Leituras
«As pessoas nem imaginam quantas coisas neste mundo se devem a preces.»
Kurt Vonnegut, Matadouro Cinco (1969), p. 115
Ed. Alfaguara, 2022. Tradução de Miguel Cardoso
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«As pessoas nem imaginam quantas coisas neste mundo se devem a preces.»
Kurt Vonnegut, Matadouro Cinco (1969), p. 115
Ed. Alfaguara, 2022. Tradução de Miguel Cardoso
Os títulos do meio, comprei-os na Feira do Livro. Li-os com a pressa e o vagar que dispenso às obras dos meus autores de estimação. Com pressa, porque confiante no prazer da sua leitura fico com vontade de as tragar de uma vez. Com vagar porque ao mesmo tempo antecipo o vazio que se segue quando chego ao fim de um livro que me encanta. E então demoro-me, relendo passagens que me impressionaram pela elegância e inteligência da escrita. Sublinho-as, tento retê-las para mais tarde recordar. De Ian McEwan e Javier Marías, dois dos meus amores literários, não posso dizer que em nada são iguais, pois têm em comum a capacidade de descrever com minúcia a complexidade da natureza humana, através de personagens tão interessantes e bem desenhadas que acabo a meditar nelas como se fossem gente.
Dispus na mesa de cabeceira os livros por ordem de leitura, portanto antes destes dois autores li Svetlana Aleksiévitch. Nunca tinha lido nada dela. Ainda bem que ganhou o prémio Nobel em 2015, porque o mais provável era demorar muito mais tempo a descobri-la. "A Guerra não tem rosto de mulher" é o resultado de um trabalho de pesquisa jornalística extraordinário sobre mulheres que combateram durante a II Guerra Mundial. Através dos depoimentos recolhidos, a escritora bielorrussa mostra bem como é diferente a relação mental das mulheres com a guerra e também como foi ocultado e/ou desvalorizado durante décadas o seu papel na frente. Como se fosse um embaraço.
Agora estou a acabar de ler Olga Tokarczuk. Também é uma estreia para mim. Este "Outrora e outros tempos" foi o seu primeiro grande sucesso. Mal entrei nele, percebi porquê. A escrita dela é poderosa, original. Mergulha o leitor num universo paralelo, onde mistura fantasia com realidade, um ardil para chegar a verdades incómodas e profundas, que aborda numa linguagem muito simples e depurada, quase infantil, sempre com a história recente da Polónia como pano de fundo. Foi Nobel em 2019, com toda a justiça.
Hoje lemos: Vergílio Ferreira, "Aparição".
Passagem a L-Azular: “Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras. As palavras são pedras, o que nelas vive é o espírito que por elas passa.”
Palavras faladas podem ferir e rapidamente se tornarem vazias, como os invólucros das balas, que depois de disparadas deixam de ter utilidade, não servem para coisa alguma senão para albergar um agente de destruição. As palavras podem ser destrutivas e construtivas e em ambos os casos, se podem tornar ocas depois de proferidas, depende da sensibilidade moral de quem as escuta. Palavras são apenas palavras e, no dizer de um génio, não são paus nem pedras, como tal não são supostamente armas de arremesso para atingir alvos, apesar de serem mais poderosas do que uma espada ou outra qualquer arma mortal, segundo a lógica floreada de outro génio.
Palavras, leva-as o vento. E trá-las também. O que seria de nós sem as palavras, a mais bela forma de expressão, a união entre os indivíduos da nossa espécie, que quando escritas se tornam profundas e imortais, e criam e interligam mundos?
Em Novembro realizam-se eleições para a Presidência e a campanha ferve.
A opinião pública tem acompanhado com interesse, que a comunicação social alimenta com os relatos entusiasmados dos sucessivos triunfos da Kamala Harris e dos desastres de Donald Trump. Este aparece menos e explicam-nos que não tem o dinamismo, nem o brilho, nem as gargalhadas bem dispostas da concorrente.
O comentariado é quase unânime e não poucos articulistas que se dizem, e julgam ser, de direita, arregalam os olhos pávidos e, abrindo os braços de desespero, oram que a democracia está, na América, em risco. Porque o Congresso vai acabar, os seus poderes diminuídos, a Constituição subvertida, o equilíbrio de poderes (que confundem com o peso e a autonomia que várias agências governamentais minadas pela esquerda adquiriram) desaparecer? Não. Porque é assim: esquerda=democracia; direita= fascismo. Que Nosso Senhor, na Sua infinita bondade, me dê paciência.
Não há ainda sondagens mas tudo leva a crer que Kamala ganhará, em Portugal, por não menos de 80%, nas tevês ainda um pouco mais. E, do que se sabe dos outros países europeus, a vitória não será tão esmagadora mas ainda assim significativa.
Quem são eles, por trás do que dizem as televisões, os jornais e os magistrados da opinião consensual, convencional e esquerdoal?
Kamala Harris é, com perdão da distância abismal que as separa em importância, uma espécie de Marta Temido: simpaticazinha, esquerdinha e propensa a gorjeios em que se alivia de tolices embrulhadas em prodigiosa ignorância, sobretudo em questões de economia.
Marta foi abençoadamente estadear para um lugar onde o que pensa e diz irreleva; e Kamala pode aterrar na Sala Oval onde com diligência se ocupará de europeizar os EUA.
Isto quer dizer reforçar tudo o que seja público e regulamentar e crivar de impostos tudo o que seja privado. Além de promover a esquerda woke, isto é, a vaga de engenharias sociais e de linguagem que já fez com que Hollywood deixasse de ser a fábrica de sonhos para passar a ser um armazém de enjoos, a literatura universal esteja em vias de revisão para a expurgar de ofensas às florzinhas tribais de minorias que se sentem ofendidas, os heróis cancelados sob a alegação de que eram do negro tempo deles, e não do risonho e progressista de agora, e o despedimento de seus empregos de quem seja ou pareça hereticamente machista, fascista, sexista, colonialista, anti-LBGTurbo, em suma… direitista.
