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Delito de Opinião

Leituras

Pedro Correia, 27.10.23

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«Há em Camões, e não tem sido notado, uma tolerância infinita, um sentido da liberdade erótica, uma consciência da dignidade última do prazer sensual qualquer que ele seja, que quase não tem par na literatura portuguesa.»

Jorge de Sena, Amor (1992), p. 66

Ed. Guerra & Paz, 2023

Consciência, consciência, quem és tu?

Maria Dulce Fernandes, 27.10.23

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"Os professores vão juntar-se à greve da Função Pública, na sexta-feira[...]"

 

Sinceramente, não sou contra algumas reivindicações dos professores, ou dos auxiliares de acção educativa. Têm o direito de lutar pelo que lhes é devido. 

Apenas se me afigura estranho demais estas greves serem quase todas às segundas-feiras, às sextas-feiras, em vésperas de feriados ou sempre que dê para fazer uma ponte e as crianças, cujos pais trabalham e não têm onde os deixar, podem ficar até cinco dias em casa sem orientação pedagógica. Depois lá se despeja o programa e quem alcançou, óptimo, quem não alcançou passa coxo, porque até ao quarto ano, salvo raras excepções, todas as crianças transitam.

Hoje fiquei com os meus netos. Feliz da minha filha que teve onde deixar as crianças. Mas se pensarmos em quantas famílias são prejudicadas por estas greves de fim de semana prolongado, já que por cada falta não justificada antes ou depois do fim de semana, o pai ou a mãe perdem três dias de vencimento, constatamos que ao que parece que os professores não querem apenas reivindicar justiça para a sua classe, querem também assegurar menos horas laborais.

Antigamente, as greves faziam-se com os funcionários presentes nos locais de trabalho. Não trabalhavam, mas estavam lá. Assim podiam contestar, dando o corpo ao manifesto e não a uma escapadinha a um local da moda. Afinal, onde é que pára a consciência?

(Imagens cnnportugal)

O Hamas e Guterres*

José Meireles Graça, 27.10.23

A ONU é um prestigiado organismo à espera da III Guerra Mundial para decidir quem são os novos membros inamovíveis do Conselho de Segurança.

Tem inúmeras agências, entre especializadas e para administração de fundos e programas. Das primeiras (aliás autónomas, o chapéu da ONU é um rótulo) as mais conhecidas são a Organização Mundial de Saúde, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Unesco, e das segundas a UNICEF e o IPCC, este último também sob a égide da WMO, especializado na aterrorização da opinião pública com a trágica perspectiva de morrermos ou assados ou afogados. O Secretário-Geral nutre por este particular carinho, razão pela qual há uns anos apareceu na capa da Time com um fato de excelente corte mas com água pelas canelas, assim como recebeu a miraculada Greta Thunberg, que foi à ONU joanad’arcar os crentes nas maluqueiras que lhe povoam a cabeça adolescente.

Toda esta nebulosa é razoavelmente opaca e consome incontáveis milhões. Há uns anos falava-se de reformas, a ver se se punha um freio na crescente necessidade de fundos para financiar o monstro das mil cabeças burocráticas, mas a tarefa, além de ciclópica, choca com o interesse dos países membros, invariavelmente a favor de mudanças desde que os outros paguem mais, e cada um menos.

De todo o modo, Guterres nunca seria a pessoa indicada para semelhante tarefa, por ter o dinamismo de uma preguiça, a determinação de um catavento e a visão de uma toupeira. O homem chegou ao lugar que ocupa por se imaginar ter o perfil certo para a função: natural de um país exemplarmente democrático, pacífico e ordeiro, que não faz sombra a ninguém, experiente nas trincas e mincas da burocracia internacional, de convicções saudavelmente de esquerda moderada, católico mas tolerante, flexível, terceiro-mundista quanto baste, e dono do respeito instintivo que lhe merecem, e acha que devem merecer, burocracias em geral, e supranacionais em particular.

Esperava-se que não fizesse ondas. O Secretário-Geral tem ainda menos poderes reais que a Assembleia-Geral, a qual funciona segundo o curioso princípio de as suas votações democráticas resultarem de maiorias constituídas por países que de democráticos têm nada. Se algum país considerar que o seu interesse nacional é ferido por deliberações daquele prestigiado órgão, ignora-as e pronto – foi o caso, muitas vezes, de Israel.

O bom do Guterres, porém, descobriu uma bandeira, a das alterações climáticas, e agarra-se a ela com fervor: em Julho passado avisava, o cenho carregado de aflição, que o mundo já estava em ebulição. O qual mundo ficou imperturbável, salvo as organizações malagrídicas, que aproveitaram a boleia para pedir mais fundos e pedras para atirar às montras dos estabelecimentos, os governos que pretendem cobrar mais impostos verdes, as empresas que investem em produtos e actividades “protectoras” do ambiente, alguns partidos políticos que pretendem fazer passar o seu anseio pelo igualitarismo demente à boleia do clima, e os jornalistas que vivem de vender notícias de homens que mordem em cães.

Estava bem assim porque a ONU, imenso coio de inúteis, areópago de hipocrisias, sorvedouro de fundos, é indispensável por ser o lugar onde toda a gente fala com toda a gente e apalpa o pulso do mundo. Isto pode evitar desentendimentos e guerras, e do cortejo de agências são indispensáveis umas, e é provável que as outras façam mais bem do que mal.

Do que não se esperava era que na guerra Israel/Hamas Guterres tomasse partido. E embora o próprio se esfalfe por explicar que não disse o que disse ("It is important to also recognize the attacks by Hamas did not happen in a vacuum. The Palestinian people have been subjected to 56 years of suffocating occupation”), e por todo o lado haja gente, incluindo entre nós o inevitável Marcelo, que finge que não percebe, por estúpido paroquialismo, o que ele realmente quis dizer, conviria que os fingidores, os ingénuos, os interesseiros e os hipócritas não nos tomassem por parvos:

Não há nem nunca houve um atentado terrorista que nascesse do vácuo. Do ponto de vista dos perpetradores há sempre razões. E portanto Guterres, ao enunciar o óbvio, não é o óbvio que está a enunciar mas sim a sua simpatia pelo Hamas. Como se percebe quando só podemos concluir que, face ao ataque terrorista, ele provavelmente entende que Israel se devia defender não com armas mas apresentando um protesto na ONU (e comprar a libertação dos reféns, como já fez no passado e talvez tenha de fazer agora, com a libertação de terroristas presos). O secretário-geral da Liga Árabe, esse, percebeu perfeitamente, e estou certo que os aiatolas também.

