A Alexandra Leitão, a conhecida Pasionaria (versão séc. XXI) do PS, ouvi que a parte do discurso de Luís Montenegro em que este prometia ir rever o conteúdo da disciplina de Cidadania, libertando-a das amarras de projectos ideológicos, foi a mais aplaudida do Congresso; e a Pacheco Pereira, o mais conhecido militante de um PSD que terá existido em tempos, que aquele discurso era, de facto, em muitos aspectos, próximo do Chega.
Este aplauso indignou aquelas duas luminárias por ser prova da deriva do PSD para a extrema-direita.
Estranho caso: O PSD de Montenegro fez uma cerca higiénica em torno do Chega antes e depois das eleições – não é não. E agora que tem garantida a passagem do Orçamento, e que para isso não requereu o apoio daquele pestífero partido, encosta-se a ele. É estratégia de grande subtileza: primeiro ignoro-te e depois pilho-te as ideias, de modo que os mesmos eleitores que me elegeram a mim voltam a eleger-me mas com um programa comprado àqueles que escolheram outro mas agora, desvanecidos, vêm a meus braços anichar-se juntamente com os que já cá estavam.
Um pouco subtil demais, talvez. Eu, que sou uma pessoa simples, vou mais por explicações terra-a-terra: o aplauso foi consequência do fartum em que está toda – toda – a gente que não é de esquerda, e alguma que é, da consagração nas leis e nas escolas de opiniões que têm livre curso nos acampamentos do Bloco e no bem-pensismo abusador e cretino de não poucas universidades americanas, mas que a maior parte das pessoas comuns rejeita que seja enfiado a martelo nas cabeças inocentes dos seus filhos.
A estratégia da extrema-esquerda (e, para este efeito, nela incluo boa parte do PS actual) é cristalina: Estas crianças, quando crescerem, serão saudavelmente de esquerda, não terão a cabeça cheia lá daquelas coisas retrógradas que aprendem em casa.
A tese não é muito consistente porque, por exemplo, décadas de doutrinação comunista não produziram comunistas. Os infantes, já adultos, quando aqueles regimes caíram tenderam a ficar desagradavelmente reaccionários. Mas vivemos em democracia e os pais (muitos naquela plateia do Congresso) não levam a bem que os seus filhos sejam educados pela mesma gente que derrotaram nas urnas: Nem eles são o Estado nem este é dono da educação das crianças, excepto naquela parte consensual que é o currículo tradicional com actualizações científicas ou pedagógicas mas sem punhos no ar nem bandeiras de engenharia social e de costumes.
Com clareza: A disciplina de Cidadania nasceu no tempo da Geringonça e veio tingida, como outras medidas, da necessidade de agradar às moçoilas e aos imberbes do BE e aos matusaléns do PCP. Se a direita tivesse as mesmas pulsões autoritárias punha lá coisas como o respeito do direito de propriedade, a importância das igrejas cristãs na conformação de comportamentos socialmente responsáveis, o respeito dos mais velhos e da autoridade, e um longo etc. E peço com grande humildade desculpa mas a ideia, que parece ser relativamente pacífica, de que o que se deve ensinar são as listas de direitos que a Constituição consagra, ignora que a parte que vale a pena conhecer é ministrada pela vida social e de relação (as crianças não são estúpidas e vão assimilando) e a parte que não vale a pena conhecer deve ser deixada para idades mais maduras, e mesmo assim com a esperança de não virmos a ter um número excessivo de constitucionalistas, que já existem avonde.
Resta ainda que, ao contrário do dito popular, o saber ocupa lugar. E atulhar as juvenis cabeças com tretas voluntariosas rouba espaço a assuntos sérios (Português, Inglês, História, Matemática, Geografia, Ciências da Natureza, etc.). Que se danem os professores de Cidadania, que recolham ao ensino de coisas menos etéreas.
E então, será mesmo assim, a cidadania, que é o conjunto de regras civilizadas que regem a vida em sociedade, não é a mesma coisa que a Cidadania?
Não é. Vejamos o que o programa diz (descontando as parlapatices empoladas do introito e as intragáveis considerações que poluem o texto, todas redigidas em pedagogês ou lá o que é aquilo):
Obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade (porque se trata de áreas transversais e longitudinais): Direitos Humanos; Igualdade de Género; Interculturalidade; Desenvolvimento Sustentável; Educação Ambiental; Saúde.
Trabalhado, pelo menos, em dois ciclos do ensino básico: Sexualidade; Media; Instituições e participação democrática; Literacia financeira e educação para o consumo; Segurança rodoviária; Risco.
Com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade: Empreendedorismo; Mundo do Trabalho; Segurança, Defesa e Paz; Bem-estar animal; Voluntariado; Outras, de acordo com as necessidades de educação para a cidadania diagnosticadas pela escola.
Uf, tirando toilettes, música e serviços de mesa à francesa ou à inglesa, está aqui tudo.
