directamente para a lista das minhas delícias favoritas no mundo, seguidas de perto pelas de marisco do quase vizinho restaurante Doña Lupita.

 

Entre a montanha e o mar

Na língua do povo yámane (ou yagán), que habitou a parte sul da Terra do Fogo durante mais de 10 mil anos, Ushuaia significa “baía ao fundo”. Para mim, o nome soava-me a vastidão do mar, vento agreste e solidão, mas não podia estar mais enganada. Quando a vi de longe, Ushuaia pareceu-me uma pequena cidade alpina, encaixada entre as montanhas pintadas de branco e a água parada do Canal Beagle. Mais perto, apercebi-me da cacofonia arquitectónica generalizada, como se tivessem decidido fazer dela um mostruário de todos os tipos de edifícios que é possível construir, em todos os estilos e com todos os materiais. Há de tudo, desde o modernismo geométrico com betão e vidro ao utilitário nórdico de chapa ondulada, passando pelos chalés em madeira e os prédios “pintados” de pedra ou tijolo, iguais a tantos outros que vemos por aí.

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Na zona mais plana e movimentada da cidade, as ruas formam um quadriculado perfeito, que se vai deformando à medida que a área urbanizada se afasta do mar e trepa pela encosta. A amálgama de estilos contagiou o comércio e abundam os letreiros com letras garrafais e os anúncios garridos, entre o folclórico e o kitsch, aqui e ali uma loja mais sóbria ou um café com uma decoração mais clean. É a Europa nórdica desconjuntada pelo “jogo de cintura” sul-americano e apimentada pelo sangue quente da herança espanhola. Ushuaia pode estar no fim do mundo, mas a verdade é que vivem ali quase 80 mil almas, número que engrossa substancialmente durante os meses da época alta do turismo.

A avenida que acompanha a curvatura da baía ao longo da cidade é rota de passeio agradável, mesmo sob um céu a ameaçar chuva. Não é que haja muito para ver… Deixando para trás as casinhas dos operadores turísticos e os nada atraentes barracões e contentores armazenados no porto, sobra a vista sobre o Onashaga (o nome do Canal Beagle na língua nativa), imperturbável como um lago, mimetizando a cor cinza da atmosfera. Há veleiros de recreio espalhados pela baía, entre outras embarcações coloridas, e um navio de cruzeiro mais ao fundo. Encostado a uma espécie de dique de cascalho, meio adernado, o rebocador Saint Christopher já viu melhores dias, e parece recordar com nostalgia a sua época de glória, quando se chamava HMS Justice e participou no Dia “D” da Segunda Grande Guerra, desembarcando tropas aliadas na Normandia. Abandonado há quase 70 anos após uma avaria, já faz parte da paisagem, e em todo este tempo a cidade decerto mudou muito mais do que ele.

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Para lá da água, estendem-se até ao infinito montanhas negras marcadas por dedos de neve, cumes brancos entrelaçados num manto de nuvens baixas. São uma bela moldura e por isso, turismo oblige, a palavra Ushuaia em letras garrafais não podia faltar, completando o enquadramento ideal para as fotos da praxe.

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Uma via pedestre de cimento pintado com formas coloridas encaminha-nos para o local a que chamam Paseo de los Antiguos Pobladores. Estão ali algumas das construções mais antigas da cidade, agora convertidas em espaços culturais e institucionais. A Casa Pena, pintada de amarelo e verde, é hoje o Museu da Cidade, onde uma exposição etnográfica conta a história de Ushuaia desde a sua origem. Na Casa Torres foi instalado o museu “Pensar Malvinas”, que expõe informação sobre a guerra que, em 1982, agitou a opinião pública em todo o mundo e terminou com o Reino Unido a manter a soberania (detida desde 1833) sobre o arquipélago do Atlântico Sul, situado perto da costa argentina, a que os britânicos chamam Falklands. A Câmara de Turismo da Terra do Fogo funciona na discreta e bonita Casa de Lisardo García, revestida de chapa ondulada cinzenta embelezada com madeiras pintadas de branco. Mas o edifício que mais chama a atenção, pela sua arquitectura extravagante, é a antiga Casa Bebán, que agora é centro cultural e de exposições. Num arroubo de excentricidade, o primeiro dono, Tomás Bebán, mandou vir da Suécia toda a estrutura da sua futura casa de família, cuja montagem ficou terminada em 1913.

