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Delito de Opinião

Brilhante estratego, fraco profeta

Henry Alfred Kissinger (1923-2023)

Pedro Correia, 30.11.23

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Teve uma vida cheia - e lúcida e activa até ao fim. Morreu ontem, tranquilamente, na sua casa do Connecticut. Já centenário, há quatro meses fez uma última visita a Pequim, onde foi recebido por Xi Jinping, que o enalteceu como amigo perpétuo da China.

Catedrático emérito da Universidade de Columbia, talvez o maior especialista em política internacional nos escalões dirigentes norte-americanos da última metade do século XX, Henry Alfred Kissinger, nascido em Maio de 1923 na Alemanha e radicado na América desde 1938, levou uma perspectiva europeia ao Departamento de Estado. Antecipando o que mais tarde, na viragem do milénio, sucederia com Madeleine Albright durante a administração Clinton.

Como conselheiro especial do presidente Richard Nixon, de quem se tornou braço direito para a política internacional, com prolongamento para a administração Ford, subiu tão alto quanto lhe era possível em Washington. Foi o primeiro judeu a desempenhar as funções de secretário de Estado - terceiro posto na hierarquia do Executivo. Faltou-lhe apenas ter sido candidato à presidência, o que lhe estava constitucionalmente vedado por não ter nascido com a nacionalidade norte-americana.

 

Este europeu transposto para o Novo Mundo era herdeiro directo dos "realistas" que retalharam o mapa mundi ao longo de um século -- da Convenção de Viena, em 1815, à cimeira de Versalhes, em 1919. Com duas convicções básicas: nenhum país tem aliados permanentes, só interesses permanentes; e não haverá vencedores em guerras na era atómica. Assim promoveu o degelo nas relações entre Washington e a China comunista primeiro e com a União Soviética logo a seguir. As duas mais espectaculares acções norte-americanas das últimas décadas na política externa.

Legou-nos detalhadas memórias em três volumes e várias obras ensaísticas dissecadas nos circuitos universitários e nas chancelarias internacionais, além de conquistarem leitores fiéis entre os cidadãos comuns. Diplomacia, por exemplo, é um trabalho académico de grande fôlego, confirmando o autor num patamar de erudição muito superior ao da média entre a elite política no seu país adoptivo.

 

A originalidade de Kissinger, nos salões e gabinetes de Washington, radicou-se na sua visão da política externa americana inspirada nos cem anos anteriores dos meandros da diplomacia europeia. Também influenciado, naturalmente, por circunstâncias da sua biografia pessoal: ter nascido numa família hebraica entre as duas guerras mundiais e conhecer a experiência totalitária não em abstracto mas no concreto. O regresso à Alemanha devastada pela guerra, enquanto cumpria o serviço militar já como cidadão norte-americano e exerceu funções de tradutor nas forças armadas, levou-o a perceber como são débeis os pilares daquilo a que chamamos civilização e como se havia tornado irrisória a influência europeia nos destinos mundiais.

A sua tão propalada realpolitik limitou-se, no fundo, a seguir os trilhos abertos por Ialta, na cimeira que dividiu o globo em esferas de influência. O planeta multipolar dos nossos dias, com emergentes potências de âmbito regional, baralhou toda a lógica anterior, que a geração de Kissinger preferia, pois a política de blocos, ideologicamente antagónicos mas perfeitamente identificáveis, assegurou meio século de relativa paz em diversas regiões do globo.

Consumado xadrezista, Kissinger valorizava na política externa as linhas de continuidade estratégica em função das quais as alianças entre nações assumiam uma geometria variável ditada por conveniências tácticas. A aproximação simultânea de Washington a Moscovo e Pequim, sob o seu comando, aconteceu como via de exploração das divergências entre russos e chineses que à época fracturavam o mundo socialista e acabaram por disputar as boas graças dos EUA.

Neste aspecto foi hábil sucessor dos mestres da diplomacia oitocentista na Europa, desde logo Metternich, e opositor da visão messiânica dos Estados Unidos na promoção das boas práticas democráticas à escala planetária.