E como em quase todas aquelas matérias há escolhas e opiniões diferentes fui tentar ver quais as consagradas pelo pensamento ministerial. O documento intimida porque ainda antes de se chegar à substância vê-se um leitor destemido submergido por um aluvião de textos de referência produzidos por uma lista de ilustres especialistas em paleio de chacha, e uma espessa floresta de instruções e sugestões produzidas por “serviços” do Ministério da Educação. E a redacção é de tal modo vaga, remetendo cada texto para outro que define melhor de que raio é que se está a falar, o qual por sua vez remete ainda para outro, que um professor (“professor e professora”, no jargão que esta gente usa) que queira conscienciosamente ensinar os seus alunos (“alunos e alunas”, no mesmo dialecto) acaba por desistir, optando por uma versão das coisas próxima da tónica geral destas pedagogias – fascismo nunca mais, 25 de Abril sempre, toda a diferença entre os sexos é uma construção social e todas as culturas são iguais, excepto as que tenham uma componente imperialista, caso em que fica a burra nas couves.
Exagero? Nem por isso, vejamos alguns parágrafos:
Em cada escola a Estratégia da Educação para a Cidadania enforma a cultura escolar que se exprime através das atitudes, dos valores, das regras, das práticas quotidianas, dos princípios e dos procedimentos adotados tanto ao nível global da escola, como ao nível da sala de aula. O sucesso da implementação desta Estratégia está intrinsecamente ligado à cultura de cada escola e às oportunidades dadas aos/às alunos/as para se envolverem na tomada de decisões, nomeadamente nas que os/as afetam.
Comentário: Há escolas que privilegiam o conhecimento e a disciplina e outras onde reina a bandalheira, por uma multiplicidade de razões. Pois bem: o que há a fazer é integrar valentões no processo de decisões, para efeito de a anarquia ser total.
Os projetos desenvolvidos na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento e outros projetos realizados na escola devem estar articulados com a Estratégia de Educação para a Cidadania da Escola e ser desenvolvidos preferencialmente em parceria com entidades da comunidade etc. etc.
Comentário: As “entidades da comunidade” são grupos militantes de qualquer coisa (só esses é que têm tempo e energia para investir em propaganda) ou organismos oficiais desejosos de exibir virtude.
… o desenvolvimento em cada escola da Estratégia de Educação para a Cidadania possa constituir uma das vertentes da sua avaliação externa, produzindo conhecimento que potencie a realização de estudos e projetos de investigação dos quais possam resultar recomendações ao nível macro do sistema educativo.
Comentário: Papel, muito papel, estudos, muitos estudos, reuniões, muitas reuniões. Criamos assim postos de trabalho para inúteis num processo circular de autojustificação (mais à frente logo aparece uma Equipa Nacional de Educação para a Cidadania e um membro do Conselho Pedagógico em cada escola – toma lá Mário Nogueira, vais ter muitos colegas na profissão de não ensinar).
Nesta altura já estava descoroçoado por não conseguir encontrar, de conteúdos concretos da disciplina, coisa nenhuma; e porque já tendo escrito quase três páginas precisar de muitas mais para o trabalho patriótico de incinerar esta montanha de lixo, razão pela qual suspendi a apreciação do monturo. Mas, ó abençoado Google, descobri um sítio onde se explica aos desnorteados professores em que águas devem navegar. Tem vídeos animados, feitos por gente que seria desejável tivesse talento, e logo o primeirinho propõe-se tratar da “construção da identidade” e aconselha aos moços (e às moças, ia esquecendo), logo ao princípio: Pensa o teu corpo, sente a tua vida, constrói a tua história, desenha o teu caminho. Após o que diligentemente se explica como fazer essas coisas todas da forma consagrada pelos autores, sem prejuízo do que no vídeo se diz lapidarmente: Crescer é ser-se cada vez mais quem se é, verdade que confundirá decerto aqueles professores que nunca conheceram pessoas que fossem cada vez menos quem são. E como na adolescência há comportamentos de risco, vêm a seguir os paternais conselhos que dá o pai, a mãe, a tia, o irmão ou o amigo mais velho, o médico, a televisão, os jornais e as revistas, tudo agora consubstanciado na figura do sôtor e no vídeozinho inacreditavelmente chato.
Vem a seguir o género, que é definido como um “construto social”, tolice extremo-esquerdista consagrada nos acampamentos de okupas, nos bares piolhosos de algumas universidades e, agora, por mandato governamental, nas escolas. Todo o arrazoado, relativamente extenso e que por isso não transcrevo, merece leitura para se perceber o tipo de formatação a que, a coberto de imaginário progresso pedagógico e científico, se pretendem sujeitar crianças e adolescentes. E quem quiser realmente perceber onde já vai o delírio normativista não tem mais do que ver este vídeo da RTP Ensina onde se defende a existência de um terceiro sexo (o xis) e a necessidade de se alterar a linguagem para acomodar este “facto”.
A disciplina de cidadania não precisa de ser revista pelo governo do dia (abrindo a porta para que outro no futuro lá enfie uma grelha diferente de dislates), precisa de ser eliminada. Vai acontecer?
Provavelmente não. O actual ministro da Educação recomenda-se como pessoa que fala pouco e que, parece, anda a resolver problemas com discreta eficiência. Porém, é descrito como pessoa ponderada e politicamente moderado, isto é, centrista.
O Centro é onde se encontra a água chilra do conformismo e da inércia. Donde, o provável são retoques.
Só retoques. É pena.