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Depois há que ir ao melhor miradouro da cidade, o Paseo del Centenario. Uma escadaria moderna, com formato irregular e vários pontos de paragem, coroada por um monumento que homenageia as várias correntes migratórias que deram origem a Ushuaia. Renovado em 2021, e apesar do pedido de cuidado feito pelo Intendente Walter Vuoto aquando da reinauguração, já apresenta infelizmente alguns sinais do vandalismo que desfigura, cada vez mais, as zonas urbanas: tags (a que incorrectamente é hábito chamar grafitis) pulverizadas sobre as “espigas” de cimento que fazem parte da estrutura da escadaria. Nem as terras do fim do mundo escapam à falta de civismo e de respeito, e só mesmo a vastidão e serenidade da paisagem que se nos oferece a partir do miradouro conseguiu apaziguar o meu espírito.

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Isto não vai lá com almirantes

Sérgio de Almeida Correia, 31.12.24

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Enquanto a lenha vai alimentando as lareiras das terras frias do hemisfério norte, muitos se questionam sobre o que nos reserva 2025. Como vidente não sou, também não corro o risco de me enganar, deixando esses prognósticos para os meus amigos economistas e alguns, poucos, especialistas de ciências ocultas e afins.

E assim sendo, quero apenas neste final de 2024 colocar na última página do calendário, e que será amanhã a minha primeira, sublinhar um breve punhado de reflexões suscitadas por uma recente entrevista de José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, e pela nomeação falhada de Hélder Rosalino para secretário-geral do Governo.

São dois factos que, aparentando nada terem a ver um com o outro, em rigor estão intimamente ligados.

Da entrevista ao Expresso, de entre várias e pertinentes e questões sobre a actualidade política, Aguiar-Branco enfatiza a necessidade de se mexer no estatuto dos titulares de cargos políticos, explicando porquê.

Quanto às incompatibilidades atinentes ao exercício de cargos políticos, o presidente da AR considera-as excessivas, o que conduz a que, praticamente “só quem não tenha nada que fazer, quem não represente nada na sociedade”, gente a quem esta não reconheça mérito e competência é que pode estar disponível para o exercício de cargos políticos, dando como exemplo os parlamentares.

De caminho critica, e bem, a funcionalização do exercício da função política, defendendo um escrutínio mais exigente, mais rigoroso dos registos de interesses, um sancionamento rápido e eficaz em situações de prevaricação e uma revisão das remunerações de titulares de cargos políticos, única forma de se trazer gente qualificada – decente, digo eu – para a política.

Sobre o triste episódio Hélder Rosalino, mais um, que se predispunha a ingressar no Governo com o salário de cerca de 16 mil euros que auferia no Banco de Portugal, o que levou a que o primeiro-ministro e a sua equipa mexesse na previamente lei, dando um pontapé na generalidade e abstracção e adaptando-a ao caso concreto que tinham em vista, como outros fizeram, trata-se de mais uma daquelas situações que nunca deveria ter acontecido.

Não foi, infelizmente, a primeira. Gostaria que fosse a última, sendo indiferente que o governo seja do PSD, do PS ou de qualquer outra agremiação que por aí ande, mais ou menos atamancada às instituições do regime na mira dos subsídios.

Olhando para os nossos partidos, os nosso governos, actual e passados, a nossa classe política, a composição do parlamento e a mediocridade reinante, em especial nas últimas duas décadas e meia, dificilmente se deixará de concordar com Aguiar-Branco. Os políticos ganham mal e a política foi tomada por funcionários medíocres, pelo lúmpen dos partidos e das juventudes partidárias. Quem tem mérito foge da actividade política e do escrutínio que esta implica, preferindo ficar comodamente numa entidade pública ou privada onde seja razoavelmente bem pago e se sinta resguardado dos holofotes e da bisbilhotice e inveja da populaça.