 

Culto, cosmopolita, viajado, com solidez intelectual e uma perspectiva abrangente do mundo, Kissinger adquiriu fácil relevância no contexto norte-americano, ou seja numa diplomacia globalmente sofrível - para não dizer medíocre. No tempo em que desempenhou funções de relevo em Washington, só 17 senadores tinham passaporte, o que revela muito sobre a classe dirigente dos Estados Unidos.

Há que lembrar, de qualquer modo, que se revelou fraco profeta em relação a Portugal, ao vaticinar em 1975 que o nosso país sucumbiria a uma "ditadura comunista" capaz de funcionar como "vacina" para o conjunto da Europa. E não esqueço o aval, directo ou indirecto, que deu aos generais indonésios para invadirem Timor.

Era uma figura compreensível no contexto da Guerra Fria - e sobretudo à luz desse contexto merece ser valorizada. Pelo menos sabia apontar qualquer país no mapa, teste em que provavelmente muitos dos seus antecessores e alguns dos seus sucessores falhavam.

Henry A. Kissinger (1923/2023)

Sérgio de Almeida Correia, 30.11.23

statesman_2.png.bmp(créditos: daqui)

Nos bons e nos maus momentos esteve com todos e contra todos, com inteligência, ignorância e muito cinismo.

Uma vez convidaram-me para estar presente num dos seus doutoramentos honoris causa. Até hoje não estou certo se acreditava numa palavra do que pensava, do que dizia e do que escreveu.

Mas o seu legado é incontornável. Outros o julgarão. Não faltarão entendidos a dissertarem nos próximos dias, em todos os canais de rádio e de televisão, em tons laudatórios, sobre as suas múltiplas qualidades. Eu limito-me a certificar o óbito do século XX. E olhando à minha volta, para o que se passa no mundo, também não sei se isso será bom.

Ninguém tem o dom de adivinhar o futuro. Ele também não o teve, e por várias vezes tentou interromper o curso da história, treslendo e ignorando os sinais.

Apesar disso foi capaz de escrever muitos sumários. Alguns péssimos. Em Timor não deixará saudades. Outros, felizmente, como no caso português, não se concretizaram. Não ficámos entre Santiago e Havana. Voltámos a ser europeus. De corpo inteiro. E não lhe devemos isso.

Que descanse em paz.

Penso rápido (104)

Pedro Correia, 30.11.23

A direita mais extremista e a esquerda mais extremista, em simultâneo, transformaram o PS no inimigo principal. Tornando-o assim no partido angular, central, do sistema político português.

Não por acaso, no PS venceu sempre a ala capaz de corporizar esse espírito. Desde a apertada vitória de Mário Soares contra Manuel Serra no primeiro congresso do partido, em 1974. António José Seguro perdeu contra António Costa em 2014 porque abriu as primárias a "simpatizantes", já não só militantes - permitindo, portanto, que os futuros geringonços se infiltrassem no processo de decisão. Erro que o fundador do partido nunca cometeria.

A ala mais esquerdista do PS, na vertigem de selar uma coligação (ou até fusão) com o BE e o Livre, persiste em não entender isto. Talvez só aconteça quando já tiver sido atropelada.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.11.23

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Sérgio de Almeida Correia: «Nenhum homem decente, inteligente e sensato q.b. aceitaria, por muito ambicioso ou tributário que fosse ao convidante, ser colocado à frente de uma entidade como o tal Banco tendo de engolir todos os "Franquelins" que lhe fossem impingidos

 

Teresa Ribeiro: «O tema da falta de comunicação entre as pessoas nas sociedades modernas já é tão banal que aflorá-lo sem cair em lugares comuns começa a ser difícil. "Desligados" é pois um filme  que se arrisca à irrelevância ao focar-se por inteiro neste tópico, sem recurso a enredos paralelos ou notas de humor que nos surpreendam. Mas tal como as melhores obras de ficção esta película, premiada nos festivais de Veneza e de Toronto, não precisa de subterfúgios para conseguir a nossa atenção.»

 

Eu: «Julgo falar por todos os membros do DELITO DE OPINIÃO ao deixar aqui um caloroso abraço de felicitações ao nosso colega de blogue Luís Menezes Leitão. Pela sua eleição, já confirmada, para a presidência do Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Na certeza de que o lema "Ao serviço da advocacia" será integralmente cumprido no exercício das novas funções, dando natural sequência à confiança nele depositada pelos seus pares.»