Do outro lado está um tipo que, se fosse Português, faria Ventura parecer um intelectual de grande densidade e quase um santo. E é claro que uma tal personagem, se candidato entre nós, seria relegado para os confins dos zero vírgula qualquer coisa por cento, não por causa da imaginária lucidez do eleitor nacional mas porque os nossos problemas não são os mesmos dos Americanos nem o nosso sistema eleitoral afunila as candidaturas.
Não é pessoa que possa ser razoavelmente desejada para marido, sogro, filho, pai, irmão, sócio, decorador, amigo ou sequer companheiro de jogo ou de mesa.
Porém, ganhou umas eleições e tem hipóteses de ganhar estas. E isso decerto porque satisfaz uma necessidade premente de uma parte do eleitorado: a que acha que o preço da ascensão meteórica da China foi a destruição de empregos no Cinturão da Ferrugem, que o reforço dos poderes do Estado se faz à custa de diminuição das liberdades, que o federalismo implica autonomia dos Estados e não a rasoira de Washington e que o imperialismo intelectual das universidades deve lá ficar confinado, e não passar para as leis e os costumes.
Acha isto e outras coisas reaccionárias. E eu, se fosse Americano, também acharia. Resta que Trump ameaça borrifar-se para a guerra na Europa, deixando de ser o patego que sustenta a NATO enquanto os pacifistas Estados europeus tratam de deixar estiolar os seus exércitos investindo no Estado Social o que não gastam na Defesa. Mesmo assim, é pouco credível que Trump venda a Ucrânia a troco do alegado bom entendimento com Putin, pela simples razão de que com isso nada teria a ganhar salvo uma poupança que o complexo-militar industrial (para pedir emprestada a virtuosa expressão que o bem-pensismo usa) não veria com bons olhos.
É, apesar de tudo, uma boa razão europeia para detestar o Donald. Salvo pelo facto de, descontando a retórica, estar na ordem inelutável das coisas que o eurocentrismo foi chão que já deu melhores uvas; o principal inimigo potencial dos EUA é a China; e o centro vital do mundo está a mudar do Atlântico para o Pacífico. O que tudo faz com que a política externa americana, ganhe o Chico ou a Chica, tenderá, quanto a assuntos europeus, a não ser muito diferente.
Na outra guerra, a do Médio Oriente, Kamala é completamente contra o terrorismo desde que os terroristas, do Hamas e outros, fiquem a salvo de represálias quando se acoitem no meio da população; e confiante em que com a adequada mistura de cedências e compromissos a teocracia iraniana até ficará bastante confiável. Trump, que não sabe Latim (aliás até de Inglês sabe pouco) obedece mais ao bordão: si vis pacem para bellum. E fala grosso, que é para ninguém ter dúvidas.
Pessoas sensatas não preveem o futuro porque ele vai acontecer de uma maneira e há inúmeras de o imaginar, além do que projectar tendências actuais não garante que estejamos a seleccionar, das muitas que há, as melhores, nem se pode contar com os imponderáveis que sempre virão a acontecer.
Todavia, é plausível que a eleição de Trump não venha a ser, a prazo, a dele mas a de Vance porque os seus 78 anos e a compleição de gigantone dão indicações ominosas sobre o futuro da sua saúde. E se viesse a ficar xexé a comunicação social não lançaria, como fez com Biden, um manto de silêncio – lá como cá o tempo em que as notícias não tinham cor política já lá vai.
Vance não é menos radical do que Trump nas suas credenciais de direita, mas é muito mais consistente. E, pecado fatal, até publicou um livro estimável e apreciado até ao momento em que foi anunciado fazer parte do ticket – agora, lido com atenção, aquilo tem traços do Mein Kampf.
De modo que, tudo visto e ponderado, em Novembro voto Trump. Espero não ser cancelado.
Luís Naves: «Para muitos autores, o mundo contemporâneo está em declínio, por ter perdido os seus valores e por se basear no insaciável apetite das classes dominantes. O culto do eu leva ao caos social e condena a sociedade à decadência. Há quem defenda a necessidade do regresso à tradição e, quanto maior o choque com a realidade exterior, mais estes movimentos se encolhem na concha dos respectivos fundamentos ideológicos. As críticas à modernidade podem vir de religiões ou de movimentos anti-capitalistas, mas convergem na ideia de que o mundo está à beira de uma transformação inevitável e que essa transformação nos conduz a algo de fundamental. Existe sempre ali a ideia do regresso a um passado idealizado.»
Teresa Ribeiro: «Apanhei mudança de turno, de modo que comecei a consulta com uma médica e acabei-a, já depois de feitos os exames, com outra. A primeira mandou-me fazer um novo raio x. Apeteceu-me objectar, mas a minha experiência diz-me que não adianta contestar os actos clínicos, porque nunca levamos a melhor, de modo que não levantei ondas. A segunda, comentou: a minha colega pediu um raio x, só que um raio x é inútil nestes casos.»
Eu: «Recapitulemos: decorre um conflito armado entre a Ucrânia e a Rússia por interpostos rebeldes separatistas, um autoproclamado Estado Islâmico promove massacres étnicos e religiosos no Iraque, África sobressalta-se com a epidemia do ébola e Eduardo Campos, candidato à presidência do Brasil, morre num acidente aéreo em plena campanha eleitoral. A imprensa, à escala mundial, deu destaque a tudo isto. Nada a ver com silly season. Nada mesmo.»
Bulbs, Van Morrison
(Álbum: Veedon Fleece, 1974)
Desconfia sempre dos políticos que dizem mais vezes a palavra "eu" do que a palavra "nós".