Poderemos não estar todos de acordo neste ponto. Seria importante que fossemos capaz de discuti-lo, já que exemplos não faltam. Dos cábulas alçados a ministros, dos funcionários camarários e dos partidos investidos em estadistas, que acabam empresários e milionários sem que se perceba de onde lhes vem o guito, se de uma herança milionária escondida num cofre caseiro em maços de notas que já saíram de circulação, se de pagamentos perpetuados durante o exercício de cargos públicos, ou se da simples moscambilha, vigarice ou operação de consultadoria de agilização de processos e recomendações.

Alguns dirão que é por causa disso que não se contratam mais Rosalinos e Macedos, e que no final – dependendo de quem os promove – até cumprem bem a função, seja a esportular os pobres reformados ou a sacar comissões a cavalo de um banco público para se apresentarem resultados que de outro modo ficariam muito aquém do publicitado.

O problema é que ninguém sabe por onde começar. Ou quer começar.

Os partidos não expulsam os medíocres porque esses estão todos lá instalados e controlam ao acesso aos lugares susceptíveis de darem prebendas. Outros só estão disponíveis para servir o Estado e exercer a função política se se puderem comportar como gestores privados, sendo pagos por terceira entidades ou contornando-se as regras aplicáveis ao comum dos cidadãos.

A discussão, talvez ingenuamente ainda acredito nisso, deverá colocar-se num patamar que antecede a acção política.

Tanto uma como outra estão hoje inquinadas pela radicalização do discurso político, pelo entrincheiramento partidário, por um novo acantonamento classista que distingue entre os que estão dentro e a tudo têm acesso e os que estão fora, na periferia das instituições e do poder, destinados à rua e ao garimpo urbano em busca de uma casa suburbana ao sol e de um salário de sobrevivência depois de impostos.

Tudo é demasiado mau e miserável para que continuemos a contemporizar com a indecência.

Porque é tão mau pagar tão mal aos políticos como hoje pagamos – que em qualquer caso será sempre demasiado na visão de muitos para o que a maioria se mostra capaz de fazer – como aceitar na política exércitos de funcionários medíocres e de mercenários, incapazes de se predisporem a servir a causa pública, ainda que por um período temporário, sem outra razão que não seja esse mesmo serviço.

Redescobrir o sentido ético da acção política, conferir um sentido moral ao serviço público na política, está muito para lá das questões salariais, do simples reconhecimento do mérito que cada um merece, de uma revisão de estatutos ou equiparação ao que se passa em empresas privadas. Que, nem sempre, e os bancos e banqueiros constituem prova disso, apresentam os melhores exemplos de integridade e seriedade, ao contrário do que se poderia esperar, apesar de pagos principescamente face à generalidade das pessoas. Ladrões e bandidos aparecem em todo o lado e em todas as profissões. Disso não estamos livres.

Precisamos de ser capazes de olhar para nós próprios, de rirmos e de chorarmos em conjunto, de nos redescobrirmos enquanto pessoas. É tempo de nos deixarmos de procissões, arruadas, folclore e faduncho. É tempo de voltarmos a pensar. No que somos, no que queremos ser. Se é que ainda aspiramos a ser algo mais do que um punhado de números ao serviço de maus gestores de algoritmos.

Há muito que o sonho deixou de comandar a vida. Não se iludam. Só a acção séria e consequente é motivadora e dá frutos a longo prazo. Não tenham medo. 

Feliz Ano Novo para todos os que ainda por aqui passam. E aos que perdem cinco minutos a pensar nos outros.

Que não lhes falte a saúde e a capacidade para reflectirem e agirem. A esperança. Para perseguirem a felicidade e serem felizes, não desesperando na adversidade medíocre dos dias.

Em jeito de fim de ano, algo mais duradouro

Paulo Sousa, 31.12.24

2LtFhcaQXV7cBaUx7Nra4A-1200-80.jpgA Voyager 1 foi lançada a 5 de Setembro de 1977. Encontra-se neste momento a cerca de 15,4 mil milhões de milhas da terra. É o artefacto produzido por humanos que mais se afastou da terra e contém uma mensagem de boa-vontade dirigida a alguma inteligência que um dia a encontre e a possa entender.

Era presidente dos EUA nessa data o recentemente falecido Jimmy Carter, que no disco dourado com informação do nosso planeta, incluiu a seguinte mensagem:

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Eram tempos diferentes dos actuais. Seríamos capazes de algum idêntico agora?