A ONU é uma organização de Estados, não de movimentos ou ONG’s, e um diplomata não lança achas para a fogueira quando o seu papel é ajudar a extinguir incêndios. Guterres foi o nosso PM do pântano. Nunca devia dele ter saído para nos envergonhar colocando-se ao lado de terroristas.

 

* Publicado no Observador

Nos passos de Vlad Dracul

Ana CB, 27.10.23

Uma das personagens mais evocadas nesta época de Halloween (importação que parece ter vindo para ficar) é sem dúvida o Conde Drácula, o famoso vampiro à volta de quem gira a história do livro homónimo de Bram Stoker. Para criar o seu protagonista o escritor inspirou-se vagamente na figura de Vlad Dracul, que foi voivode (príncipe) da Valáquia no séc. XV. Mas sabiam que Stoker escreveu o seu livro sem nunca ter postos os pés na Roménia? E quem foi realmente Vlad Dracul? Entre o mito e a realidade, os factos confirmados e aqueles cuja genuinidade permanece incerta, vou contar um pouco da sua história, numa visita guiada pelos locais que permanecem ligados à sua memória.

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SIGHIŞOARA

 

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Sighişoara é uma das cidades mais bonitas da Roménia, e presume-se que foi nesta casa situada no coração do centro histórico que Vlad Dracul III nasceu, algures entre 1428 e 1431, e viveu até aos quatro anos de idade. Deram-lhe o mesmo nome do pai, apesar de ser o segundo filho. Dracul significa “dragão”, sobrenome que o seu pai recebera ao tornar-se membro da Ordem do Dragão, uma Ordem fundada pelo Imperador Segismundo em 1408, na Transilvânia, para proteger o Cristianismo no leste europeu.

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P1480214 assin.jpgA casa é actualmente um restaurante, sempre muito concorrido devido ao “folclore” que existe à volta da figura histórica de que foi berço, mas consta que a qualidade da comida não é exactamente proporcional à sua fama.

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TÂRGOVIȘTE

 

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Târgoviște era na época a capital do voivodato da Valáquia, razão pela qual a família Dracul se mudou para aqui quando Vlad Dracul pai conseguiu ascender ao trono da Valáquia, em 1436. Foi por isso aqui que Vlad filho viveu grande parte da sua infância.

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Depois de o seu pai e irmão mais velho terem sido assassinados, Vlad reclamou para si o principado, mas apenas conseguiu mantê-lo durante dois escassos meses em 1448 até ser obrigado a refugiar-se fora da região. Em 1456 voltou a atacar a província e retomou o trono da Valáquia. Correu entre os habitantes o rumor de que era o seu pai que tinha regressado do mundo dos mortos para os proteger, e presume-se que seja esta a origem provável do mito da imortalidade de Vlad Dracul. Desta vez conseguiu manter o seu domínio durante seis anos. A Valáquia era disputada pela Hungria e pelos otomanos, pactos e alianças faziam-se e desfaziam-se à velocidade da luz, e as traições eram constantes. A violência era moeda corrente na época, mas consta que os métodos de Vlad para instigar respeito e terror excediam o habitual. Quando o exército do sultão Mehmet II entrou em Târgoviște em meados de 1462, a cidade estava deserta mas o cenário com que depararam era dantesco: milhares de cadáveres de homens, mulheres e crianças estavam empalados em grandes estacas cravadas no chão, formando uma floresta macabra de carcaças em estágios de decomposição variados. A sua brutalidade valeu-lhe o nome pelo qual passou a ser depois conhecido: Vlad Țepeș (Vlad, o Empalador).

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Do palácio real (Curtea Domnească) de Târgoviște restam hoje apenas ruínas. Mas o conjunto monumental que pode agora ser visitado tem outros motivos de interesse, sendo um deles o actual ex libris da cidade: a torre Chindia, que foi mandada construir pelo próprio Vlad Dracul III.

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FORTALEZA DE POENARI (CETATEA POENARI)

 

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O castelo de Poenari tem as suas origens no séc. XIII, mas encontrava-se em ruínas quando Vlad Țepeș decidiu aproveitar o seu potencial defensivo e transformá-lo numa fortaleza quase inexpugnável. Quase, mas não completamente, pois nem ela conseguiu resistir aos avanços dos Otomanos no final do seu segundo reinado, tendo Vlad sido obrigado a fugir por uma passagem secreta com acesso às montanhas a norte. Diz a lenda que a sua mulher se suicidou atirando-se das muralhas, apavorada pelo receio de ser selvaticamente maltratada pelos turcos – a violência desmedida não era um exclusivo do seu marido. Situada perto de Arefu (em pleno coração da fabulosa Transfăgărășan), a 860 metros de altura, a fortaleza de Poenari é basicamente uma muralha – e em termos práticos, um “ninho de águia” que obriga a subir mais de 1400 degraus para lá chegar. Só para corajosos…

 

CURTEA VECHE

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Na Roménia, Vlad Țepeș é considerado um herói nacional. Em flagrante contraste com a imagem sanguinária descrita na maioria dos textos da época que sobreviveram até aos nossos dias – escritos por saxões e turcos, há que notar, que eram os seus maiores inimigos – as narrativas tradicionais romenas apresentam-no como um apoiante dos camponeses contra os traiçoeiros boiardos e um intrépido defensor do seu principado contra o Império Otomano. É provavelmente por isso que o encontramos representado em bustos esculpidos um pouco por todo o lado – e Bucareste não é excepção.