Este pensamento acompanha o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana
Não tenho Twitter, Instagram ou Tiktok. Tenho Facebook mas com audiência altamente limitada e quase e só para manter contactos com amigos. Menos que 100 ligações (e algumas porque mo pedem com mais frequência que aquela que tenho paciência para recusar).
Tenho LinkedIn para assuntos profissionais e tento escrever o mínimo possível, até porque se tem vindo a tornar um novo Facebook. Fora isso só escrevo aqui, embora frequentemente pense em criar novo espaço para a minha escrita.
Sou assim porque a internet, e especialmente as redes sociais, se têm tornado uma fossa séptica de opiniões. Quando antigamente a comunicação era mais pessoal, a maior parte das pessoas demonstravam respeito uma para com as outras ou pelas opiniões, ou mantinham uma distância saudável em relação aos que não o faziam. A internet veio mudar isto. O anonimato, ou pelo menos a falta de contacto pessoal, tem feito com que o respeito por outros e opiniões se tenha reduzido. É quase universal e eu, por muito que o tente evitar, não sou alheio a isso.
No entanto isto custa-me muito. Comentários negativos não me custam, mas trolls com comentários parvos sim. O meu post abaixo (que entretanto decidi limpar) é um exemplo que até quase parece positivo. Se calhar o problema é meu. Certamente que o é. Por isso decidi acabar com isto de chafurdar na lama.
De ora e diante, os meus posts, poucos e raros que sejam, serão apontados a assuntos pouco controversos. Se abordar algum aspecto mais complicado (como fiz antes), ou deixarei os comentários fechados ou completamente abertos sem moderação. Deixarei de olhar para eles e deixarei de comentar. A minha saúde mental não mo permite. Quem quiser chafurdar, a caixa está abaixo. Eu abri a porta, mas não esperem que eu olhe para a fossa.
São quase sete da tarde quando o autocarro me deixa em Sannat, num pequeno largo marcado ao centro por uma escultura em metal oxidado que representa três lavradores – uma das muitas esculturas que estão espalhadas pela ilha de Gozo, fruto de um concurso de arte pública lançado há uns anos pelo Ministério que governa a ilha. Mas não foi isto que me trouxe aqui. Meto pés a caminho do meu objectivo por uma estrada de terra batida. Do lado esquerdo, o vale de Hanżira e a vizinha vila de ix-Xewkija, a sua magnífica Basílica de São João Baptista bem destacada no meio do casario branco e ocre. Sannat fica num planalto 120 metros acima do mar, com vistas soberbas sobre grande parte da ilha, a norte, e sobre o Mediterrâneo a sul. É por este ponto cardeal que me oriento pelo trilho aberto no garrigue, que me leva ao meu destino final: a falésia de Ta’ Ċenċ.
Cheguei mesmo na hora certa. O sol já desce rapidamente no horizonte, exactamente sobre o extremo da linha irregular que separa a água dos rochedos. Os raios de luz atravessam as nuvens trazidas pela brisa marinha do final de tarde, e o céu divide-se entre o azul brilhante e o dourado suave, que se se transforma aos poucos em laranja, rosa e púrpura. A sombra dos rochedos escurece o mar, que reflecte mais ao longe as cores mornas do pôr-do-sol. Foi este o lugar que escolhi para terminar o meu primeiro dia em Gozo, apreciando a tranquilidade do momento – e foi este o espírito dominante nos dias que passei na ilha.
Entre as três ilhas habitadas do arquipélago de Malta, Gozo (ou Għawdex, em maltês) é a irmã do meio em tamanho, mas não em status. A ilha de Malta é aquela a que os visitantes por norma dedicam mais tempo: é a maior e mais famosa, rica em história, cultura e atracções, com uma capital vibrante e apelativa para o turismo. Comino é a estrela brilhante do arquipélago, o bilhete-postal que serve de chamariz para quem gosta de águas mornas e transparentes. Já Gozo acaba por ser sempre relegada para segundo plano e geralmente é apenas merecedora de um magro dia de visita, quando não totalmente ignorada. O que é – desculpem-me a franqueza – um erro tremendo, porque merece muito mais do que uma visita feita a correr.
Sucede com os lugares tal como sucede com as pessoas: mesmo que mais tarde venhamos a corrigir a nossa avaliação, as primeiras impressões têm muita importância. E a primeira impressão que tive de Gozo, quando o ferry se aproximava do porto de Mġarr, foi positiva. É certo que a encosta escarpada que rodeia o porto está cravejada de edifícios, alguns com nítido ar de hotel, e que a profusão de guindastes augura mais uns quantos a nascerem. Mas pelo menos não há arranha-céus, e as cores das casas mantêm-se entre o branco e os tons neutros ou terrosos, nada que ofenda particularmente a visão. O que salta mesmo à vista são as igrejas, várias, bem em evidência pelo contraste das suas formas caprichosas com a sobriedade poliédrica do casario. Na altura não fazia ideia, mas uma delas – a mais majestosa – iria ser o meu cenário de várias refeições nos dias seguintes.
Nada tenho contra os hotéis, mas sempre que posso escolho alojamentos locais, e a minha estadia em Gozo não foi uma excepção. Em vez de optar por Victoria ou por uma zona de praia, decidi ficar perto de Mġarr, na pequena localidade de Għajnsielem (pronuncia-se mais ou menos como iain-siê-lem), que se traduz por “nascente tranquila”. E tranquilidade não faltou, nem no alojamento, nem nas redondezas. Apesar da proximidade do porto e de ter um amplo miradouro sobre Mġarr e as ilhas de Comino, Cominotto e Malta, o local está fora das rotas turísticas habituais da ilha. Sorte minha, tem tudo aquilo de que eu mais precisava: autocarros, para me deslocar por Gozo, e um sítio bom para tomar o pequeno-almoço ou petiscar.
