Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Leituras

Pedro Correia, 30.11.24

550x.webp


«Sem universalismo, não há argumentos contra o racismo, apenas uma série de tribos a disputar o poder. E se é a isso que a história política se resume, não há forma de manter uma ideia sólida de justiça. Mas sem compromissos para aumentar a justiça universal, não podemos lutar coerentemente pelo progresso.»

Susan Neiman, A Esquerda não é Woke (2023), p. 124

Ed. Presença, 2024. Tradução de António Costa Santos

Blogue da Semana

Paulo Sousa, 30.11.24

Dez anos após a detenção de José Sócrates, vale a pena recordar o famigerado Câmara Corporativa. Na época de ouro da blogosfera, o primeiro-ministro de então, além do cerco levantado à imprensa, não podia deixar a blogosfera sem réplica.

Hoje sabe-se que os autores deste Câmara Corporativa eram avençados pagos por Rui Mão de Ferro, sócio do igualmente famigerado Carlos Santos Silva, o melhor amigo do que veio a ser o recluso 44. Os autores do blogue escreviam sob pseudónimo. Havia na imprensa, na que baixou a cerca, quem teimasse que conhecia pessoalmente o também mui famoso Miguel Abrantes, e que não era um pseudónimo mas pessoa real, cidadão e contribuinte.

Muita água já passou debaixo das pontes, mas louvo o facto do referido blogue continuar disponível para apreciarmos aqueles tempos, aquela chama, aquela falta de freio.

Convido por isso à leitura de um dos postais em que se defendia a honra da licenciatura do chefe mandante, e se atacavam "os bufos profissionais e de inventores de estórias" do Público.

Este é o blogue da semana, que nunca deixará de ser o espelho de uma década. 

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 30.11.24

dulce.jpeg

Hoje lemos: Jenny Colgan, "A Livraria dos Finais Felizes".

Passagem a L-Azular: "Algumas pessoas enterravam os seus medos na comida e algumas na bebida, e algumas no planeamento de compromissos e casamentos elaborados e outros eventos da vida que ocupavam todos os momentos livres do seu tempo, para o caso de pensamentos desagradáveis ​​se intrometerem. Mas para ela, cada vez que a realidade, ou o lado mais negro da realidade, ameaçavam invadir, recorria sempre a um livro. Os livros eram o seu consolo quando estava triste; os seus amigos quando estava sozinha. Remendaram-lhe o coração quando estava partido e encorajaram-na a ter esperança quando estava deprimida."

Eu não sei como acontece convosco, sempre que se sentem mais em baixo (ou "azuis" se preferirem, apesar de eu me sentir sempre feliz de saber estar azul). Eu tenho as minhas coisas favoritas, que me ajudam a ultrapassar as fases menos boas da vida. Uma comida que me lembra a infância, uma bebida que me lembra a meninice, uma música que me lembra a adolescência, um agasalho que me lembra a maternidade, uns quantos filmes que me fazem sentir feliz entre lágrimas e sorrisos e todos os livros que li, e aos quais volto sempre que preciso de um carinho, porque somos velhos amigos, que se sabem acariciar e confortar mutuamente. Prefiro-os aos novos, que dizem muito, mas não lhes sinto a mensagem. Muitos já li oito, nove, dez vezes. Sei-os de cor. Somos e seremos sempre cúmplices no esforço de entender o presente.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.11.24

21523202_SMAuI.jpeg

 

José António Abreu: «Ontem não o acompanhei e hoje apenas assisti ao momento em que António Costa aproveitava o início do discurso final para desmentir todos os que o acusam de não ter boas ideias, sem custos excessivos para o erário público, saudando os presentes. Depois fui almoçar.»