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O Palácio Real Velho fica mesmo no centro histórico de Bucareste e foi mandado construir de raiz por Vlad II Dracul. Vlad Țepeș, que era o seu segundo filho, ocupou-o durante o segundo reinado, entre 1456 e 1462. A partir dessa altura passou a ser a residência real oficial, estatuto que só perdeu no séc. XVIII. Hoje em dia funciona como museu, fazendo parte do núcleo do Museu Municipal de Bucareste.

 

CASTELO DE BRAN

 

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É irónico que o local na Roménia mais associado ao Drácula de Bram Stoker seja aquele que menos (ou talvez mesmo nada) tem a ver com Vlad Dracul III. Stoker nunca visitou a Roménia, e presume-se que tenha aproveitado uma ilustração do castelo de Bran mostrada num livro de Charles Boner para descrever o castelo do Conde Drácula, uma vez que mais nenhum castelo romeno se lhe assemelha.

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Situado a poucos quilómetros da turística cidade de Brașov, na Transilvânia, o castelo de Bran está construído – como seria de esperar – no topo de uma elevação junto à localidade com o mesmo nome, rodeado de vegetação. A Transilvânia só passou a fazer parte da Roménia depois da Primeira Guerra Mundial, e em 1920 os cidadãos de Brașov decidiram unanimemente oferecer o castelo de Bran à Rainha Maria, que o restaurou e passou a usar como residência real.

A ténue ligação que o castelo de Bran talvez possa ter com Vlad Țepeș remonta a 1462, quando o príncipe foi capturado pelo exército do rei húngaro e, segundo consta (mas não está provado sem sombra de dúvida), ali terá ficado encarcerado durante dois meses.

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MOSTEIRO DE SNAGOV

 

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Vlad voltou a conquistar a Valáquia novamente em 1476, mas também desta vez o seu reinado foi de curta duração. Mais uma vez atacado pelos turcos, foi morto perto de Bucareste em Dezembro do mesmo ano. A História diz que a sua cabeça foi enviada a Mehmet II, em Constantinopla. Já quanto ao local onde foi sepultado, a controvérsia mantém-se até aos nossos dias – outra coisa não seria de esperar um homem cuja vida deu azo a tanta celeuma. A versão mais difundida é que foi enterrado no mosteiro de Snagov, situado numa ilhota no lago que leva o mesmo nome.

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O lugar é tranquilo e muito bonito. A apenas cerca de 40 km a norte de Bucareste, é um local privilegiado de veraneio para os habitantes da capital.

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Recentemente, os historiadores levantaram a hipótese de Vlad Țepeș ter de facto sido sepultado no Mosteiro de Comana, por se encontrar mais próximo do local onde ocorreu a batalha em que foi morto.

 

Do que não restam dúvidas é que o príncipe da Valáquia morreu mesmo, embora a memória colectiva se tenha encarregado de o guardar para a posteridade. Por mera coincidência ou ironia do destino, o Drácula de Bram Stoker terá certamente dado uma “ajudinha”.

 

(Post já publicado no blogue Viajar Porque Sim)

O Ocidente sob fogo no sofá

Pedro Belo Moraes, 27.10.23

Habituados ao fast food, os ocidentais só toleram a fast war. Viciados na transacção de emoções, na partilha de sentimentos, os ocidentais pululam entre Apps. Num dia ficam esmagados pelos pushes da torrente de notificações que dão acesso às imagens horríficas do terror do Hamas no dia 7 de Outubro; nos outros indignam-se, revoltam-se, enfurecem-se com a operação militar israelita que “ocupou” a miríade de Apps.

De palas nos olhos, os ocidentais passam a ver apenas a destruição de Gaza e o drama humano por ela provocado. E a emoção mais recente é a que os move. Comove. E tudo à distância de um clique num ecrã do telemóvel ou do lesto polegar carregando nas teclas do comando remoto do televisor. E o comando ser remoto é o eufemismo disto tudo.

É o Ocidente no sofá. Sempre descansado porque mero mirone a salvo das injustiças que o ofendem. Insurgido com as atrocidades cometidas sobre inocentes, claro!, mas raras vezes assustado, raríssimas vezes vislumbrando que a peça que o ofende é, apenas e só, uma pequena parte de um puzzle que uma vez construído - e o dito está em construção - destruirá a ordem mundial que nos coloca a nós Ocidente como a única representação dos valores da tolerância, liberdade, democracia, diversidade. Os mesmos que estão sob fogo porque como as normas que nos regem há séculos o Ocidente está sob fogo. E tem de se defender.

Mas voltemos às emoções. Lembremo-nos da comoção geral nos Parlamentos vários, muitos, das democracias liberais, de cada vez que foram bradadas declarações do tipo: “Os ucranianos estão a lutar por nós.”; “É a Ucrânia que combate aquele que ameaça o nosso estilo de vida.”; “Uma vez derrotadas as forças de Kiev, o imperialismo vai querer expandir-se Europa fora.” Tudo isto, claro, replicado, retuitado, reencaminhado redes sociais fora. A necessária e tão desejada ração de emoção servida minuto-a-minuto, hora a hora. Like it!

Não tenhamos dúvida: como os ucranianos, também os israelitas estão a defender-nos. A destruição de uns e outros faz parte de um puzzle. A invasão russa da Ucrânia e o ataque do Hamas a Israel (a única democracia liberal da região) fazem parte de um plano que tem como objetivo primeiro e último destruir o referencial de civilização que é o Ocidente.

Os que nos ameaçam e acossam, os nossos inimigos, são os mesmos numa guerra e noutra. Uns às claras, outros na sombra, juntos compõem um eixo anti-Ocidente, anti-democracia liberal. Reúnem-se, negoceiam, recebem-se com honras de Estado o presidente que se eterniza no poder e invade um país soberano; as lideranças do regime dos ayatollah detentores do poder supremo; os obreiros da aparente benevolente mas omnipresente e poderosa nova rota da seda. Todos estão às claras ou na sombra por detrás das duas guerras que emocionam, comovem e revoltam as sociedades ocidentais.