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 31.12.24

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Joana Nave: «Mais um ano passou. Passaram os meses, os dias, as horas recheadas de momentos, uns bons outros nem tanto. No tempo que ainda resta para fechar a porta ao velho e abri-la ao novo, fazem-se os habituais balanços, recordam-se os dias felizes, os projectos realizados, lamenta-se um ou outro episódio menos feliz e elaboram-se planos para o futuro. Um novo ano é como um livro em branco que anseia por ser escrito com novos desafios, conquistas e emoções. Todos os dias que passamos são dádivas, ainda que sejam duros, ainda que tenhamos dificuldade em entendê-los, são oportunidades únicas de aprendizagem e desenvolvimento pessoal.»

 

José António Abreu: «A Estação Espacial Internacional tem a bordo seis astronautas: dois russos, uma russa, dois americanos, uma italiana. Demora 92,74 minutos a dar a volta ao planeta, rodando com uma inclinação orbital de 51,65º. Como o movimento rotacional da Terra é bastante mais lento, na noite de passagem de ano a Estação vai ficando cada vez mais tempo em fusos horários que já se encontram no ano que entra, antes de voltar a fusos ainda no ano que sai. Isto se não me enganei na lógica da coisa. Em qualquer dos casos: Feliz Ano Novo, Happy New Year, Felice Anno Nuovo e С Новым годом.»

 

José Navarro de Andrade: «Polónia, anos 60, catolicismo (a protagonista é freira), culpa (a tia da protagonista, ex-juíza, condenou inimigos do estado à morte nas purgas vermelhas de 50) e John Coltrane. Se não fosse o último item tudo em “Ida” seria demasiado óbvio à partida, mesmo que à chegada acabássemos por sentir a espada fria do desalento – haverá verões na Polónia? – que corta todo o filme. Planos longos e muito quedos (e tensos), enquadramentos esvaziados de quinquilharia cenográfica e ritmo pouco atribulado, não são meras marcas de estilo – do estilo que se espera das cinematografias outrora “do leste”, hoje da “europa central” – mas uma necessidade dramática. Não havia outra maneira de mostrar nem de transmitir isto.»

 

Luís Naves: «Este é o dia dos balanços, queiram desculpar o desabafo. Aparentemente, vivi um ano péssimo e anuncia-se outro ainda pior. E, no entanto, nunca fui tão livre das opressões do espírito. Estou cheio de dúvidas e tudo me parece mais claro. Sinto uma verdadeira serenidade e, apesar das ruínas da minha vida anterior, sei agora que não importa tanto a escolha ou o acaso, mas o que tiramos desta breve oportunidade para contemplar o esplendor do mundo.»

 

Patrícia Reis: «Não o quero ofender, Manuel, sei da sua devoção. Perdoe este seu amigo. Li algures que nada mata mais do que a solidão, sobretudo se estamos mesmo sozinhos. Talvez esteja aquém da salvação, do entendimento, de uma ideia melhor. Terá Deus um propósito específico para mim? Sim, sei que devo acreditar na Sua bondade. Um dia talvez O reencontre.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Do passado sabemos apenas que existiu. Que foi. Do futuro teremos sempre a certeza do que connosco transportamos. E o que transportamos é o que não nos trai. É isso que nos dá a felicidade. A certeza de que existimos. Uma palavra, um sorriso, um beijo, uma imagem. Por vezes, apenas o cheiro da terra húmida, o sabor a sal, a paz de um campo de arroz. O que não nos trai é o que fica das memórias. Um Bom Ano para todos vós.»

 

Teresa Ribeiro: «E aí facebookou tanto que o grupo de amigos todo despertou / e foi tanta felicidade que toda a comunidade se iluminou / e foram tantos likes loucos tantos lol's roucos como não se ouvia mais... / que o mundo compreendeu e o novo ano amanheceu em paz.»

 

Eu: «Não é possível ignorar o papel que desempenhou em processos que fizeram e continuam a fazer manchetes, com destaque para o dos vistos dourados - que o levou a deter diversos altos funcionários, incluindo o director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a secretária-geral do Ministério da Justiça - e o do ex-primeiro-ministro José Sócrates, que conduziu à detenção do antigo chefe do Governo, também por decisão de Carlos Alexandre.»

