Como é que se topa um glutão à mesa? Explico:
A consulta da lista é momento de demorado exame, madura reflexão e eventual consulta ao empregado no caso de o prato ter, como às vezes tem, uma designação confidencial ou para especialistas (“bife à casa” – casa de quem?; perdiz à conventual – mas qual convento?).
Segue-se o problema do que os restantes comensais vão pedir. Porque a ideia de que cada qual encomende o que lhe apeteça é conceito que o glutão rejeita. Segundo o próprio porque assim se evitam erros, na realidade porque tem um medo pânico de que, chegado o conduto, conclua que afinal devia era ter encomendado o que vem para o vizinho.
Com frequência assume para si o papel de dirigente das operações, servindo de intermediário para o empregado. E como não toma nota de nada, antes vai memorizando o que cada um diz, que entremeia com comentários e sugestões, cantarola no final o resultado com defeitos, que os companheiros de mesa vão corrigindo com precipitação e surpresa, o destinatário da lista improvisada, estoico, tentando navegar na algaraviada e na confusão que se estabeleceram.
Admitindo que não haja enganos (e raramente há, uma singela homenagem a quem tem a obrigação de, com simpatia, perceber no nevoeiro das contraordens o que cada um quer) regressa-se ao convívio e, nesse intervalo, dir-se-ia que o glutão é uma pessoa normal.
O problema é quando chegam as travessas ou os pratos. Porque responde mecanicamente à pergunta que ficou em suspenso, ou titubeia distraidamente uns apostos ao que estava a dizer, os olhos brilhando de gula e seguindo com fixidez os maneios do empregado. Mandam as regras que se comece só quando toda a gente está servida. E o sacrifício nesse pequeno intervalo, se fosse dedicado à invocação de Nossa Senhora por quem o sofre, faria com que não poucos se safassem do Inferno indo parar ao Purgatório, onde parece que o passadio é melhor.
Só isto? Não. Gente ingénua suporá que a conversa gire durante algum tempo em torno do apuro ou mediocridade dos cozinhados. Que nada, isso é coisa para gente com moderado apetite. Quem o tem em abundância está ocupado a atochar-se e acha, mesmo que não o confesse, que quando é bom é muito bom e que quando é mau também é bom, de modo que contribui apenas com uns murmúrios para devaneios conversariais.
Provar dos pratos dos outros é coisa, se o ambiente não for demasiado formal e houver variedade, de rigueur. E o maduro que não quer provar nada e resiste a que lhe invadam o prato com um garfo intrometido passa por antipático.
A sobremesa encomendam as senhoras e os tíbios. Porque os glutões (não contemplei até agora a hipótese de haver mais do que um porque semelhante infelicidade, felizmente rara, complexifica excessivamente esta problemática) não querem sobremesa. Oficialmente. Porque depois provam de tudo, só para ver se está bom, momento em que, devido às movimentações, algumas nódoas vão, se não aconteceu antes, ornar as camisas até aí irrepreensíveis. Medalhas, dirão com satisfação se interpelados.
A gula, pecado capital. O que me vale é que, não sofrendo de soberba, perdoo e a alguns até aprecio a companhia.