Não há coincidências. Não há.

As repetidas barbaridades cometidas pelo Hamas no interior de casas onde executaram com fúria famílias inteiras, violaram mulheres, degolaram bebés, e nas ruas onde espancaram homens até à morte e cujos cadáveres sobre os quais cuspiram com raiva e não menos desprezo, e mais ainda o massacre levado a cabo num festival igual em música, idêntico no espírito e na liberdade que sentimos nos festivais em que estivemos inteiros e seguros; tudo isso, tudo isto, no seu horror mais íntimo que acabou por provocar um grito de terror mundial, tudo isto coincidiu com a proximidade da assinatura de um acordo de normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita. Uma aproximação geopolítica, geoestratégica que ameaçava de morte o plano de poder regional do Irão, essa teocracia que – rufem os tambores! – é o grande financiador do Hamas. E também não há coincidências quando a Rússia quis aprovar uma resolução no Conselho de Segurança da ONU sem condenar o acto terrorista do Hamas. E não é mesmo coincidência a dependência russa dos drones iranianos na guerra da Ucrânia. Facto que coincide com outro: Irão e Rússia vêem nos EUA o Grande Satã. Expressão que não tenho tempo para traduzir para mandarim, mas que estou seguro será dita à boca cheia nos gabinetes de Pequim.

Sim, o Ocidente extravasa o mero hemisfério ocidental. É a NATO, a UE, e está na Austrália, no Japão, na Coreia do Sul, as democracias liberais na Ásia, etc. E não disputa o domínio dos EUA. Antes aceita que o Ocidente domina os valores que não são respeitados por quem disputa a civilização ocidental, desprezando a liberdade religiosa, os direitos das mulheres, a liberdade de imprensa, a democracia, a tolerância, a defesa das minorias.

Os ocidentais produzem e consomem muito entretenimento sobre ameaças terroristas ou conspirações de países e protagonistas com planos maléficos para destruir a antiga ordem mundial, fazendo nascer uma nova na qual são a força dominante.

O entretenimento é tanto melhor quanto mais verosímil for. Quem o consome sabe-o mas fica-se pelas pipocas. Quanto muito, entre tramas, passa para as bolachas e chocolates e, na medida do possível, mexendo-se pouco, pouquíssimo do sofá. Isso, quanto muito, fará para receber à porta de casa um Glovo ou um UberEats, pedidos feitos na App e pelos quais esperará enquanto recebe e abre as notificações dos horrores cometidos porque foi atacado e ataca. De verdade. Enquanto se comove com o drama de quem trava uma guerra existencial contra quem não lhe reconhece a existência. O direito a existir.

Convençamo-nos e preparemo-nos: não há fast-war. As guerras que existem não acabam, não se resolvem mudando de canal de TV ou apagando as notificações no telemóvel. E quem lançou os dois conflitos sangrentos que hoje minam a estabilidade mundial despreza as cadeias de fast-food e mais que isso considera abjectas as fast war. Mas amam as longas. As guerras que travam e alimentam são antigas, longas e preparadas. As que grassam no Médio Oriente e no Leste da Europa são disso exemplo.

E nós, Ocidente, temos de nos preparar e acordar para isso mesmo. Não podemos mais continuar apenas no sofá.

 

(Artigo de opinião publicado no dia 20 de Outubro na página da CNN Portugal)

Final do Mundial de Rugby

Paulo Sousa, 27.10.23

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Amanhã será disputada a tão esperada final entre a Africa do Sul, campeã em título e a Nova Zelândia, que conquistou os dois títulos mundiais anteriores.

Hoje às 20:00, a Argentina e a Inglaterra, disputarão o 3º e 4º lugar, repetindo um jogo da fase de grupos em que os britânicos venceram por 27-10.

Agora é fácil de dizer que a África do Sul e a Nova Zelândia são de facto as duas melhores equipas que se apresentaram no torneio, mas não podemos esquecer a França, anfitriã e se apresentou com uma das melhores equipas das últimas décadas, nem a Irlanda que desde meados de 2022 ocupava o primeiro lugar do ranking mundial. No caminho até a este primeiro lugar do ranking, a Irlanda conseguiu em 2016, após 29 jogos disputados ao longo de 111 anos, vencer pela primeira vez os All Blacks. Desta vez os irlandeses foram derrotados, e mais uma vez nos quartos de final (já lhe chamam uma maldição), por 24-28 pelos mesmos neo-zelandeses.

Tal como a Irlanda, a França ficou-se pelos quartos de final, após uma derrota pela diferença mínima de 28-29 frente aos Springboks sul-africanos.

No jogo das meias-finais de sábado passado com a África do Sul, a Inglaterra, com o seu jogo extremamente táctico e pouco entusiasmante, conseguiu estar em vantagem todo o jogo, tendo sido derrotada pela margem mínima (15-16) nos últimos instantes do jogo.

Para amanhã é impossível antever o resultado. A Nova Zelândia, já não tem os jogadores que conseguiram estar quase 15 anos ininterruptos em primeiro lugar do ranking e que a todo o momento conseguiam faziam jogadas impossíveis, e que às vezes até parecia que se apagassem as luzes do estádio, eles continuariam a correr à mesma velocidade, sem nunca falharem um passe. Dessa incrível leva de jogadores, o único que resta é o Sam Whitelock que jogará hoje a sua terceira final do campeonato do mundo.

A África do Sul, capitaneada pela primeira vez na sua história por um negro, Siya Kolisi, que pertence ao grupo étnico dos Xhosa, é uma equipa muito sólida, que gosta de contacto e é tacticamente muito evoluída. A final de amanhã será um jogo memorável.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 27.10.23

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Helena Sacadura Cabral: «Gosto mais de ler no meu recanto da sala ou do escritório. Mas estes dois livros acompanham o meu lado da mesa de cabeceira. O primeiro, do meu querido amigo Cristovam Pavia, cuja morte ainda hoje me emociona, tem lugar cativo. O segundo, Winston Churchill - Os meus primeiros anos -, ando a relê-lo com muito interesse. Não gosto de política, mas gosto de perceber quem são ou quem foram os políticos...»