Jimmy Carter (1924-2024)

Pedro Correia, 30.12.24

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Escrevi sobre ele duas vezes em 2024. Não há duas sem três: faltava esta. Em tom de elegia, ao contrário das anteriores. Para dar nota do falecimento de Jimmy Carter, Presidente dos EUA durante a minha adolescência, triunfador da corrida à Casa Branca de 1976 - a primeira que segui em pormenor do primeiro ao último dia, como se acompanhasse as peripécias de um campeonato de futebol.

James Earl Carter Jr, 39.º inquilino da Casa Branca (na verdade foi o 38.º pois Grover Cleveland ocupou duas vezes o emblemático edifício do n.º 1600 da Avenida Pensilvânia em Washington) entre 1977 e 1981, esteve longe de ser um chefe do Executivo norte-americano bem-sucedido. Apesar de alguns sucessos no campo internacional, como os acordos de Camp David que selaram a paz entre Israel e o Egipto, os tratados do Canal do Panamá que permitiram a restituição a este país da faixa de território que Washington ali administrava desde o início do século e um acordo para a redução de mísseis balísticos assinado com a URSS.

Em Novembro de 1980, este vulto do Partido Democrata era o rosto de um país enfraquecido, que parecia à beira da decadência. Foi derrotado nas urnas pelo republicano Ronald Reagan - que prometia «um novo amanhecer na América».

Mas Carter soube reconstruir a sua imagem. E é hoje considerado, sem favor, um dos melhores antigos presidentes dos EUA, tendo recebido em 2002 o Nobel da Paz. Pelos seus esforços na promoção da democracia, da justiça social, das condições sanitárias e dos direitos humanos um pouco por todo o globo.

O Centro Carter, que fundou em 1982 com a sua mulher, Rosalyn, é uma organização de referência, à escala mundial, para avaliar campanhas e resultados eleitorais. Em Julho, não hesitou em considerar fraudulento o escrutínio presidencial na Venezuela, ganho por Edmundo González, o candidato da oposição - que acabou perseguido, ameaçado e exilado pela ditadura militar de Caracas.

 

Em Maio mencionei-o no DELITO: figurava na galeria dos escassos sobreviventes actuais entre os militares mobilizados na II Guerra Mundial. Com Mel Brooks, Dick Van Dyke e alguns outros.

A 1 de Outubro assinalei aqui o centésimo aniversário deste homem de perpétuo sorriso. Tornara-se já o chefe do Executivo norte-americano com maior longevidade de sempre, ultrapassando George Bush, falecido aos 94 anos em 2018. Mas permaneceu activo quase até ao fim. E ainda fez questão de votar na eleição presidencial de Novembro, optando naturalmente por Kamala Harris.

«Aliviar o sofrimento» era um dos lemas deste cristão convicto, que se manteve fiel à fé que professava. Quando falhou, nunca foi por défice de idealismo mas talvez por acreditar em excesso na bondade humana. Até nisto dir-se-ia hoje um homem de tempos muito distantes. De tempos que parecem nunca mais voltar.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.12.24

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José António Abreu: «Na sequência da aplicação de um coeficiente de sustentabilidade, a partir de 2015 os anos apenas poderão retirar-se sem penalizações após o cumprimento integral de 366 dias (367 se forem bissextos).»

 

José Navarro de Andrade: «Ainda não houve neste século, nem na literatura nem no cinema, personagem com a dimensão comparável à de Walter White (o definitivo Bryan Cranston) de “Breaking Bad” (“Ruptura total”) quer lhe peguemos pela tragédia quer pela farsa. Com a temeridade própria dos desesperados, Walter White arrasta o seu cancro terminal ao longo de 62 horas, perverte toda a ordem estabelecida, seja a familiar, seja a legal, seja a criminal (porque no crime há uma ordem muito estrita) no passo em que eleva o sarcasmo, o farisaísmo e um sentido utilitário dos escrúpulos a patamares inéditos, sobretudo porque nunca resvala para fora das baias do quotidiano e não incorre na fastidiosa panóplia de tons épico, melodramático ou lírico, que habitualmente se usa para enlear o sentimento do espectador.»