A Lisboa que muda na Lisboa que fica

Pedro Correia, 29.11.23

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Isabel Ruth e Rui Gomes no filme Os Verdes Anos, de Paulo Rocha (1963)

 

Não houve um filme como este, não haverá um filme como este. Admirável enlace entre imagem e som, com os acordes sofridos de Carlos Paredes a sublinhar este drama de gente desenraizada nos dédalos de uma cidade que se reinventava naqueles dias de ilusória quietação pressagiando tempos de turbulência.

É um filme que bebe inspiração sobretudo no cinema italiano que lhe era contemporâneo. Há aqui muito Antonioni, há aqui muito do inesquecível início da Dolce Vita, com uma imagem de Cristo a sobrevoar de helicóptero os novos subúrbios de Roma, espécie de sorridente alegoria ao milagre económico italiano.

Era um cinema de intervenção, certamente. Mas muito mais no plano estético do que no plano político. Era um cinema que olhava com veneração para a arquitectura e acreditava com sinceridade que os arquitectos eram os novos profetas da modernidade, capazes de - com as suas linhas ousadas e arrojadas - abraçar o futuro e edificar os alicerces de uma sociedade diferente, habitada pelo homem novo.
Utopias urbanísticas tornadas pouco antes realidade, como sucedeu com a Brasília de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, conduziam a isso. Daí a veneração quase infantil que Paulo Rocha demonstra pela arquitectura, pondo as suas personagens a deambular constantemente pelos espaços mais modernos da Lisboa daquele início da década de 60 - Avenida dos EUA, Avenida de Roma, Cidade Universitária...

 

Como se viu depois, a arquitectura serve para muito mas não para moldar o homem novo, que aliás permanecerá eternamente por criar. E a vanguarda de anteontem torna-se rapidamente uma obsoleta mercadoria académica aos olhos dos que nascem depois de amanhã.
O Cinema Novo tornou-se rapidamente prisioneiro das suas contradições, abraçando um neo-realismo tardio (em obras como Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes, e A Promessa, de António de Macedo), quase sempre a preto e branco, como metáfora permanente de um regime que parecia imutável mas que se tornou também espelho de fronteiras artísticas demasiado estreitas.

Derrubado o regime, também de algum modo os seus opositores no campo artístico se tornaram anacrónicos. O fabuloso Berlamino (1964) escapa a esta sina porque recusou logo à partida encerrar-se naquela tendência de contrapor ao miserabilismo da ditadura uma linguagem artística também tocada pelo miserabilismo de circunstância.

 

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Cena do filme rodada na Avenida de Roma, em Lisboa, junto à pastelaria Suprema


Os Verdes Anos, com as suas evidentes fragilidades, interessa-me hoje sobretudo pela sua vertente documental. Era um cinema feito na rua, que recusava o estúdio, também por inspiração italiana - e este filme, que constitui uma declaração de amor a Lisboa, acaba por ter portanto as rugas que a própria cidade ostenta. Neste aspecto, como noutros, diremos que a arte imita a vida...
Ainda há dias passei pela oficina de sapateiro do Raul/Rui Furtado, naquela cave situada mesmo ao lado da Suprema: tudo tal e qual como vem no filme. Excepto que a fresta, hoje gradeada, já não está aberta à rua. Ou o Vá Vá, onde decorre a cena final: está praticamente na mesma. Inversamente, a Floresta do Ginjal, que bem conheci na outra banda e era local de romaria gastronómica ao fim de semana, está há muito encerrada - sintoma de incompreensível decadência numa localização privilegiada, onde se obtêm as melhores vistas sobre a capital.
O filme confirma que, por detrás de uma Lisboa que muda, há uma Lisboa que permanece. Outros, antes dele, fizeram o mesmo - mas talvez nenhum com a transparência e a admirável sinceridade deste. Ao som hipnótico da guitarra de Paredes e revendo para sempre o belo rosto de Ilda/Isabel Ruth, em eterno desafio às inclemências do tempo com um fulgor que só a magia do cinema dá.

 

Texto reeditado, no dia do 60.º aniversário da estreia d' Os Verdes Anos

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 29.11.23

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Hoje lemos: Robin Cook, "Viral".