 

Luís Naves: «Um historiador de arte foi ao cinema e ficou estupefacto ao ver numa das cenas do filme, pendurada sobre a lareira, uma obra desaparecida. Interessou-se pelo caso, fez perguntas aos produtores da película e descobriu que o “adereço” tinha sido comprado por tuta-e-meia num antiquário da Califórnia, parecendo perfeito para decorar a cena do filme Stuart Little. (...) Afinal, a obra era uma preciosidade europeia perdida, pintada por Robert Berény (1887-1953), um dos mais importantes mestres húngaros do século XX.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Pois é, as escolas privadas, que vivem e enriquecem com as subvenções dos contribuintes, é que são boas. As secundárias e também as universidades apadrinhadas pelo ex-primeiro-ministro Cavaco Silva, de onde têm saído os "visionários" que há uma década governam Portugal. Convém não esquecer.»

 

Eu: «António Costa falou bem a abrir e a fechar um congresso que pouco teve de empolgante - como era de prever, dadas as circunstâncias. É certo que quase nada detalhou das receitas que preconiza para o crescimento económico do País e a sua reiterada intenção de obter maioria absoluta nas legislativas parece um alvo inalcançável. Mas interpelou com vigor as forças à sua esquerda, exigindo que abandonem o gueto do protesto. (...) Este era o principal desafio e acabou por ser ganho - em benefício do partido e, por extensão, da democracia portuguesa. Porque um PS que permaneça órfão ou refém do rasto de Sócrates será incapaz de trilhar com sucesso as rotas do futuro.»

"Cancelamentos culturais" na América (5)

Pedro Correia, 29.11.24

TT18.jfif

 

«Gary Garrels era considerado um dos mais qualificados curadores de museus dos EUA. Era, mas já não é. Saiu de cena, vítima de um linchamento moral. Sem presunção de inocência. Vítima de uma onda de histeria que tem feito rolar várias cabeças.

sfmoma.jpg

Aconteceu em Julho de 2020, quando exercia funções de curador de pintura e escultura no Museu de Arte Moderna de São Francisco (SFMOMA). Eram os duros tempos da pandemia, que provocaram um rombo na instituição: cerca de um terço dos trabalhadores ficaram em lay-off ou com horário reduzido. Numa reunião geral com os funcionários por teleconferência para definir os protocolos sanitários, Garrels inflamou as teses anti-racistas mais radicais ao concluir a sua intervenção com esta frase: "Não deixaremos de angariar obras de arte de homens brancos." O contrário, sustentou, seria cair numa "discriminação inversa".

Bastou para acender o rastilho. Emergiu uma petição, com 304 assinaturas, a exigir que fosse exonerado. Por ter usado "linguagem racista" própria de "supremacista branco", o que o tornava "claramente inadequado para desenvolver a agenda de inclusão e equidade" delineada para o SFMOMA.»

 

Do meu livro TUDO É TABU (Guerra & Paz, 2024), p. 108

Qual deles preferem?

Dezasseis proto-candidatos à sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa

Pedro Correia, 29.11.24

Entre os pré-candidatos, proto-candidatos, putativos candidatos e aqueles que adorariam candidatar-se à Presidência da República mesmo sabendo não ter a menor hipótese de lá chegarem, enumerei uma lista de dezasseis, que passo a reproduzir por ordem alfabética. Desta lista sairá quem vai suceder a Marcelo Rebelo de Sousa. *

Espero que quem me lê aproveite para destacar o(s) candidato(s) da sua preferência. E também que digam quem são aqueles que em circunstância alguma terão o seu voto.

Se não for pedir muito, espero ainda que possam justificar o que os leva a assumir tais opções de apoio ou rejeição, desde já, na próxima corrida ao Palácio de Belém.

 

Eis a lista:

images.jpg

ANA GOMES

anre.jpg

ANDRÉ VENTURA

António_Guterres,_23.03.23.jpg

ANTÓNIO GUTERRES

antonio-jose-seguro.jpg

ANTÓNIO JOSÉ SEGURO

av.webp

ANTÓNIO VITORINO

ass.jpg

AUGUSTO SANTOS SILVA

cc.jpg

CARLOS CÉSAR

hen.jpg

HENRIQUE GOUVEIA E MELO

db.jpg

JOSÉ MANUEL DURÃO BARROSO

aguiar.jpg

JOSÉ PEDRO AGUIAR BRANCO

Luis-Marques-Mendes.jpg

LUÍS MARQUES MENDES

mario-centeno.jpg

MÁRIO CENTENO

paulo-portas-1.jpg

PAULO PORTAS

author_photo_185.png

PEDRO SANTANA LOPES

rui.jpg

RUI MOREIRA

rui rio.jpg

RUI RIO

 

