Eu tenho uma mesa de cabeceira. Não tenho é livros. Na mesa de cabeceira.
Se os tivesse nunca dormiria. E sem dormir não consigo ler os livros que quero. Porque adormeço.
Não é tão simples quanto vos possa parecer. Conciliar o sono com a leitura é tarefa ingrata. Para mim e para aqueles, que estão permanentemente a querer atropelar-se mutuamente.
Optei então por separá-los. Assim não há conflitos. E quando me deito sei que não posso levar nenhum livro comigo.
Até porque há livros que devido ao seu tamanho seria sempre impossível de acomodar na mesa de cabeceira com o candeeiro, o rádio-despertador, o relógio e o comando do ar condicionado.
O problema passou para outro patamar. O da decisão. E aqui só há uma possível: enquanto as pálpebras não começarem a pesar e a cabeça se mantiver direita estou proibido de me dirigir para a mesa de cabeceira e accionar o alarme para o dia seguinte.
Dia seguinte é uma força de expressão porque acordo sempre no dia em que me deito.
Por culpa dos livros que deviam estar na mesa de cabeceira e afinal estão na secretária, na mesa da sala e no sofá.
A verdade é que quando me vou deitar transporto comigo o que estou a ler. Não fisicamente. Interiormente. O que por vezes me traz insónias. Pelo que aproveito esses momentos para ler o que trago na memória e ficou na divisão do lado.
A fotografia que ilustra este texto reúne os livros que estou a ler e a memória que por estes dias levo comigo para a cama que está ao lado da mesa de cabeceira onde os leitores gostariam de ver os meus livros.
Romances, novelas, normalmente, só leio em férias. Durante o resto do ano leio ensaios, livros de história e de arte e muitos, muitos livros sobre política, relações internacionais, biografias e livros de memórias.
No momento em que vos escrevo estou a braços com A Desoras, último volume publicado dos diários de Marcello Duarte Mathias, referente aos anos de 2017 a 2023. Gosto muito da sua escrita límpida e despretensiosa. "Escrever é ter consciência que cada palavra é única. Porque nenhuma tem sinónimos." E o autor sabe-o bem quando discorre sobre a "prosa à Augusto de Castro – breve, leve, cintilante, mozartiana", com "clareza e claridade". Ou como quando conclui, ao recordar Rubem Fonseca, umas páginas adiante, que a marca de qualquer grande escritor é não deixar ninguém indiferente. É de certo modo sentir "a força intrínseca que irradia de tudo o que escreve". Também no caso dele é assim. Sinto-me reconfortado num país onde o primeiro-ministro diz "será-lhe", onde são cada vez menos os que sabem ler e escrever, ao que eu acrescentaria os que não sabem falar nem comer, ter o privilégio de poder passar uns momentos com as suas reflexões. É viajar por outro mundo. E para outro mundo sem sair do quotidiano, apesar do regresso ser sempre doloroso.
Entretanto, o editor enviou-me e estou entusiasmado com Played – The Games of the 1936 Olympics, em pdf, uma novela de Glenn Allen e Richard Kaufman.
Para além destes, encetados há pouco, tenho lido e consultado três livros em francês de que já aqui vos falei – Les Lieux du Pouvoir, Les Naufrageurs – Comment ils ont tué la politique e Le Chat et le Renard –, mais o pequeno romance O meu irmão Serge, de Yasmina Reza, e And Then What?, de Catherine Ashton.
Nota ainda para alguns outros que ultimamente, a espaços, vou relendo, debruçando-me sobre pequenas passagens. O clássico Sobre a Liberdade, de John Stuart Mill, é um dos contemplados. Nesta galeria ainda repousam, há algum tempo, de Serhii Plokhy, A Guerra Russo-Ucraniana, uma reedição de Strong Democracy – Participatory Politics for a New Age, de Benjamin Barber, e uma obra editada pela Taaschen sobre Ai Weiwei.
Não tarda e estes serão em breve substituídos por outros. É preciso dar a vez a todos.
E é quanto basta, por estes dias, para me manter longe da mesa de cabeceira, refugiado da canícula, e acordado durante o fresco e aconchegante silêncio da noite projectado pela luz do meu candeeiro.