As associações musicais têm um papel único na cultura social maltesa. As bandas participam activamente na preparação e gestão das festas locais, e são um dos motivos de orgulho de cada vila ou aldeia. As suas instalações funcionam também como ponto de encontro para os habitantes e assumem um papel fulcral na comunicação e socialização a nível local. Għajnsielem não é excepção. A Għaqda Mużikali San Ġużepp (Associação Musical de São José) foi fundada em 1928 sob a égide do Instituto de São José, um orfanato, e continua em actividade até hoje. Além de ter um belíssimo salão de snooker profissional, o bar funciona como bistro e serve refeições ligeiras. Bem localizado, ao lado de uma simpática praceta ajardinada, foi na sua enorme esplanada que fiz boa parte das refeições durante a minha estadia, em modo de relaxamento total, por vezes com vista para uma nesga de mar no horizonte, outras com os olhos na grandiosa igreja-santuário de Għajnsielem, do lado oposto da estrada.
As evidências da fé
Għajnsielem é mais conhecida pelo evento que ali se realiza anualmente em Dezembro no campo de Ta’ Passi: a recriação ao vivo de um presépio e a sua aldeia, a que dão o nome de “Bethlehem f'Għajnsielem”. Numa área de 20.000 m2, cerca de 150 actores e alguns animais levam os visitantes a recuar no tempo até à Judeia de há 2.000 anos. Há moinhos e grutas, pastores e artesãos, e actividades condizentes com a época para miúdos e graúdos. Mas fora da quadra natalícia é apenas uma terrinha sossegada que vive à sombra da bela e imponente igreja-santuário neogótica. Dedicada a Nossa Senhora do Loreto, demorou mais de 50 anos a ser edificada, entre 1922 e finais da década de 70, e é um excelente exemplo de quão magnífica é a arquitectura religiosa mais recente das ilhas maltesas.
Apenas a uma ruela de distância, na Pjazza Indipendenza, ainda se encontra orgulhosamente de pé a antiga igreja paroquial, também dedicada à mesma santa mas muito mais sóbria em aparência. Esta igreja mais antiga, construída no século XIX, sucedeu a uma capela erguida para celebrar uma aparição mariana ocorrida em data desconhecida a um pastor, de seu nome Anglu Grech, que levava regularmente as suas cabras e ovelhas a beberem água da fonte de Għajnsielem. A visão do pastor deu origem a uma estátua, depois colocada num nicho, à volta do qual os habitantes da localidade se reuniam diariamente para rezar o terço. Existem ainda outras duas igrejas e oito nichos com uma variedade de estátuas de santos (a título de curiosidade, dois deles são dedicados a Santo António, tal como uma das igrejas). Esta profusão de símbolos religiosos numa área tão reduzida não é exclusiva de Għajnsielem. Em toda a ilha de Gozo (tal como em Malta, na generalidade), há uma vertente que permanece dominante e tão destacada que é impossível de ignorar: o catolicismo.
As ilhas maltesas têm uma longa história de fé cristã. Segundo a tradição, o apóstolo S. Paulo naufragou em Malta no ano 60 d.C., e este acontecimento é considerado um momento fundamental para a difusão do cristianismo na região. Outro momento fulcral ocorreu no século XVI, quando os Cavaleiros de S. João, também conhecidos como Cavaleiros Hospitalários, se estabeleceram nas ilhas. Deixaram um legado duradouro de magníficas igrejas, catedrais e fortificações, muitas das quais ainda hoje se mantêm de pé. A fé católica não tem sido apenas uma força religiosa, mas também cultural e social, marcando indelevelmente a identidade destas ilhas e do seu povo. Os festivais religiosos, as procissões e os rituais fazem parte integrante do modo de vida maltês.
A Basílica do Santuário da Virgem de Ta’ Pinu é outro exemplo sonante desta ligação religiosa. Isolado numa zona árida onde não se passa nada (a aldeia mais próxima fica a meio quilómetro de distância), a magnificência deste santuário destoa e ao mesmo tempo surpreende como uma gema brilhante engastada em metal pobre. É um edifício colossal, que me impressionou tanto pela imponência como pela beleza. Foi construído em inícios do século XX no estilo neo-românico, em pedra rosada e ocre, com um recorte complexo em vários volumes e níveis, e é encimado por uma cúpula. O campanário está separado, ao estilo italiano, destacando-se com os seus 60 metros de altura. O interior é uma mistura bem conseguida de elementos arquitectónicos clássicos com arabescos e pormenores bizantinos – espelho das várias influências que a cultura maltesa agrega. A penumbra e a serenidade da atmosfera convidam à reflexão. Ainda assim, há pouca gente a visitar a basílica, e todos são turistas como eu. Um painel à entrada pede decoro, respeito e silêncio. E silenciosa é a devoção dos fiéis, materializada nos inúmeros ex-votos que enchem as paredes da sacristia, agradecimentos mudos mas eloquentes pela concretização dos desejos de quem deposita grande fé na padroeira do local.
Criado no lugar onde já existia uma capela de origens imprecisas (anterior ao século XVI), o santuário deve a sua popularidade a uma lenda local. Em 1883, uma camponesa da vizinha aldeia de Għarb disse ter ouvido, ao passar pela capela, uma voz que lhe pediu para entrar e recitar três ave-marias. À ocorrência de vários supostos milagres em anos seguintes atribuiu-se a graça de Nossa Senhora da Assunção, a quem a capela estava dedicada. Foi o bastante para começar a atrair peregrinos e ser oficializada como santuário mariano, com a consequente construção da basílica. A capela antiga foi incorporada no novo edifício, por trás do altar. Lá dentro mantém-se o quadro da Assunção de Nossa Senhora ao Céu, pintado em 1619 por Amadeo Perugino, de onde se diz que a voz falou a Karmni Grima – a aldeã que deu origem à lenda, e que se encontra ali sepultada. A fé da mais simples das pessoas pode não mover montanhas, mas não há dúvida de que tem criado muitos santuários.