* Da lista não constam Leonor Beleza e Pedro Passos Coelho, que já se auto-excluíram de viva voz.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.11.24

21523202_SMAuI.jpeg

 

José António Abreu: «Nos tempos actuais - e ainda que a ciência o tenha validado -, a química é um conceito pouco exacto para descrever o mecanismo de atracção entre duas pessoas. As reacções químicas tendem a alterar significativamente os elementos que as sofrem. Mais correcto e moderno será ver as relações como redes Wi-Fi, nas quais se saltita entre hotspots consoante a força do sinal.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Recordo apenas que Ayrton Senna da Silva foi vice-campeão do Mundo de Karting no Estoril, naquele campeonato que definitivamente o lançou antes de iniciar a sua fulgurante ascensão no automobilismo mundial.»

 

Teresa Ribeiro: «Fazer o luto ao mesmo tempo que se trata de todas as questões práticas associadas ao fim de uma vida é tarefa de adultos. E enquanto escolhemos, guardamos, oferecemos, vendemos e profanamos coisas, a morte, a morte, a morte é a conversa intelectual e obsessiva dos objectos que nos cercam. Nós atarefados a tratar de intendências e eles, junto com as paredes, a zurzirem. É preciso, no entanto, que se lhes diga que isso de os objectos sobreviverem aos donos é pura ficção. É claro que também morrem. Morrem quando mudam de mãos, morrem quando vão para o lixo e até quando vão para reciclar. A diferença - tenho que lhes dizer na última vez que lá for - a diferença é que podem, se tiverem alma, morrer de várias vidas.»

 

Eu: «Sócrates igual a si próprio: na manhã da abertura do congresso do PS não resiste em dominar as atenções com uma declaração telefónica que fez a manchete do Expresso. Como costumava dizer Hercule Poirot, "o fundamental é conhecermos a natureza humana".

Moçambique: assim se vê a força do PC

jpt, 28.11.24

Jornalismo a lutar contra o silêncio

Pedro Correia, 28.11.24

aaa.jpg

 

Viu a morte à frente. Esteve quase a ser transformado em tocha humana, condenado à morte por bestas selvagens, dentro do autocarro da Carris Metropolitana que conduzia no exercício da profissão. Aconteceu na trágica noite de 23 de Outubro em Santo António dos Cavaleiros (Loures).

Permaneceu vários dias internado na unidade de queimados do Hospital de Santa Maria. Aos 42 anos, poderá ficar com lesões irreparáveis nos pulmões.

No dilúvio noticioso, poucos quiseram saber dele. Não passou de nota de rodapé. De início, nem teve direito a nome: era apenas «o motorista». À semelhança daquele infeliz imigrante assassinado à pancada em 2020 no SEF. Esse era «o ucraniano». Como se algumas vítimas fossem «menos iguais» do que outras.

Só uma semana mais tarde soubemos que se chama Tiago: ganhou enfim o elementar direito à identidade.

Mais de um mês depois, falou enfim. Relatou, em depoimento impressionante, o que lhe sucedeu naquela última paragem da última viagem nocturna de uma rota que bem conhecia. Num trabalho informativo com assinatura: Sandra Felgueiras, ontem, no Jornal Nacional da TVI. Vitória do jornalismo na persistente luta contra o silêncio.

É imperioso ouvir o Tiago. E meditar naquilo que nos diz.

fogo.jpg

Foi sem querer!

Paulo Sousa, 28.11.24

Vasco Lourenço, autor e actor do 25 de Novembro, numa entrevista a Daniel Oliveira no podcast do Expresso Perguntar não ofende, explica que não esteve presente na sessão solene que assinalou os 49 anos desta data por recusar equipará-la ao 25 de Abril. E acrescenta ainda: "Eu não posso aceitar é que se queira dar a ideia que o 25 de Novembro foi o contrário, foi a vitória dos que perderam na altura".