Passagem a L-Azular: "Na desastrosa pandemia de gripe de 1918, que matou mais de cem milhões de pessoas, contavam histórias de pessoas assintomáticas que entraram no metro em Brooklyn e morreram de pneumonia viral quando chegaram a Manhattan. Se tais histórias eram apócrifas ou não, ninguém sabe ao certo, mas penso que eram verdadeiras devido à virulência daquela estirpe específica de gripe. O que se acredita agora é que eles morreram devido ao enlouquecimento do seu próprio sistema imunológico no que é chamado de Tempestade de Citocinas."

É bom saber sobre este tipo de tempestades, que segundo os tudólogos nunca aconteceram, para quando fizer mau tempo a sério, porque vai sem dúvida voltar a acontecer ou a não-acontecer, dependendo do ponto de vista, e podermos assim estar prevenidos. Saber é poder antecipar, é poder prevenir. A sorte por cá é que o metro ou está em greve ou está parado por mau funcionamento ou está em obras.

(Imagem Google)

Copiar isto não seria experimentalismo

Paulo Sousa, 29.11.23

A racionalidade económica recomenda frequentemente medidas contra-intuitivas. Os exemplos são inúmeros, mas podemos falar do caso de um hipermercado que funcione em concorrência. Como pode aumentar os seus lucros? Numa lógica básica imediatista, o primeiro pensamento recomendaria que se aumentasse os preços de forma a aumentar as suas margens comerciais. No entanto, com elevada probabilidade, o resultado mais provável seria uma perda de vendas para a concorrência com o resultado exactamente inverso ao pretendido. Mais adequado seria baixar os preços dos seus artigos para assim atrair mais clientes. Mesmo ganhando menos em cada artigo vendido, obteria um melhor resultado pelo aumento do número de artigos vendidos. É apenas um exemplo.

Vem isto a propósito da publicação pelo Instituto +Liberdade de uma palestra de Maurice P. McTigue, ex-ministro neo-zelandês, responsável pelas reformas implementadas nesse país nos anos 90, da qual aqui deixo um excerto. Para quem preferir o ouvir, pode aqui ouvir toda a intervenção.

 

“Quando, na Nova Zelândia, olhámos para o nosso processo de arrecadação de receita, concluímos que o sistema era extremamente complexo, de uma forma que distorcia tanto as decisões empresariais como as individuais. Então fizemos algumas perguntas a nós mesmos: o nosso sistema fiscal visava a arrecadação de receita? Visava a arrecadação de receita e também a prestação de serviços sociais? Ou visava a  arrecadação de receita, a prestação de serviços sociais e a mudança de comportamentos, tudo ao mesmo tempo? Decidimos que os serviços sociais e as componentes comportamentais não faziam parte de um sistema de tributação racional. Assim sendo, decidimos que iríamos passar a ter apenas dois mecanismos de tributação – um imposto sobre o rendimento e um imposto sobre o consumo – e que simplificaríamos estes mecanismos e baixaríamos as respectivas taxas tanto quanto o possível. A taxa mais alta do imposto sobre os rendimentos baixou de 66% para 33%, e a mais baixa de 38% para 19%, com apenas estes dois escalões. Depois, estabelecemos uma taxa de imposto sobre o consumo de 10% e eliminámos todos os outros impostos – impostos sobre mais-valias, impostos sobre a propriedade, etc.

Desenhámos este sistema cuidadosamente para obter exactamente a mesma receita que recebíamos antes, e apresentámo-lo ao público como um jogo de soma zero. Mas o que realmente aconteceu foi que passámos a arrecadar mais 20% do que antes. Porquê? Não tínhamos antecipado a redução voluntária da evasão fiscal. Se as taxas de imposto forem baixas, os contribuintes não vão contratar advogados e contabilísticas sofisticados para encontrarem mecanismos de evasão fiscal. Na verdade, todos os países que analisei um pouco por todo o mundo que simplificaram e baixaram drasticamente as suas taxas de imposto acabaram por arrecadar mais receitas, não menos."

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.11.23

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Ana Lima: «É um facto que as ideias não são novas. Mas é bom que, nestes tempos em que a Economia e a sua linguagem imperam, possamos encontrar quem chame a atenção para outras formas de ver. E que lucidez, a deste autor!»