 

Luís Naves: «Alguns países europeus têm dúvidas sobre as sanções à Rússia. A discussão, agressiva e até agora discreta, vai aquecer nos próximos meses. Os americanos estão a exercer forte pressão sobre países que, por serem mais afectados pela destruição do seu comércio com a Rússia, não querem aumentar a parada nas sanções. O facto é que a ordem mundial financeira e política não pretende tolerar o desafio colocado por Vladimir Putin, que fez uma jogada de alto risco na Ucrânia e agora tem poucas hipóteses de conseguir sair da situação.»

 

Eu: «Leio num diário o título “Estado Islâmico terá executado quase duas mil pessoas desde Junho”. E uma vez mais me interrogo até que ponto um certo jornalismo asséptico, capaz de conferir um tom de relatório à mais chocante tragédia humana, pode por isso mesmo ser cúmplice da barbárie. A utilização das palavras nunca é neutra. Quem opta pelo verbo “executar” – como se estivéssemos perante o cumprimento de uma obrigação legal - em vez de “assassinar”, “liquidar”, “massacrar” ou simplesmente “matar”, está de algum modo a contemporizar com um movimento terrorista que faz do desprezo pelos direitos humanos uma divisa e uma bandeira.»

Setúbal, pós-Natal 2024

Pedro Correia, 29.12.24

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«Aparentes senhores de um barco abandonado, / nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem... / Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado, / se justifica, enflora, a secreta viagem!»

(David Mourão-Ferreira)

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«Lá vão os cercos plo Sado abaixo, / Ao mar vizinho, à sua lida. / "Voltem pesados, co’a borda em baixo!" / Gritam gaivotas em despedida

(Luís Cabral Adão)

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«O rio abre um largo e irregular estuário, as águas entram profundamente pela terra dentro.»

(José Saramago)

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«Ah seja como for, seja por onde for, partir! / Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo,  pelo mar.»

(Álvaro de Campos)

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«Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado, / Mansa corrente deleitos, amena, / Em cuja praia o nome de Filena / Mil vezes tenho escrito e mil beijado.»

(Bocage)

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«Todo eu me alevanto e todo eu ardo. / Chego a julgar a Arrábida por Mãe, / quando não serei mais que seu bastardo.»

(Sebastião da Gama)

Fotos minhas

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.12.24

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José António Abreu: «Quase publiquei isto por engano.»

 

José Navarro de Andrade: «A duração das cenas permite entender “O lobo de Wall Street” como um filme de actores – em memória do confuso cinema dos sixties – com as alterosas dificuldades inerentes ao conflito entre uma ampla latitude de planos para especificarem as personagens mas sem qualquer margem para apontamentos digressivos e especulações histriónicas. Que semelhantes e fatigantes propriedades estejam a cargo de um director de 72 anos e de uma montadora, a infalível Thelmas Schoomaker, de 73 anos, é obra de se lhes tirar o chapéu.»

 

Eu: «Tive a honra e o privilégio de trabalhar no DN durante 15 anos - ou seja, dez por cento da vida do matutino da Avenida da Liberdade - como repórter parlamentar, grande repórter, editor, editorialista e membro do Conselho de Redacção. Conheci lá excelentes profissionais e deixei lá muitos amigos, vários dos quais infelizmente já fora dos quadros do jornal, sobretudo na voragem dos dois despedimentos colectivos ali ocorridos - o primeiro em Janeiro de 2009, o segundo em Junho deste ano. Não tenho a menor dúvida: com os profissionais afastados, nas duas ocasiões, formar-se-ia o maior e mais competente elenco jornalístico do conjunto da imprensa portuguesa

Reflexão do dia

Pedro Correia, 28.12.24

«Ao longo de décadas, por cupidez e preguiça, por espírito snob e ganância, por facilidade e irresponsabilidade, a Europa deixou definhar a sua indústria, subsidiou a sua deslocalização, fomentou o recurso às empresas do Terceiro Mundo e entregou à China toda a sua capacidade manufactureira. A Europa libertou-se da sua sujidade, do seu lixo e da sua poluição: à custa da sua independência.

Por miopia e ilusão, a Europa entregou-se nas mãos da Rússia, do seu gás e do seu petróleo, enfraquecendo-se e fortalecendo aquele que é seguramente o mais vil dos actuais impérios à face da terra.»

 

António Barreto, no Público

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