Desaparecida, mas não esquecida
Até 2017, a razão principal pela qual a maioria dos visitantes ia a Gozo era uma formação rochosa a que deram o nome de Janela Azul: um arco de calcário perto da baía de Dwejra, com 28 metros de altura, desenhado pela erosão do vento e do mar ao longo de 500 anos. Estrela de filmes, anúncios e do turismo, incluída numa área de conservação especial, sucumbiu à violência do mar e desabou completamente na manhã de 8 de Março daquele ano fatídico, após vários dias de tempestades. Dela ficaram a memória, muitas fotos, e o nome num restaurante. Perdida a atracção maior, o local passou a capitalizar outras actividades: os mergulhos no Blue Hole, uma espécie de piscina de águas azuis límpidas, entre rochas, com um arco natural submerso a fazer de “porta de entrada” para o mar aberto; e os passeios de barco a partir do Mar Interior, uma lagoa semicircular de águas pouco profundas rodeada de falésias rochosas.
A antiga vocação piscatória do lugar é bem visível. No lado que não está ocupado pela escarpa, o Mar Interior é limitado por uma espécie de praia, uma faixa estreita de pedrinha arenosa, à volta da qual se acotovelam construções cúbicas exíguas de pedra maciça, sem janelas e com portas coloridas. Algumas têm toldos que avançam sobre plataformas cimentadas, e painéis solares nas açoteias. Rampas de betão entram pela água parada, onde flutuam várias pequenas embarcações simples, umas mais modernas, outras mais coloridas. Há pessoas a nadar, outras a apanhar sol, outras ainda apenas sentadas em cadeiras plásticas instaladas à porta dos casinhotos, observando o movimento na lagoa.
Os pescadores converteram-se em guias turísticos e há um corrupio de barquitos que entram e saem da lagoa. A comunicação com o Mediterrâneo é feita através de um longo túnel, que fura o penhasco ao longo de mais de 80 metros. É um passeio cénico e tranquilo, agradável mesmo com o céu meio encoberto. A água desdobra-se em cores que vão do verde-esmeralda ao azul mais profundo. As escarpas abruptas, de rocha porosa manchada pelo tempo e pelos sedimentos, escondem enseadas e grutas por onde o barco ziguezagueia. Passamos da claridade à penumbra, depois saímos novamente para a luz, num vaivém que dura uns escassos 15 minutos mas parece ainda mais curto – e que, como não podia deixar de ser, passa pelo local onde em tempos esteve a Janela Azul, em homenagem devidamente assinalada pelo guia-condutor. A excêntrica formação natural pode ter sucumbido ao abraço do mar, mas a sua memória está bem viva, um testemunho de como a natureza é ao mesmo tempo grandiosa e frágil.
O domínio da pedra
A agitação de Victoria é o contraponto à atmosfera serena do resto da ilha. A capital, a que os locais continuam a chamar Ir-Rabat, é o centro nevrálgico de Gozo. Tudo parece passar por ali. Eu própria, nas minhas deambulações de autocarro entre os vários sítios que fui visitar, acabei por ter de lá ir todos os dias, à falta de transporte directo de Għajnsielem para alguns desses lugares. Victoria divide-se em dois planos, separados pela avenida principal. A Triq ir-Repubblika é o coração comercial da cidade, onde as casas com as tradicionais varandas maltesas coabitam com lojas, bancos e teatros, e os carros se misturam com motas, carrinhas e mini comboios turísticos, numa cacofonia pouco habitual na ilha.
Para norte cresce a colina onde foi erguida a Cidadela, o bastião fortificado que há 3500 anos protege Ir-Rabat, o seu subúrbio. Para sul da avenida, a Praça da Independência alberga a Banca Giuratale, sede do município, e é a porta de entrada para o dédalo de ruas pedonais sinuosas que formam a parte antiga da cidade. Nestas ruelas estreitas, as varandas quase se tocam, e por vezes nem o sol do meio-dia consegue iluminá-las. As casas são de pedra e têm portas em arco, varandas em ferro forjado ou de madeira, pintadas com cores alegres, e emblemas religiosos cravados nas paredes, feitos em cerâmica. Há becos com vasos de flores e trepadeiras, esquinas com estatuetas religiosas colocadas sobre pedestais altos, gatos que aproveitam uma sombra para dormir ou apenas estarem ali, naquela sua pose descontraída de quem está de bem com a vida.
No centro da cidade velha fica a basílica dedicada a São Jorge, numa praça rodeada de esplanadas e lojas para turistas. Construída no último quarto do século XVII e totalmente revestida de mármore, é a igreja barroca mais exuberante da ilha, no que toca à decoração interior. A cúpula e as abóbadas estão pintadas com cenas religiosas e decoradas com frisos dourados, e o dossel com quatro colunas sobre o altar-mor é uma peça colossal em bronze e ouro. O contraste com outras igrejas que visitei é flagrante.
Sugestivamente apelidada de “Coroa de Gozo”, há indícios de que a Cidadela de Victoria já fosse habitada há 7000 anos. Mas as robustas muralhas defensivas que hoje a definem foram construídas pelos Cavaleiros Hospitalários em finais do século XVI. A cota a que se encontra faz dela um miradouro fabuloso sobre praticamente toda a ilha. Passei várias horas a percorrer o interior das muralhas, onde está bem visível um extenso trabalho de restauração ainda em curso. A pedra é omnipresente, às vezes mais rugosa ou manchada, marcada pelo tempo, outras mais clara e suave, prova de uma renovação mais recente. É na Cidadela que estão a Catedral de Gozo e o Tribunal – os templos máximos da fé e da lei partilham o mesmo adro. Nesta espécie de caverna de Ali Babá a céu aberto há de tudo um pouco: museus vários, a rua de um bairro judeu medieval, um palácio seiscentista com a sua capela, a antiga prisão, o paiol da pólvora, canhões da bateria e um abrigo anti-bomba, silos e cisternas, as obrigatórias lojas para turistas, e pelo menos um restaurante: o Ta’ Rikardu, onde nem o dia quente me dissuadiu de provar a sopa de peixe preparada à maneira local.