 

Fernando Sousa: «Goste-se ou não dele é um português que não se engasga: António Marinho Pinto. Não há muito disto. A última entrevista dele como bastonário foi hoje para o ar na Antena 1. Nos seus dois mandatos meteu muitas vezes o pé na argola, outras chamou os bois pelos nomes. Mas que deu vida à Ordem dos Advogados, isso parece-me que sim.»

 

João André: «De uma penada vejo um certo tipo de mentalidade: uma cristã preocupação pelo sofrimento no mundo e um muito prático aproveitamento das oportunidades geradas. Pedro Passos Coelho tinha de facto razão: a crise e o desemprego são oportunidades. Para os outros países.»

 

Eu: «Trabalho, palavra bíblica. "Bem basta a cada dia o seu trabalho", diz Jesus no Sermão da Montanha. Reescrita à luz da novilíngua dominante, quem trabalha deixou de ser trabalhador: é "funcionário" ou, de modo ainda mais eufemístico, "colaborador". Pela mesma lógica, não pode ser despedido mas "dispensado". Ou, de modo ainda mais eufemístico, alguma Alta Entidade da corporação empresarial "prescinde" dos seus serviços. Ou da sua colaboração.»

Xavier Milei

José Meireles Graça, 28.11.23

E as pampas, hã? Que maravilha. Buenos Aires então, aquilo é como uma cidade europeia. E tens lagos altos que só visto, uma variedade de climas (com quase 4.000 km de comprimento para 1.400 de largura a coisa dá para assar ao Norte e gelar no extremo sul), e – não esquecer – é a terra do tango, de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar (não li, mas diz que são famosíssimos). A carne é do melhor (são tradicionalmente grandes exportadores) e parece que até à Grande Guerra, e mesmo até ao fim da década de 20, o país ombreava com as economias que mais se desenvolviam. Depois ficou com sezões, até hoje, com um caudillo e uma primeira-dama célebres pelo meio, ditaduras e várias falências (três desde 2001, de um total de nove).

Os números são aterradores: mais de 140% de taxa de inflação, mais de 40% de pobres (não apurei se, dos variadíssimos conceitos que existem, esta percentagem se refere a indivíduos que recebem menos do que 60% do rendimento mediano ou outro qualquer), produto por cabeça estimado quase ao nível de 1974, emigração de cérebros, fuga de divisas, défices permanentes das contas públicas, economia de tobogã ao longo dos anos, isto é, com crescimento significativo seguido de recessões profundas, sector produtivo débil por estar tradicionalmente abrigado da concorrência estrangeira, fuga de divisas, banco central carente de independência, e um longuíssimo etc.

(A fuga de divisas chega a ser caricata: da muita literatura que consultei não vi referências ao que fazem os exportadores que são pagos em moeda estrangeira mas forçadamente convertida em pesos a um câmbio inferior ao do mercado negro – o Estado precisa desesperadamente delas e há muito que os câmbios oficiais deixaram de ter qualquer correspondência com o valor real do peso. Conclui, porém, que devem fazer o que é lógico, isto é, subfacturam e criam contas no exterior para as diferenças, que não chegam a sair do país importador).

Pois bem: um indivíduo que comentadores circunspectos, da esquerda à direita, declaram como um palhaço louco, ganhou as eleições. A alegada palhacice vem-lhe do corte de cabelo, da veemência e radicalismo das declarações, que incluem vernáculo no tratamento de oposicionistas, utilização em campanha de uma motosserra para simbolizar os cortes necessários, e um comportamento com frequência histriónico; e a loucura de um programa que inclui coisas como a dolarização da moeda e a extinção do banco central, a negação da origem antropológica do aquecimento global, a rejeição completa da agenda woke, a extinção de uma quantidade assinalável de ministérios, incluindo o das Mulheres, Género e Diversidade, além de uma quantidade de medidas, chocantes umas, originais outras, que cabem no que genericamente se pode designar como liberalismo libertário.