 

JPT: «Tinha 24 anos, homem feito, até doutor, nos tempos da tropa. Entrei no quarto, o ainda da minha adolescência. E retirei o último poster da parede, que ainda lá estava o do "Música e Som" do Lou Reed. Oh, you're right and I'm wrong, não o devia ter feito.»

 

Laura Ramos: «Sim, o Pariscope fez parte da minha bagagem durante tanto tempo que me sinto assaltada, esbulhada, expropriada de um bem essencial. Talvez hoje seja difícil perceber o seu conceito revolucionário, agregando numa revistinha de formato A5, a preço muito módico, toda a informação cultural de Paris e arredores. Qualquer agenda municipal, dirão, o faz também. Pois: décadas passadas, chegou cá a ideia e anda ainda tão mal copiada, hélas, em tantos casos.»

 

Eu: «Eram assim os heróis do Oeste. Sem raízes que os prendessem e prontos a lançar raízes em qualquer lugar. Aventureiros, na melhor expressão que podemos dar a esta palavra. Protagonistas de um tempo de pioneiros de que cada vez somos mais nostálgicos por termos a certeza de pertencerem a um mundo que já não há.»

Portugal no Mundial de Rugby

Paulo Sousa, 26.10.23

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Em Novembro do ano passado postei aqui sobre o nosso apuramento para o Mundial de Rugby. No próximo sábado será disputada a tão esperada final entre a Africa do Sul, campeã em título e a Nova Zelândia, que conquistou os dois títulos mundiais anteriores.

Mas antes de escrever sobre o torneio que terminará nesse jogo, importa sublinhar a participação portuguesa neste mundial.

Poderia começar pelos números. Entramos neste torneio em 16º lugar no ranking mundial e chegamos ao seu final em 13º, que é a nossa melhor classificação de sempre. Apesar destes números traduzirem uma excelente participação da equipa dos Lobos, não traduzem o encanto que a equipa portuguesa causou no mundo do rugby. Além do fino recorte técnico da leva de jogadores que o técnico francês, Patrice Lagisquet, conseguiu reunir, o público que acompanhou o mundial, apreciou acima de tudo a atitude da equipa.

No primeiro jogo com o País de Gales, conseguimos um ensaio numa jogada preparada para surpreender, mas acusamos o desequilíbrio de ter de jogar com um jogador a menos e sem ter conseguido tirar partido de quando aconteceu o contrário. O nível competitivo dos galeses, que pertencem à elite do rugby mundial, não permitiu irmos além dos 28-8.

A intenção assumida desde o início da competição de conseguir a primeira vitória de sempre num mundial, parecia ser mais acessível no segundo jogo, com a Geórgia, que é nosso adversário habitual na segunda divisão do Rugby europeu, o Rugby Europe Championship. À excepção dos empates de 2009 e de 2022, todos os outros jogos foram favoráveis aos georgianos, mas mesmo assim a mensagem era clara, aquele jogo era para fazer história.

A vantagem inicial esteve do lado da equipa dos lelos, mas o jogo chegou aos últimos instantes rigorosamente empatado com dois ensaios, uma conversão e uma penalidade para cada equipa. Mesmo ao terminar, aos 81 minutos, Samuel Marques tem a oportunidade de assinar a vitória com um pontapé aos postes. A pressão ficou toda sobre o formação dos Lobos num momento que em tudo fazia lembrar o histórico apuramento para o mundial, já nos descontos no jogo com os EUA. Desta vez a responsabilidade do pontapé ficou a cargo do nosso número 15, Nuno Sousa Guedes, que não foi feliz no remate tendo assim o jogo terminou no único empate do torneio, o que ainda assim permitiu que facturássemos os nossos primeiros dois pontos num mundial de rugby.

O nosso terceiro jogo foi com a Austrália, equipa que já levantou duas vezes a taça Webb Ellis. Quando chegamos a este jogo, os australianos já tinham sido derrotados pelos galeses e pelo fijianos. A equipa green and gold, muito jovem, mostrava pouca confiança e os seus apoiantes estavam poucos confortáveis. Antes do jogo, os lobos, mesmo sabendo da improbabilidade teórica de saírem vitoriosos, não se encolheram, assumiram que queriam surpreender e aos quinze minutos ganhávamos por 7-3 com um ensaio de Pedro Bettencourt. Logo após a glória deste ensaio, o segundo centro da equipa portuguesa viu um cartão amarelo e foi dez minutos para o “banco do pecado”. Neste período de tempo, com um a menos na equipa, os lobos não conseguiram manter a toada com que tinham começado o jogo e sofreram três ensaios. Depois disso, ainda conseguimos mais um ensaio, mas no final do jogo o resultado foi 34-14. Para a história fica também uma formação ordenada, uma mélé, em que os Wallabies foram empurrados sem qualquer consideração pelos nossos avançados quase até ao hemisfério sul. Uma maravilha.

Para o final da nossa participação aguardava-nos o confronto com a equipa das Fiji. A genética dos jogadores do Pacífico sul parece ter sido forjada pelos deuses do rugby. O seu porte e o gosto que têm de ir ao contacto, fazem deles um adversário muito respeitado e até temido. No seu historial tem grandes vitórias, como a que tinham conseguido recentemente com a Austrália, mas também são conhecidos por sofrerem derrotas improváveis, tal como que tinha acontecido no último mundial, frente ao Uruguai. O treinador dos lobos já tinha dito que as Fiji eram capazes do melhor, conseguiram por exemplo a primeira medalha de ouro olímpico em Rugby de Sevens, mas também tinham dias maus. Por não saber com qual destas duas versões iriam jogar, tudo era possível. E este jogo foi realmente a coroa de glória da nossa participação neste mundial.

Ao impacto quase brutal do jogo físico das Fiji, Portugal encaixou os embates e respondeu com a melhor arma que tinha, a magia dos seus três quartos, jogando aberto, com a bola viva, conseguindo assim fazer três ensaios contra dois. A reviravolta no resultado a nosso favor deu-se nos últimos minutos e levou a que, além de histórico, este tenha sido um jogo extremamente emocionante.