Considerando estes argumentos, há qualquer coisa que não bate certo. Ora, ignorando mais detalhes, se o 25 de Abril é feriado nacional, o Dia da Liberdade, qual o risco de equiparar um feriado nacional com uma sessão solene na Assembleia da República?

O outro ponto é a referência aos que "perderam na altura". Não se estará a referir ao PCP, pois os comunistas sacrificariam alguns dos seus inúmeros imóveis para que qualquer referência a esta data fosse erradicada. Estará sim a referir-se à direita. Ora, segundo Vasco Lourenço, a direita derrotada pretende agora festejar a sua derrota. O que de repente pode parecer um exercício masoquista, muda de aspecto com a reacção da esquerda, pois, perante a vontade da direita em festejar a sua derrota, a esquerda põe-se de fora. Parece uma função circular numa folha de cálculo. Dá erro. Desafia os axiomas da lógica.

Sempre que não é a esquerda que está no poder, Vasco Lourenço, que faz parte dos autodenominados donos do regime, logo vem a palco lembrar que o 25 de Abril está a ser atraiçoado. Talvez o regime que ele tentou criar, e para o qual, exactamente no 25 de Novembro, foi importante, não devesse permitir que a direita, moderada ou não, alguma vez pudesse estar no poder. Talvez o regime que resultou do tortuoso processo de democratização não coincida com o regime que ele imaginara. Nesse caso devia conseguir verbalizar aquela frase do "Foi sem querer!" a que as crianças recorrem quando estão a jogar à bola e em vez de acertarem na baliza partem a janela do vizinho.

Uma questão sobre Moçambique

jpt, 28.11.24

mitande.jpg

"Homem forte de corange eestá preceguido com os inimigos" (Mitande, Mandimba, Niassa, 2002).
 
Esta frase, tão denotativa de uma mundividência, é por demais rica, polissémica, para ser manipulada para uma só situação. Mas ainda assim uso-a para a dedicar aos compatriotas do seu autor que clamam "este país é nosso!" e não de uma "mamã" ou de uns "papás". No fundo, apenas gente republicana, irada face a uma nobreza anquilosada.
 
Quanto a nós, cá de longe, não nos devemos imiscuir? Talvez sim, talvez não. Mas quando vemos, como hoje se viu com abundância, as forças militares e paramilitares a terem acções violentíssimas contra população desarmada, há algo que podemos - e devemos - perguntar.
 
Devemos perguntar isso ao presidente do Instituto Camões (o antigo Instituto da Cooperação), ao secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, aos ministros dos Negócios Estrangeiros, da Administração Interna e da Defesa (as tutela envolvidas), ao primeiro-ministro e até ao presidente da República.
 
Há um "Programa Estratégico de Cooperação Portugal-Moçambique 2022-2026" (google-se...). Nele, na sequência do que acontece há já décadas, consta um forte vector de "cooperação" incidindo na formação do oficialato policial e militar moçambicano.
 
Assim sendo, não têm estes nossos eleitos, nossos servidores, algo para nos dizer? Algum rescaldo do que vem sendo feito, algo sobre os frutos deste trabalho do Estado português?
 
Ou não temos nada a ver com isso, é assunto reservado aos dos gabinetes?

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.11.24

21523202_SMAuI.jpeg

 

José Navarro de Andrade: «Os deserdados cantam. Os negros das charnecas do Mississippi, os ciganos andaluzes, os ganhões do Alentejo – e outros, noutros lugares, haverá – cantam para levantarem a voz ao céu e tirarem-se da terra, num instante de liberdade. O canto trabalha como as vacinas: cantam-se os lamentos para aliviar a tristeza e espantá-la para bem longe. Cantar é primitivo, é anterior aos sentimentos e aos sentidos, não se canta por revolta ou submissão, canta-se para desafiar a sorte e o destino. Por isso o cante do Alentejo é irredutível e impermeável ao verniz da cultura; o resto da humanidade, nós, pode escutá-lo - que eles são generosos e partilham-no - mas só os alentejanos é que o sabem.»