É impossível que possa aplicar a totalidade do seu programa porque não tem a maioria no Congresso e este tem extensos poderes. E é decerto ciente dessa limitação que Xavier Milei já começou a pôr água no vinho de anteriores posições: por exemplo, telefonou ao papa, seu compatriota, convidando-o a visitar o país, não obstante ter em tempos declarado tratar-se de um Jesuíta que promove o comunismo; e já pôs em banho-maria o seu antagonismo em relação ao Brasil e China, ainda que ao mesmo tempo declare que vai alinhar com os EUA, Israel e o mundo livre.

Entre nós o homem é de “extrema-direita”, como Trump, Bolsonaro, Orbán, Meloni, Morawiecky, o caseiro André Ventura e outros.

Porém o mesmo chapéu não pode servir para todos estes políticos. Trump, por exemplo, é um proteccionista e Xavier Milei o exacto oposto; e é preciso um prodígio da imaginação para fazer equivaler Jair Bolsonaro a Giorgia Meloni, ou achar que Ventura tem um programa económico liberal consistente. A menos que se queira dizer que desde o momento que se queira pôr um dique à marcha imparável de todas as esquerdas para

reforçar o papel do Estado na economia e na vida das pessoas; a transformação da livre iniciativa num capitalismo de compadrio; que a liberdade de opinião seja a de pensar dentro das baias apertadas do bem-pensismo oficial; e que a propriedade seja um íman para impostos, a história uma falsificação ignorante e interesseira e os magistrados da opinião, bem como os da Academia, um vasto rebanho papagueando as mesmas doutrinas falidas e daninhas na economia e na engenharia social:

se é de extrema-direita.

Os quais políticos de extrema-direita, a julgar por estes exemplos, têm uma característica curiosa: chegaram ao poder em eleições livres, os que já chegaram, e dele sairam, os que já saíram, pelo mesmo caminho. Morawiecky, aliás, ganhou as recentes eleições e nem assim vai formar governo, porque não tem a maioria no Parlamento, como sucedeu com Passos Coelho, que talvez também fosse de extrema-direita – a doutrina não é pacífica.

No continente americano Nicolás Maduro ou Díaz-Canel, por exemplo, com eleições é que não vão sair, o que levanta um problema: se a extrema-direita é democrática e a extrema-esquerda não, um dos sectores do espectro político deve mudar de designação. Ou então os comentadores devem apresentar-se em público com orelhas de burro, o que no caso de alguns teria ainda a vantagem suplementar de lhes disfarçar a caspa.

Buenos Aires é uma capital europeia, como a língua; o país católico, as instituições democráticas, o potencial grande como o país; e Xavier Milei um comentador, académico e político com esteróides. Diz-se anarco-capitalista e é socialmente conservador.

Louco? Os sensatos puseram reiteradamente a Argentina de joelhos, onde está. Pior não pode fazer, donde seria prudente, para dizer o mínimo, que a direita envergonhada que aprecia que a esquerda a olhe com tolerância lhe desse ao menos o benefício da dúvida.

A crise da habitação

Luís Naves, 28.11.23

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Não há dúvida de que o país está mal. Muitos sectores descontentes, médicos, militares, professores, trabalhadores de todas as profissões, agricultores, classe média. A maioria sente que não há dinheiro para nada, rendas proibitivas, comida caríssima, salários estagnados, empresas em dificuldades. Depois, os ricos andam numa festa que ninguém entende, há sinais exteriores de riqueza e bolha de satisfação, mas é só para clientelas. Os socialistas estão a desperdiçar o último grande pacote comunitário em ilusões de energias não testadas. Não se fala muito disso, mas não haverá mais abundância de fundos. Depende do que irá acontecer na Ucrânia, mas as elites europeias já decidiram que vão financiar outro grande alargamento, o que significa que Portugal será a curto prazo contribuinte líquido da UE. Os socialistas criaram um sistema de pensamento mágico que consumiu os recursos escassos do país. As sucessivas crises da III República desperdiçaram as poupanças da população, depois o capital, agora estão a gastar o derradeiro dinheiro europeu. Estoiraram com a habitação e com as pequenas empresas, não há indústrias e os jovens não têm perspectivas. Este será um país de velhos, com painéis solares nas marquises e a vergar a mola no turismo.

imagem: IA, Bing image creator

Pedro Nuno Santos esteve bem

Paulo Sousa, 28.11.23

Segundo o Correio da Manhã, Pedro Nuno Santos vendeu um apartamento a um casal de chineses por 485 mil euros. Segundo a mesma notícia, este venda ter-lhe-á gerado uma mais-valia de 205 mil euros. Pelo que li, não consegui saber se este casal beneficiou ou não dos vistos gold, mas independentemente disso deixo aqui o meu aplauso ao candidato à liderança do PS e do futuro governo. Se fosse do meu círculo pessoal, tinha de pagar um jantar.