Graças a estes resultados falou-se de rugby nos media portugueses. Os Xutos e Pontapés criaram um tema dedicado à selecção e, tal como em 2007, após este mundial é previsível um aumento do número de praticantes.

Para o futuro fica a dúvida se esta participação resultou de uma epifenómeno ligado ao que podemos chamar de uma geração de ouro, que já em 2017 nos sub-20 tinha chegado a uma final do Troféu Mundial, ou se podemos contar com presenças mais regulares no mais elevado palco do Rugby mundial. O futuro do rugby português começou no dia seguinte a este jogo. A bola oval está agora não mão dos clubes e da federação. O que é que deve ser feito para alargar a base da pirâmide de recrutamento? Vai ser possivel reduzir a concertração geográfica das equipas mais competitivas?

Palavra de António Costa - II

Paulo Sousa, 26.10.23

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Esta notícia incomodou-me e, mais uma vez, fez-me sentir vergonha do ponto a que chegamos.

Lembrei-me de um postal de Junho do ano passado, desencadeado pela afirmação de António Costa de que  “parte dos problemas do SNS estará resolvida na segunda-feira”.

Lembrei-me também de uma situação que aqui trouxe num relato de uma viagem à Guiné-Bissau.

Êxodos, massacres, genocídios e omissões

Pedro Correia, 26.10.23

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Crianças arménias refugiadas em 1915: o primeiro genocídio documentado do século XX

 

Também em matéria de "catástrofes humanitárias" (como agora tantos dizem, numa tradução imbecil do 'amaricano') há umas mais iguais do que outras.

A Arménia, lá nos confins do Cáucaso, sem jornalismo nem "activismo" nas redondezas, pode ser chutada para o rodapé pelo supremo responsável da segurança global (atenção: as cinco anteriores palavras são em registo irónico).

 

Convém nunca esquecer que os arménios sofreram o primeiro genocídio documentado dos tempos modernos. Há pouco mais de cem anos, cerca de milhão e meio foram massacrados pelo já decadente Império Otomano, avô da Turquia actual - incluindo deportações e assassínios em massa.

Seguiu-se o tenebroso Holodomor - a condenação de um povo inteiro à morte pela fome. Neste caso ucranianos, submetidos à mais cruel pena capital colectiva pela URSS de Estaline em 1932/1933.

 

Massacres étnicos originaram também grandes êxodos - de dezenas de milhões de pessoas. É outro dramático legado do século XX.

Entre 1944 e 1949, 1,7 milhões foram expulsos da Polónia para a Ucrânia - e vice-versa.

Após 1945, cerca de 8 milhões de alemães foram evacuados dos chamados "territórios de Leste" para o perímetro da actual fronteira alemã - e, depois, muitos fugiram da RDA para Ocidente.

O desmembramento do Hindustão britânico originou entre 1947 e 1951 o êxodo cruzado de 15 milhões de pessoas da União Indiana para o Paquistão - e vice-versa. Nessa traumática jornada entre fronteiras recém-estabelecidas, terão morrido cerca de dois milhões de pessoas.

O genocídio ocorrido no Camboja submetido ao domínio totalitário comunista de Pol Pot, entre 1975 e 1979, custou pelo menos dois milhões de vidas humanas.

A disputa pelo enclave que acaba agora de mudar de mãos no Cáucaso originou em 1994 a deslocação forçada de cerca de 400 mil arménios e de mais de um milhão de azeris.

Menos expressivo, mas não menos doloroso, foi o êxodo ocorrido em Chipre na sequência do golpe ilegal ali protagonizado pela Turquia em 1974 que dividiu a ilha até hoje: 200 mil gregos e 60 mil turcos desalojados.

Viria a acontecer, em escala maior, nas guerras dos Balcãs da década de 90 - ainda cheia de chagas por cicatrizar.

E no Ruanda, na sanguinária guerra civil de 1994: cerca de um milhão de mortos em apenas três meses apenas por pertencerem à "etnia errada" (tútsis, sobretudo).

Sem esquecer a guerra no Sudão, culminada na "limpeza" étnica no Darfur, em 2003: pelo menos 2 milhões de mortos e 6 milhões de refugiados nos vinte anos seguintes. Primeiro genocídio documentado deste já tão triste século XXI.

 

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Guterres na fronteira entre Gaza e o Egipto (20 de Outubro)

 

Existirá, nos casos de grandes êxodos, uma figura da justiça internacional denominada "direito ao regresso" dos desalojados, apenas invocada no caso da Palestina?

Fica à consideração dos especialistas.

Ao secretário-geral da ONU nem é preciso perguntar: dirá logo que sim. Num reflexo condicionado semelhante ao que no passado dia 20 o levou a mostrar-se aos repórteres do lado da fronteira egípcia com Gaza numa arenga cheia de bonitas frases humanitárias que esqueceram os mais de 200 reféns israelitas e de outras nacionalidades levados à força pelo Hamas, em circunstâncias bárbaras.

Também se peca por omissão. Eis um destes casos.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 26.10.23

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Joana Nave: «Eis a minha mesa de cabeceira. O livro que estou a ler é "A Questão Finkler" de Howard Jacobson. No que respeita a livros de ficção, os próximos a ler já estão à espreita: "A Conspiração Contra a América" de Philip Roth e "Belos e Malditos" de  F. Scott Fitzgerald. A par da ficção, gosto de ler livros práticos de Gestão, como o que me inspira de momento: "As Lições de Gestão dos Clássicos" de Thomas J. Figueira, Rachel Hall Sternberg e T. Corey Brennam. Há sempre entre as minhas leituras uma mais espiritual, que vou lendo quando preciso de me conectar com a alma: "Real Magic" de Dr. Wayne W. Dyer. Por fim, um livro do mestrado que me tem roubado a maior parte do tempo que gostaria de dedicar às outras leituras: "O Prisioneiro, o Amante e as Sereias" de Paulo Trigo Pereira.»