Tradição centenária
A maior parte das praias de Gozo ficam na costa norte, mas não são de todo o melhor que a ilha tem. A excepção é Ir-Ramla, onde a maravilhosa tepidez das águas mediterrânicas se une a um areal generoso, numa combinação ideal para umas horas em modo de lagarto ao sol. Curiosamente, não há quaisquer infra-estruturas hoteleiras nas imediações desta praia, o que provavelmente explica o fenómeno de ainda ser possível encontrar um lugar para estender a toalha com vários metros de areia desimpedida à volta.
Também no norte da ilha, e pese embora a sua praia esteja muitos furos abaixo de Ir-Ramla, a localidade de Marsalforn já adquiriu o estatuto de estância balnear. No entanto, não é essa a razão da minha visita. Umas centenas de metros mais à frente, junto à costa, espalhando-se ao longo de mais de um quilómetro num padrão de xadrez irregular e orgânico, as salinas artesanais de Xwejni são um testemunho admirável da longa tradição da ilha de colher sal do mar.
A história destas salinas remonta possivelmente ao tempo dos fenícios, que se sabe terem-se estabelecido na região por volta de 700 a.C. Estes primeiros colonos reconheceram a abundância de água salgada na zona e o clima favorável à evaporação do sal – Gozo tem uma média de mais de 300 dias de sol por ano. Com o passar do tempo, a habilidade na produção de sal foi transmitida de geração em geração e as salinas tornaram-se uma indústria vital para a economia da ilha. Maravilha da engenharia antiga, consistem numa série de tanques rasos, rectangulares, definidos por muretes feitos de pedra local e aproveitando as irregularidades do solo rochoso onde foram criadas. Estão ligadas por um sistema de canais por onde é encaminhada a água do mar, e à medida que esta água se evapora sob o sol mediterrânico, vai deixando para trás uma camada cristalina de sal. Este sal é cuidadosamente recolhido utilizando ferramentas tradicionais, como ancinhos e cestos de madeira, e é depois deixado a secar antes de ser preparado para venda ou consumo local.
Por tradição, estas salinas foram exploradas ao longo dos tempos como labor familiar, com o conhecimento técnico a passar de geração em geração. No entanto, como em tantas outras actividades quase artesanais, o número de pessoas que a ela se dedicam tem vindo a diminuir nas últimas décadas. A produção de sal ocorre habitualmente de Maio a Setembro, mas no meu passeio de uma hora pelas imediações não vejo ninguém a trabalhar. A prova de que as salinas continuam em funcionamento resume-se aos painéis que proíbem o acesso a pessoas estranhas, em particular mergulhadores e banhistas, e às portas coloridas que marcam, na falésia do lado oposto da estrada, as entradas dos armazéns (escavados na rocha) de apoio às salinas.
Com a última tarde da minha estadia em Gozo a chegar ao fim e a hora do autocarro para Għajnsielem ainda longe, sentei-me numa esplanada meio escondida de Marsalforn e aproveitei para jantar. Tal como tantas outras facetas da cultura maltesa, a gastronomia destas ilhas é uma mistura muito bem conseguida entre a Itália e o norte de África, com pitadas de Inglaterra, Grécia, e até mesmo Turquia. E é deliciosa, mais ainda quando apreciada ao crepúsculo, com um suave marulhar de água como som de fundo, numa atmosfera tépida e sem vento. Em Gozo, há uma sensação quase constante de serenidade que impregna o ar e nos puxa a saborear cada momento, cada local, com o vagar merecido – é a facilidade dos dias tranquilos que escorrem sem pressas.
Maria Luiza Jobim
Luís Naves: «Dentro de semanas, a Escócia votará em referendo se pretende manter-se ligada ao Reino Unido ou se prefere a independência. O resultado da consulta é incerto. A união com a Inglaterra teve momentos em que quase ocorreu a ruptura, tendo a última rebelião armada, dos clãs das Terras Altas, Highlander, terminado apenas em 1746, 39 anos após o acto da união. (...) Não podendo criar um império autónomo, a Escócia viria a participar activamente na criação do império britânico. Mais de 40% dos militares, médicos, funcionários de topo e até das mulheres que acompanhavam os aventureiros coloniais britânicos eram de origem escocesa, o que representa forte distorção a favor da Escócia.»
Eu: «Estas décadas de esplendor e decadência do Império Austro-Húngaro tiveram dois cronistas de excepção: Stefan Zweig, que nos legou em testamento O Mundo de Ontem, o mais fascinante livro de memórias sobre este período, e Joseph Roth, que celebrou as luzes e sombras do reinado de Francisco José num romance inesquecível: A Marcha de Radetzky. Significativamente, é um romance que começa e termina sob o signo da derrota. Da batalha de Solferino (1859), em que as tropas sardo-piemontesas derrotaram o exército austríaco na segunda guerra pela independência italiana, à morte do imperador (1916), prenunciando o desfecho da I Guerra Mundial. A acção do livro decorre entre estes dois marcos, percorrendo quase todo o reinado de Francisco José num suave declínio rumo ao desfecho inexorável. Como se, no fundo, os indivíduos nada pudessem contra a irreprimível pressão do devir histórico -- dando corpo a uma tese que teve em Tolstoi um dos principais cultores.»