 

Luís Naves: «Um País que durante séculos se habituou à impunidade dos poderosos assiste com espanto a uma vaga de inquéritos judiciais. Os altos escalões da administração, a banca, os partidos, tudo isto parecia intocável. E, no entanto, na comunicação social, onde antes se reclamava quase todos os dias por mais transparência e pela remoção imediata das maçãs podres, esta semana quase só se ouviram as vozes daqueles que, sem conhecerem os factos, contestam a actuação dos juízes.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Vender o País a retalho não é bonito de se ver. Mas se daí vier algum proveito, menos mal. Agora que queiram misturar os cavalos com as nossas mulheres é que não me parece grande ideia.»

Eurodeputados portugueses sobre Moçambique

jpt, 27.11.24

maputo.jpg

(Maputo, Av. Eduardo Mondlane, Fotografia de Luísa Nhamtumbo/LUSA)
 
 
De Maputo um amigo moçambicano avisa-me que ontem houve uma sessão no Parlamento Europeu, e deixa-me ligação para esta resenha das intervenções dos eurodeputados portugueses. Chama-me também a atenção para a posição do PCP, enfatizando a justeza das eleições de Outubro e atacando a oposição, bem como a "ingerência externa". (o comunicado daquele partido).
 
E nisso, de imediato, lembro-me do Camarada Pimentel, meu pai. Comunista "ortodoxo", sempre implacável com os "desvios de direita", tipo aqueles "eurocomunismos". Militante até à morte - já contei a história mas repito-a: muito doente, tão mirrado, no hospital, eu no fundo da cama, a minha sobrinha - sua neta querida - junto a ele, e antes de sairmos, hora de visita terminada, disse-lhe "avô, hoje estás com muito melhor aspecto, muito rosadinho". E ele, com um fio de voz, murmurou "rosa por fora, mas vermelho por dentro..." Morreu nessa noite, a última coisa que lhe ouvimos foi essa ironia, até cáustica...
 
Cresci a conversar com o Camarada Pimentel. E continuo nisso, num diálogo que me é intelectualmente profíquo. E moralmente penoso, pois ele, preocupando-se, não me desculpa o desarrumo seguido. E agora mesmo, quando - após ter visto vários filmes de hoje, com a polícia atropelar manifestantes com carros de assalto na Eduardo Mondlane, com soldados ruandeses nesta avenida, de cadáveres assassinados pela polícia no meio da rua em Nampula, etc. - lhe disse a posição do "Partido" sobre a situação de Moçambique, ele - como tantas vezes nas últimas décadas - semicerrou os olhos, meneou a cabeça. E lamentou "a falta de quadros no partido".
 
Eu, como já passa do meio-dia, servi-lhe um cálice de rum, carregado de carinho. E a mim também.

Um banco com vista: Caneiras

Ana CB, 27.11.24

Manhã quente de Verão. O rio leva pouca água. Aqui e ali nota-se a sombra clara da areia por baixo do azul líquido, ou revela-se um tronco preso no leito, que a fraca corrente não consegue arrastar; até os mouchões mais rasos estão visíveis e pujantes de erva verde. Sob a copa larga de um salgueiro, o banco de madeira sem encosto é repousa-pés ideal para quem precisa de matar o tempo até à hora de almoço, pese embora o assento escolhido não seja o banco mas sim uma cadeira de campismo. É domingo, e para quem aqui vive pouco mais haverá para fazer do que contemplar a paisagem e aproveitar a sombra para fugir do calor.

Caneiras 1.JPG

O rio é o Tejo e ao lugar deram-lhe o nome de Caneiras. Fica a uns curtos cinco quilómetros a sul de Santarém e é o aglomerado sobrevivente e ampliado da aldeia avieira ali fundada há mais de um século. O assentamento original terá sido destruído pelas cheias de 1941, e grande parte das construções que vemos hoje também já sofreram a adulteração intrínseca à “modernidade”; mas ainda se notam muitas características das antigas casas avieiras, e continua a ser habitada por alguns pescadores que não desistem do seu modo de vida: sair para o rio em busca da fataça (tainha), do sável ou da quase desaparecida lampreia.