 

JPT: «O avanço de Obama para a presidência foi simpático, principalmente pela afronta aos preconceitos racistas, nos Estados Unidos tão misturados com o fundamentalismo cristão popularucho. Mas teve um lado oposto, mais para a minha terra, sintomático que foi da imbecilidade militante de alguma esquerda, identitarista, caída de fervores pelo obamismo. "Eu sou obamista" passou a ser um pin político, "alfinete de peito", iman de geleira, de qualquer candidato a colunista do "Público" ou de comentarista fedorento.»

 

Luís Menezes Leitão: «Este novo Astérix entre os Pictos é uma boa notícia para os apreciadores das aventuras dos heróis da pequena aldeia gaulesa que resiste ainda e sempre ao invasor. Efectivamente a série estava a incorrer numa dolorosa decadência desde a morte de Goscinny, já que Uderzo, embora mantendo a qualidade do desenho, nunca conseguiu apresentar um argumento de jeito, exceptuando talvez O Grande Fosso. Sempre que se comprava um livro, ia-se de decepção em decepção até ao inenarrável O céu cai-lhe em cima da cabeça, que levou muita gente a proclamar: "Por Toutatis! Este Uderzo está louco!". Felizmente ganhou algum juízo para entregar a série a outros argumentista e desenhador, que conseguiram produzir uma obra que, ainda estando longe da genialidade de Goscinny, tem finalmente uma história com graça. Podem continuar que os leitores agradecem.»

 

Eu: «Entre os norte-americanos, e além dos já mencionados, li obras de Sinclair Lewis (1930), Pearl Buck (1938), William Faulkner (1949) e Saul Bellow (1976). Autores bem diferentes, cada qual representativo de uma época e do imaginário dominante que se lhe encontra associado -- o proselitismo missionário protestante em regiões remotas, sobretudo na China, no caso de Pearl Buck; a América do sul profundo, com sólidas raízes rurais, no caso de Faulkner; a América da comunidade judaica, urbana e cosmopolita, no caso de Bellow; as mudanças sociais no interior dos EUA, designadamente entre as duas guerras, no caso de Lewis.»

Reflexão do dia

Pedro Correia, 25.10.23

«A retórica é claramente de ódio a Israel e anti-semita. Os cartazes são de linguagem desumanizadora e de apoio à violência do Hamas. Vêem-se bandeiras do ISIS e da Al-Qaeda. Ninguém podia pedir maior apologia do terrorismo. Grita-se "morte aos judeus", usam-se cartazes com a bandeira de Israel no lixo junto ao slogan "manter o mundo limpo". Só quem considera os judeus não possuidores de dignidade humana por inteiro permanece numa manifestação onde se exibem tais opiniões.

Mas nem só de slogans em manifestações vive o anti-semitismo. Em Londres, os crimes motivados por anti-semitismo, desde o ataque do Hamas, cresceram 1350% (em termos homólogos). Uma sinagoga em Berlim foi atacada por dois cocktails Molotov. Na mesma Berlim, estrelas de David - o sinal, lembro para os mais novos, que os judeus eram obrigados a usar em braçadeiras no regime nazi - foram pintadas à porta de casas onde habitam judeus. A sinagoga do Porto foi vandalizada. Em Paris, foi queimada a porta do apartamento de um casal de judeus octogenários. (...) Em Barcelona um hotel foi atacado por manifestantes. A razão? É propriedade de um judeu. Em Toronto o alvo foi um restaurante. A razão? A mesma.

Este anti-semitismo é declarado e evidente. Atacam-se as pessoas, as casas, os negócios. Temos relatos de tudo isto vindos da Europa pelos anos 1930.»

Maria João Marques, no Público

Moçambique na nossa Assembleia da República

jpt, 25.10.23

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A boa política externa não se faz de modo tonitruante. E a boa diplomacia, dela instrumento, faz-se em surdina. Isto é axiomático. Em especial nas interacções entre países com relações históricas complexas, as quais podem potenciar interpretações ambivalentes dos discursos e acções das contrapartes. E mais ainda na interlocução entre antigos colonizadores e suas ex-colónias - com a escassa excepção dos três gigantes económicos americanos.

Por um lado, porque, respectivamente, numas dessas sociedades subsistem algumas tendências (até inconscientes, pois frutos de mundividências herdadas) "tutelares", e em outras vigoram tendências "reactivas", postulando ingerências ou mesmo ainda "colonialismo" em factos ou posições curiais, mesmo normais.

Mas, por outro lado, subsistem nos Estados ex-colonizadores concepções e dinâmicas emanadas do velho imperialismo, na demanda da preservação de "áreas de influência" geoestratégica e privilégio económico, sob evidente formato "neocolonial" - ainda que este não se restrinja a estas articulações.

Neste âmbito tem de se realçar que na sociedade portuguesa inexistem efectivas dinâmicas neocoloniais. Há alguma retórica política - em particular a do inepto mote "lusofonia" -, há tiques comportamentais, recorrentes em funcionários estatais de médio porte e agentes empresariais emanados do "tecido das PMEs" - evidentes frutos da fraca formação escolares desses núcleos profissionais. 

Mas tanto a CPLP - por mais que tenha sido idealizada como dínamo da relevância portuguesa -, como as nossas relações bilaterais com as ex-colónias, não têm sido vividas como instrumentos de ingerência e de imposição de privilégios. Esta inexistência não é apenas fruto de incapacidade económica, mas sim efeito de um percurso de recentramento pátrio numa Europa desenvolvimentista, e nisso reconfigurando a própria "identidade nacional". Assim esta inexistência neocolonial não é um defeito, é uma qualidade, não é uma fragilidade, é força. 