Let It All Fall Down, James Taylor
(Álbum: Walking Man, 1974)
O gigantesco CR7 está com 899 golos oficiais (e avança que quer chegar aos 1000...). Na Liga dos Campeões o Sporting irá jogar com o Manchester City e com o Arsenal - e ou seremos arrasados ou, caso contrário, o Amorim partirá para sempre... Os gajos do marketing da Mercadona conseguiram um grande trunfo sexual - e eu há anos a puxar pelo "Queen Margot" do Lidl e nem uma garrafa grátis consegui, uma injustiça. Hugo Soares, o jotão do PSD, não consegue distinguir Trump dos outros, mas o professor Ventura consegue. Pinto da Costa, proto-moribundo, diz que "Bruno de Carvalho foi injustiçado". É já consabido que a culpa da "troika" foi de Albuquerque - e entretanto ninguém se lembra que a avó do neo-Costa, Palla de seu nome, dizia, ufana, que "qualquer um seria melhor primeiro-ministro do que o último", isto quando Sócrates, o penúltimo, era o 44 de Évora e a urna de Campo de Ourique ainda não tinha sido necessária, bons velhos tempos em que o "democrático" "Observador" ainda não se prostituía ("manda os teus textos para o Observador", dizem-me os palhaços andantes...). Por falar em putas, o Ocidente é uma puta, Orban é um democrata, e a culpa da guerra da Ucrânia é mesmo dos filhosdaputa ocidentais, diz no Delito de Opinião.
O que me vale é que não vou aos ananases do Mercadona, fico-me sozinho. Onanista, que ainda verto... Junto ao Queen Margot. Esse do Lidl. Alemão, ocidental, filhodaputa.
O noticiário sobre a guerra continua a deitar areia para os olhos de muitas pessoas que confiam na possibilidade de uma vitória ucraniana. Existe profunda incompreensão sobre as raízes deste conflito, que é na realidade uma mistura de guerra civil e confronto indirecto entre Rússia e Estados Unidos (aliás, a todo o momento pode tornar-se um conflito directo, basta um erro de cálculo). A derrota de Kiev está agora à vista, mais próxima após ter sido cometido o erro de invadir território russo. Esta manobra desesperada, celebrada nos nossos meios de comunicação, consumiu as derradeiras reservas do exército ucraniano, cujas baixas são insustentáveis. As linhas defensivas no Donbass, construídas ao longo de oito anos, ficaram desguarnecidas e estão a entrar em colapso.
Estes factos não podem ser compreendidos por uma opinião pública que foi sistematicamente convencida a ver esta guerra como a luta entre o bem e o mal, onde os bons venciam sempre e os maus nem sequer tinham botas ou eram forçados a tirar chips de máquinas de lavar roupa. Fomos muito enganados. O Ocidente subestimou de novo a Rússia e está sem opções para sair de forma airosa da situação.
Esta guerra foi um falhanço diplomático ou a ideia deliberada de gerir o colapso do império russo, esmagado pelas sanções da NATO? A questão será discutida muito depois de haver uma paz negociada e há indícios credíveis de que Washington queria derrubar o regime de Putin, para abrir os imensos recursos da Rússia à exploração ocidental. Quando falhou esta estratégia, surgiu a nova meta de enfraquecer e sangrar Moscovo, de conseguir uma espécie de guerra eterna que iria transformar o gigante nuclear num país fracassado. Agora, o objectivo é apenas sair disto, nem que seja preciso sacrificar os ucranianos. Depois das eleições americanas, será negociada uma partilha territorial que permita pelo menos defender os negócios.
Habituada a fantasias, a opinião pública continua a acreditar na vitória ucraniana, mas devia estar a pedir contas aos líderes ocidentais e a Boris Johnson em particular, que em Abril de 2022 convenceu os ucranianos a não assinarem um acordo de cessar-fogo com a Rússia que teria sido mais vantajoso do que a paz cartaginesa que se adivinha. A Ucrânia é um país de viúvas e órfãos, com um quinto da população a viver no exterior; perdeu centenas de milhares de soldados e está a recuar no campo de batalha; encontra-se falida e hipotecada por décadas a empresas ocidentais que vão generosamente reconstruir as suas ruínas.
imagem gerada por IA, Night Café
Mulheres a participar na competição de Tiro com Arco nos Jogos Olímpicos de St. Louis em 1904.
Não me saiu bem o post e fartei-me do que li nos comentários. Quem quiser o post (não sei para quê), pode pedir-mo por mail que está guardado. Quem quiser comentar, que o faça, está a caixa ali em baixo, disponível. A minha sanidade mental faz-me apagar o texto do post. Obrigado pela atenção.
O Estado Social é inseparável do crescimento económico: nos 30 anos subsequentes à II Guerra Mundial, estas duas realidades progrediram a par. Potenciadas por múltiplos factores entretanto desaparecidos: mercados coloniais, matérias-primas baratas, petróleo a bom preço, taxa de natalidade muito elevada, proteccionismo industrial, restrições à circulação de produtos, pessoas e bens. Tudo isso terminou. Fomos os últimos a fazer cair o pano com o fim do nosso império, em 1975.
As três décadas seguintes caracterizaram-se pela inversão dos dados anteriores. E, portanto, pela atrofia europeia enquanto as restantes regiões do globo registavam índices de prosperidade jamais alcançados. Alguns que tanto defenderam a globalização - a quebra de fronteiras e barreiras - sentem-se agora vítimas dela e pretendem regressar ao quadro anterior. Que é impossível. Não há colónias como mercado de escoamento de bens manufacturados e fonte de matérias-primas baratas. Nem petróleo a preços reduzidos. Nem restrições à circulação de pessoas e capitais. Nem filhos em número suficiente. Nem pode haver, por tudo isto, o Estado Social que houve em tempos anteriores.
Não se pode nunca ter o melhor de dois mundos.