 

Os nómadas do rio Tejo

 

Não há datas certas, mas estima-se que foi a partir de meados do século XIX (e sobretudo na primeira metade do século XX) que famílias de pescadores da zona de Vieira de Leiria começaram a deslocar-se para as áreas ribeirinhas do Tejo entre Abrantes e a Póvoa de Santa Iria, fugindo aos rigores do Inverno que não lhes permitia procurarem o seu sustento no mar. Trocavam os barcos de mar que usavam na arte xávega por embarcações de traça semelhante, mas bastante mais pequenas – as bateiras, a que os avieiros chamam simplesmente “barco” – fazendo delas a sua casa temporária. Era na bateira que pescavam, comiam e dormiam, usando um simples toldo para se abrigarem. O homem lançava as redes e a mulher remava, além de organizar toda a vida da família e ir vender o peixe às localidades vizinhas, transpondo para o ambiente do Tejo os papéis que cada um desempenhava na sua terra de origem. Era também na bateira que os filhos iam sendo criados e aprendiam as lides da pesca de rio, que lhes garantiria a sobrevivência no futuro, num tempo em que a vida era muito diferente. A embarcação é de tal modo característica e assumiu uma (óbvia) importância tão grande para estas comunidades que, em 2016, a sua construção e uso foram inscritos no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, com a indicação da necessidade de salvaguarda urgente.

Inicialmente, estas deslocações eram sazonais, e os pescadores voltavam à Praia da Vieira quando o tempo melhorava. Com o crescimento da família e o cansaço dessas idas e vindas, e porque o Tejo (e também o Sado) lhes proporcionavam peixe o ano inteiro, acabaram por se ir fixando nas margens destes rios – primeiro em simples palhotas feitas de caniço, que crescia à beira de água e era material leve e fácil de encontrar, e depois em casas de madeira, assentes sobre estacas, para evitarem ser inundadas quando o rio transbordava as suas margens. Nasciam as aldeias avieiras (de que já falei no meu blogue).

 

A aldeia das Caneiras

 

A partir dos trabalhos de levantamento feitos até à data, foram identificados cerca de 40 assentamentos de avieiros nas margens do Tejo, a maioria deles já desaparecidos ou completamente em ruínas, como é o caso do Patacão, perto de Alpiarça, que tem dois núcleos ainda visíveis mas já em rápido declínio, apesar das tentativas de preservação que foram feitas até há alguns anos. Entre as aldeias que sobrevivem contam-se o Escaroupim, assumido como ex libris turístico da cultura avieira, Porto da Palha (Lezirão) e Palhota, esta última trazida para a ribalta no romance “Avieiros”, de Alves Redol. O aldeamento das Caneiras, talvez por estar muito perto de Santarém, também tem resistido ao desaparecimento, pese embora a descaracterização e a construção desregulada das últimas décadas.

Caneiras 4.JPG

A aldeia é um rectângulo com uma espécie de rua principal que desemboca em nenhures, encaixada entre o rio e a estrada de acesso ao mundo exterior. É ao longo desta estrada que se vêem as construções mais modernas, moradias concebidas com mais ou menos gosto, rodeadas de hortas e pequenos pomares. O núcleo mais antigo das Caneiras está bem escondido por trás destas casas vulgares, e até parece que o espírito recatado e quase impenetrável dos antigos pescadores ainda paira por ali – as comunidades avieiras eram muito fechadas, assentes no núcleo familiar e segregadas tanto por vontade própria como por animosidade da população rural, mantendo ao longo dos tempos algum secretismo sobre o seu modo de vida e as suas artes piscatórias.

