(Fotografia minha - apesar de andar disseminada pela internet -, julgo que feita em Sofala ou na Zambézia)
Os livros são revistos antes da sua publicação, os artigos de cariz técnico-científico também. Há revisores profissionais, conheço alguns. E conheço-os bem. Até amei uma revisora. As teses académicas também o são - algumas são mesmo revistas por profissionais, mas a maioria não o é desse modo remunerado, dadas as condições de produção habituais desse tipo de textos.
Ao longo dos anos revi inúmeros textos: de amigos, de colegas, de antigos alunos já colegas. Se em textos literários após um "o que é que achas?" vindo de amigos que me sabem sem rodeios, capaz de chegar até ao "não publiques isto", se julgo necessário... Se em textos técnico-científicos após um pedido de opinião, de modo mais formal. Para essas últimas há matérias que a tecnologia foi simplificando: mesmo não sendo infalíveis são preciosos os correctores ortográficos - e sintácticos -, os dicionários digitais, e estes crescentemente competentes sistemas de tradução. Mas ainda assim subsistem máculas em textos que se querem límpidos: erros, alguns sendo meras "gralhas", sintaxe atrapalhada, distracções.
E, principalmente - mas não só - nos trabalhos de "humanidades" levantam-se outros problemas. Pois, e não por defeito - por retórica vácua -, mas por características da investigação e da explanação, os textos são mais longos. Isso levanta à revisão assuntos a que se deve estar atento: hipotéticas redundâncias argumentativas e/ou descontinuidades lógicas. Ou mesmo meras construções frásicas desnecessariamente prolongadas - algo mais relevante quando os textos, como os académicos, têm limites quantitativos explícitos (palavras, caracteres, páginas) ou quase implícitos (tempo de apresentação oral). E quem na vida tenha escrito alguma coisa - um rol de compras, um postal ilustrado que seja - sabe que um olhar alheio detecta muito mais facilmente, e até de modo imediato, essas "desnecessidades" ou "ausências" ("não puseste o papel higiénico!", "esqueceste-te de mandar um beijo meu à tua mãe", dirá o cônjuge veraneante...).
Em trabalhos académico-científicos há ainda outro aspecto crucial: a bibliografia. Pois os textos são um interpretação dialogante com uma realidade, e desta fazem parte os trabalhos anteriores que sobre ela foram feitos. Ao elaborar-se sobre um fenómeno refere-se o que já foi dito (é uma espécie de "experiência laboratorial", passe a fraca analogia), forma de comprovar a justeza do raciocínio - mas não da sua conclusão, claro. Esse diálogo é também forma de evitar que a reflexão em curso se restrinja a especulações não abdutivas. Ou seja, reflecte-se de determinada forma face ao que outros disseram. E sobre esse terreno tem o autor o seu argumento, seguindo de forma fiel essas prévias elaborações, matizando-as, ou opondo-se-lhes radicalmente. Inovando, se lhe for possível.
Quem já tenha escrito um trabalho académico - em particular nas "humanidades" mas não só - sabe que a construção do texto implica colocações argumentativas, amputações, recolocações, até ao produto final. Isso implica - sempre - que as notações bibliográficas devem ser revistas. Não só vasculhando a pertinência da sua colocação - algo sobre o qual o autor deve ser soberano - mas também a sua completude. No rol final não devem ser surgir textos apenas referidos em trechos que foram entretanto retirados do trabalho final. E devem ser apostos todos os que neste foram colocados. Mais ainda, há um formato de apresentação das notações bibliográficas - há vários dominantes, cada instituição científico-académica opta por um. E um trabalho deve apresentá-las de forma homogénea. Por exemplo, se coloco Correia, P., Tudo é Tabu. Lisboa: Guerra & Paz, 2024, terei de o fazer para todos os livros do mesmo modo. E tenho de constatar se no meio do texto não me enganei e coloquei (Correia 2023). É um trabalho de minúcia, até obsessiva. E nisso eu sou bom.
A maioria daqueles que já tenham tido de entregar num prazo apertado um longo, profundo e trabalhoso texto, saberá que os últimos dias são de pressão, de revisão e até reconstrução das argumentações (e/ou das provas, consoante o teor), de elaboração de conclusões definitivas. De uma - exausta, quantas vezes - releitura do global. Nesse entretanto, as questões de minúcia, trabalhosa e demorada, essa das vírgulas, das figuras de estilo demoradas, até da repetição de formulações, da correcção de datas, editores, nome de revistas, etc., são o inverso do imperativo urgente naqueles momentos. Até porque esse esmiuçar não é trabalho que se faça sob a normal pressão ("nervoseira") e nunca em "directa", pois exige mesmo "cabeça fresca". Como o sabe, repito, a maioria esmagadora dos que já tiveram de fazer este tipo de trabalhos. Como também essa maioria esmagadora sabe que nenhum destes trabalhos de rodapé significa o escorar de um trabalho. Ou seja, em nada apoucam a autonomia intelectual do seu autor. Não maculam a sua deontologia.
Eu tenho o blog Nenhures. Por vezes lá deixo textos mais pessoais, não intimistas mas de cariz mais diarístico. Sempre hesito em colocá-los também neste colectivo Delito de Opinião. Hesitação devida ao incómodo sentido diante de alguns comentadores abrasivos, esses que surgem em militante contraposição a tudo, e nisso fico-me "para que é que me vou chatear com estes gajos...!". É certo que, e apesar do actual crescendo de leitores no Delito de Opinião, pelo menos nos meus postais felizmente esse ulular tem-se reduzido. Também por isso ontem deixei aqui um postal feliz, "uma semana jubilosa". No qual entre aprazíveis minudências referi, orgulhoso, ter estado a rever a tese de mestrado da minha filha.
Luis Balio Lavoura, um comentador folclórico do bloguismo português, e que tem como pegada digital ser investigador profissional de um renomado instituto superior português, de imediato surgiu em comentário - que eu apaguei - colocando em causa a honorabilidade académica da minha filha, devido a ter ela tido a tese revista por outrem. Claro que me posso perguntar como é possível que o célebre Instituto Superior Técnico acolha um investigador que tem este tipo de percepção do trabalho intelectual. Mas mais do que isso, aqui entre nós in-blog, refiro como este esparvoado comentário denota o conteúdo absurdo da atitude dos resmungões militantes, esses que a quase tudo o que aqui surge querem apupar. Até este paternal postal...
Acontece que neste disparate comigo Luís Balio Lavoura cruzou o Rubicão. E em assim sendo é-me indiferente que sofra de uma qualquer condição patológica.