Helena Sacadura Cabral: «Nunca escondi a minha admiração por Cristiano Ronaldo. Pelo homem que veio menino sozinho para Lisboa traçar o seu futuro, pelo desportista que fez mais pelo nome de Portugal do que muitos "emproados" que a tal se outorgam e pelo chefe de família em que se transformou. Mas, sobretudo, por esse orgulho de ser quem é, de ser português e de nunca renegar as suas origens. Não é pouco, no mundo actual. O resto são floreados.»
Luís Menezes Leitão: «Sempre achei que a questão ucraniana tem que ser tratada com pinças, uma vez que é um estado dividido ao meio entre um ocidente pró-europeu e um leste pró-russo e cuja importância estratégica para a Rússia é absolutamente decisiva. Lenine dizia que os soviéticos podiam perder a cabeça mas não podiam perder a Ucrânia e Putin tem exactamente o mesmo posicionamento. Precisamente por isso desde a queda de Ianukovitch que me parece que tudo se encaminha para um confronto directo do Ocidente com a Rússia.»
Luís Naves: «Agora percebo muito melhor a crise da imprensa, a razão da fuga dos leitores. O jornalismo que questiona o concreto e o imediato tornou-se uma raridade que merece a crítica severa dos mandarins da comunicação social. Assim, os jornalistas que exercem a sua profissão devem acalmar-se e fazer apenas as perguntas mais dóceis.»
Sweet Surrender, John Denver
(Álbum: Back Home Again, 1974)
Os meios de comunicação tratam tudo com incrível leveza e, atrás de uma cortina de embelezamento, escondem que o mundo está a correr para um conflito geral em larga escala. Na Ucrânia, continua o massacre e Kiev entrou na fase de desespero suicida. Há outro conflito volátil entre Irão e Israel, com planos delirantes de ataques preventivos e de vingança, a inevitabilidade de que mais tarde ou mais cedo haverá um choque violento entre as duas potências. Já estivemos mais longe do Apocalipse. Na melhor das hipóteses, teremos violência e instabilidade económica, mercados nervosos e líderes impotentes para travar o que começaram, talvez outra crise energética. O Ocidente está em apuros: as populações indignam-se com a desorientação das elites, que se recusam a compreender os motivos da contestação. O voto deixou de contar e a comunicação social prefere o pensamento mágico, enquanto o poder, que não consegue travar a inundação da realidade, procura proteger os cidadãos daquilo que classifica de "desinformação". A Comissão Europeia vai controlar as plataformas de internet através de multas e proibições, enquanto a justiça dos países europeus não hesitará em perseguir quem espalhar informações incómodas, mesmo que isso implique a detenção de magnatas das redes sociais.
imagem gerada por IA, Night Café
Fala-se muito na degradação do jornalismo, e com bons fundamentos, mas convém relativizar um pouco: em todas as profissões e em todas as gerações existe gente desqualificada.
Ernest Hemingway foi jornalista na juventude e costumava dizer que este era o ofício ideal para um escritor, desde que não fosse exercido durante demasiado tempo. Assim sucedeu com ele: após meia dúzia de anos como repórter local e internacional, e correspondente europeu de jornais norte-americanos, passou a dedicar-se à literatura a tempo inteiro. E viria a dar raras entrevistas como escritor por ter conhecido entretanto demasiados jornalistas incultos, impreparados, incompetentes. Para ele havia vários temas proibidos: a guerra, a religião, os livros que estava a escrever, as mulheres com quem esteve casado e tudo quanto se relacionava com a sua vida privada.
No livro Papa Hemingway - A Personal Memoir, em que recorda década e meia de sólida amizade com o autor de Por Quem os Sinos Dobram, A. E. Hotchner relata uma dessas entrevistas, que deixou o escritor ainda com pior impressão dos jornalistas. Aconteceu no Verão de 1956, quando se encontrava hospedado num hotel de Madrid: ao passar pela recepção foi abordado por um repórter de uma revista alemã que, acompanhado por um fotógrafo, insistiu em falar com ele durante alguns minutos para «evitar ser despedido».
Hemingway, que naquele dia estava muito bem disposto, conduziu-o ao bar do hotel, onde decorreu a entrevista. Bastaram as primeiras perguntas para perceber que aquele alemão nada sabia a respeito dele: «Esta é a sua primeira visita a Espanha?» (o Nobel da Literatura visitara pela primeira vez o país em 1921); «Já tinha visto touradas?» (não só tinha visto como já tinha escrito dois livros e vários contos em torno deste tema); «Fala espanhol?» (qualquer elementar conhecedor da obra dele saberia que sim); «Escreve tudo por si ou dita os seus romances?» (bastaria esta pergunta, em circunstâncias normais, para o romancista pôr termo à conversa).
Era evidente que aquela entrevista iria acabar mal. Até porque o alemão, esgotado há muito o limite de dez minutos que o entrevistado lhe impusera, insistia em fazer-lhe perguntas cada vez mais idiotas. Levando Hemingway a responder-lhe num registo cada vez mais sarcástico.
O jornalista ia apontando minuciosamente num bloco de notas, incapaz de perceber esse registo:
- Quantas mulheres já amou?
- Pretas ou brancas?
- Bem... Quantas de cada?
- Dezassete pretas, catorze brancas.
- Quais prefere?
- Brancas no Inverno, pretas no Verão.
- O que pensa da morte?
- É mais uma puta.
A conversa ficou por ali: terminou pior do que começara. De todas as perguntas, anotou Hotchner, só à última Hemingway respondeu a sério. Porque era precisamente aquilo que pensava sobre a morte.
Nada que interessasse ao tal amanuense do jornalismo, incapaz de fazer uma entrevista inteligente a um dos gigantes da literatura do século XX que teve o privilégio de conhecer pessoalmente, desperdiçando por completo essa oportunidade.
Há gente assim em qualquer época e em qualquer lugar.