 

A miscelânea arquitectónica das Caneiras tem tanto de surpreendente como de fascinante. As antigas palhotas palafíticas têm vindo a ser transformadas cada uma à sua maneira. Nas que ainda permanecem elevadas em relação ao solo, as estacas de madeira foram substituídas por pilares de alvenaria. As tradicionais varandas de acesso ao piso superior já quase desapareceram, e poucas construções as mantêm – a maioria das pessoas prefere espaço interior em detrimento do espaço de socialização, uma das funções principais das varandas das casas avieiras. A madeira ainda está bastante presente, em versões de cor escura e variados estados de conservação; são, para mim, as construções mais bonitas da aldeia, algumas realçadas com pormenores em branco ou cores vivas. É nelas que se notam os pontos de contacto com as casas típicas da região de origem dos avieiros, sobretudo as da Praia da Tocha e, mais tenuemente, as da Costa Nova.

Não faltam também os atentados arquitectónicos ao carácter original da aldeia, em que a alvenaria substituiu os materiais anteriormente utilizados, a ponto de agora não passarem de vulgares paralelepípedos com telhado, quase sempre pintados de branco e com as faixas azuis ou amarelas que voltaram a ser, em tempos recentes, populares na construção que se quer fazer parecer tradicional, mesmo quando completamente deslocadas do contexto. Deste mal enferma igualmente a Capela dedicada ao Sagrado Coração de Maria, um edifício desenxabido cuja única desculpa talvez seja o facto de datar de 2006 (embora tenha ares de reconversão de algum edifício anterior).

Num arroubo de imaginação e quiçá influência forasteira, alguém resolveu forrar o exterior de uma das casas com chapa ondulada e juntar-lhe um pormenor americanizado. Não é que seja feio – é só descabido. Prefiro a tinta a descascar e o telhado arqueado de uma outra casa, com a sua chaminé periclitante (as chaminés também são um acrescento moderno nas casas avieiras).

Caneiras 14.JPG

Na rua principal há também um banco, mas este não tem nada a ver com o da beira-rio. É tosco e torto, tal como o casinhoto que está ao lado, uma espécie de telheiro abrigado para acumular tralhas diversas. Tento imaginar o que terá levado alguém a colocá-lo ali. Talvez para apanhar sol nos dias frios de Inverno? Para conversar com quem passa? Alguém que não tinha nada para fazer e decidiu construí-lo? As questões ficam sem resposta, porque por aqueles lados não se vê vivalma.

Caneiras 15.JPG

Ao entrar numa espécie de beco, surge a casa que de imediato elejo como o supra-sumo do kitsch da aldeia. Uma manta de retalhos com metade em madeira escura e a outra em chapa ondulada, o rés-do-chão pintado de azul Chefchaouen, aparelho de climatização e antena parabólica bem visíveis, à mistura com cabos vários, uns trepando pelas paredes, outros cruzando o ar. Ao pé da porta, mais um banco de jardim, este bem harmonioso, em madeira e ferro forjado, tendo por companhia duas cadeiras plásticas rosa-bombom saídas directamente do mundo da Barbie. Com os seus anacronismos, parece-me ilustrar bem o espírito geral desta aldeia que tem crescido ao sabor do acaso, um pé na tradição e preservação cultural e outro na vontade de se modernizar.

Caneiras 16.JPG

De volta ao carro, passo outra vez pela área junto ao rio, que se nota ter sido alvo de arranjo há não muitos anos: deck amplo em madeira, delimitado por postes baixos ligados com corda grossa, intercalados com painéis que exibem fotos da actividade piscatória dos avieiros. Árvores frondosas, bem cuidadas, e uma zona de merendas ao fundo, ao lado do parque de estacionamento. O banco foi abandonado, mas a cadeira de campismo colorida ainda lá está, sossegada, à espera do seu ocupante habitual. Tal como a aldeia, suspensa no limbo de decisões por tomar e herdeira de um passado que em breve será considerado obsoleto, decerto para dar lugar a mais um destino “típico” a explorar turisticamente.

Caneiras 17.JPG

Fonte usada para pesquisa: http://www.e-atlasavieiro.org/

 

Sugestões de leitura:

Livros avieiros.jpg

Pág. 1/9