Sensível ao quadrante político com se identifica, PNS ter-se-á inspirado nas sábias palavras do líder chinês Deng Xiaoping, quando afirmou que enriquecer é glorioso.

Sobre a forma simplista e bipolar como vê socialismo, em permante combate com o capitalismo, assim como sobre a coerência da imagem que pretende transmitir, que o terá até obrigado a vender um Porsche por não ser compatível com a "mensagem" socialista, cada um pode tirar as suas conclusões.

Eu, como disse, aplaudo-o pelo negócio imobiliário que conseguiu fazer.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.11.23

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Luís Menezes Leitão: «Depois desta denúncia, Mário Soares vai naturalmente processar o papa Francisco por plágio na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «A riqueza nunca me afligiu. Sempre convivi bem com ela mesmo quando tinha muito pouco. Porém, não deixo de pensar sobre o sentido que terá a elaboração dos rankings dos mais ricos, dos mais opulentos, dos mais ostensivos na exibição. O voyeurismo é um passatempo de todos os tempos a que sempre se dedicaram alguns pobres de espírito. Mas num momento como este, que Portugal e uma boa parte do mundo cruzam, em que a pobreza cresce a olhos vistos, em que a imprensa relata casos de crianças que chegam à escola sem pequeno-almoço, e outras ainda nem sequer adolescentes que se limitam a ter uma exígua refeição diária, faz algum sentido anunciar aos quatro ventos, como ainda há dias se dizia na rádio, que a fortuna de 870 milionários portugueses cresceu 715 mil milhões de euros, apesar da crise económica?»

 

Teresa Ribeiro: «Não me esqueço do dia em que ao sentar-me para mais uma "entrevista", informando enquanto tirava um molho de papéis da mala que tinha vários assuntos a tratar, uma funcionária de olhos nos meus me diz em voz baixa: "Desculpe, mas eu vou ter que lhe pedir para não demorar muito tempo. É que eu fui aqui colocada pelo centro de emprego há poucos meses e tenho ordens para não perder mais do que 15 minutos com cada pessoa. A minha chefe não quer saber se atendo bem ou mal. O que não posso é baixar a média de atendimento de quatro pessoas por hora. Quando me avisou que tinha muitos assuntos para tratar achei melhor pedir-lhe desde já este favor porque é a manutenção do meu emprego que está em causa, entende?" Foi surreal, mas entendi. Longe de mim comprometer o emprego da senhora. Entendi tudo: o stress dela e a suprema hipocrisia dos responsáveis pelos "serviços de apoio" aos contribuintes, onde o que contam são os índices de produtividade e não a qualidade da resposta que é dada aos utentes.»

Mudança

Luís Naves, 27.11.23

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As mudanças dos últimos 30 anos foram tremendas. Toda a gente quer comunicar e isso estoirou com os canais tradicionais da circulação de informação. Esta ficou demasiado barata para sustentar os meios de antigamente. Temos redes sociais e telemóveis, o conhecimento acumula-se, a ponto de se tornar difícil, no meio da amálgama da quantidade, distinguir aquilo que é mais válido. Esta vaga da digitalização mudou as organizações, a política e o comércio, também acelerou a criação de uma civilização mundial, alterando costumes e línguas, até as próprias nações. As pessoas sentem ansiedade em relação ao futuro e a vida tornou-se mais incerta. Há também um endividamento colossal, talvez insustentável. A acumulação de conhecimento foi acompanhada pela redução abrupta do custo dos transportes, o que tornou acessível a produção de todos os mercados, mas a mudança ainda não terminou. Nos próximos anos chega uma nova onda, de energia barata e inteligência artificial: teremos electrificação dos transportes, transição energética e mais incógnitas. A segunda aceleração acumula os seus efeitos sobre a anterior, as locomotivas empurram-se uma à outra.

imagem: IA, Night Café

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