Isto é algo que pode ser intuído face á relevância de Portugal nas instâncias internacionais. Se éramos pais pária em 1974, rapidamente Portugal se tornou importante agente nas multilaterais, muito extravasando a nossa dimensão económica e geográfica. A reboque de algumas personalidades (Soares, principalmente), e assente na real e continuada excelência da nossa corporação diplomática - vítima de estereótipos negativos mas, de facto, núcleo peculiar da nosso funcionalismo. Mas, acima de tudo, pelo generalizado reconhecimento da platitude da política internacional da nossa democracia, nisso avessa ao tal imperialismo serôdio.

Preâmbulo longo para reflectir sobre uma votação ontem acontecida na Assembleia da República sobre Moçambique. Julgo necessário lembrar que Portugal e Moçambique não são "países irmãos" - como repete a incompetente retórica vigente. São "países aliados", algo formalizado na pertença desde o início na CPLP,  que em ambos coexiste com outras pertenças, e vivido através de vários vectores de robustas interacções. Ou seja, não nos une qualquer metafórica "consanguinidade"  de teor moral, mas sim uma "aliança", baseada em interesses estratégicos parcialmente confluentes. E parte fundamental dessa aliança presente é a comum adesão ao modelo democrático desenvolvimentista, vivido segundo as idiossincrasias de cada Estado soberano. 

Vive agora Moçambique uma crise política devida a um estrondoso derrame eleitoral. Na nossa AR a Iniciativa Liberal requereu ao governo um esclarecimento das suas considerações sobre esta matéria - a decorrer na devida e diplomática "porta fechada". É evidente o teor da proposta, uma forma moderada e assisada do nosso parlamento sinalizar à sociedade moçambicana, e ao seu Estado, a preocupação pela deriva naquele país. E de também de a fazer ecoar entre os congéneres, capitalizando o estatuto internacional a que acima aludi. Enquanto convoca o próprio governo a actuar, no devido tom recatado adequado à política externa.

Mas o requerimento foi liminarmente recusado pelos dois partidos de poder. O PSD considerou não ser curial que a AR se pronuncie sobre processos eleitorais alhures. Julgo que a incoerência em política é muitas vezes necessária e até sábia. Mas tem limites - recordo que o PSD, decerto que entre outras ocasiões, propôs há poucos anos um voto parlamentar sobre repressão policial e eleições na Venezuela. Friso, não comparo os dois países, noto a incompetente incoerência do PSD. E o PS refutou o pedido argumentando estar o caso eleitoral moçambicano entregue aos tribunais nacionais, elidindo a questão política que aquele país enfrenta.

Sem rebuço, a democraticidade moçambicana não é um processo ascendente. Desde há anos que há uma deriva autoritária. Eximo-me a elencar exemplos, que foram sendo noticiados. A democracia, "sempre corrompivel, sempre perfectível", como disse o liberal (de esquerda) Norberto Bobbio ali descamba em deslize acentuado. Não aponto nenhuma "virtude" nos partidos oposicionistas nem qualquer mácula ôntica ao partido do poder. Apenas noto a antecâmara do descalabro - tal como algumas figuras do próprio poder temem.

E nesse âmbito esteve muito bem a jovem IL ao querer sinalizar à sociedade moçambicana, e ao seu Estado, a nossa preocupação com o destino do entre o Maputo ao Rovuma, numa verdadeira afirmação do "estamos juntos". E demonstraram-se exauridos o PS e o PSD, exaustos na sua filiação a uma "real politik"... irrealista, abdicando de um verdadeiro papel de aliado. E, crede, condenando-nos através dessa aparente real politik a uma crescente irrelevância do Zumbo às águas do Índico. 

Já li o livro e vi o filme (312)

Pedro Correia, 25.10.23

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GUERRA E PAZ (1869)

Autor: Lev Tolstoi

Realizador: King Vidor (1956)

Há livros quase impossíveis de filmar. Esta produção italo-americana contrariou aqueles que incluiam nesse lote o monumental romance de Tolstoi, centrado na invasão napoleónica da Rússia. Mas, naturalmente, perde na comparação - apesar da presença luminosa de Audrey Hepburn, inesquecível no papel de Natacha.

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 25.10.23

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Hoje lemos: Dante Alighieri, "A Divina Comédia".

Passagem a L-Azular: "A fé é a substância de coisas esperadas e o argumento das que não aparecem; e isso parece-me ser a essência da fé.”

É a fé que nos salva do que já esperamos e a desculpa do que esperamos sempre em vão? Eu tenho fé. Acredito em Deus. Espero e anseio por dias melhores, mas não arranjo desculpas para os contratempos, as tragédias ou as desgraças. A culpa tem sempre mão humana. A fé pode dar força para superar crises, como as com que a natureza debocha da fragilidade do homem, mas as outras crises chegam-nos pela mão dos cuidadores, daqueles que nomeámos para nos atender e cuidar. Desses não esperar coisa alguma é toda a essência da fé.

(Imagem Google)

Será desta o fim do fogacho?

Paulo Sousa, 25.10.23

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[Ler até ao fim]

Quem anda razoavelmente informado sabe que o CEO da Web Summit, Paddy Cosgrave, apresentou a demissão. Esta renúncia ao cargo ocorreu na sequência das suas declarações sobre o ataque terrorista no passado dia 7 de Outubro em Israel. O que disse terá sido, no mínimo, condescendente para com todo o terror que ali foi perpetrado e levou as tecnológicas israelitas, a Alphabet (dona da Google), a Meta (dona do Facebook, do Instagram e WhatsApp) e a Amazon, entre outras, a anunciar que não participarão na próxima edição desta cimeira tecnológica.

Sobre este assunto gostaria de aqui deixar apenas duas notas.

A primeira respeita ao cancelamento. A cancel culture tem progredido com mais notoriedade na academia norte-americana e também na indústria do entretenimento. Na sua esmagadora maioria, as causas do cancelamento são causas ditas progressistas que procuram uma rotura contra valores tradicionais, associados aos redutos de alguma direita mais conservadora. Os mais histriónicos canceladores, os torquemadas dos nossos tempos, militam nas franjas mais assanhadas do partido democrata norte-americano, assim como nas coloridas extremas-esquerdas europeias.

Desta vez foi ao contrário. O que o senhor Cosgrove disse imagino que não seria suficiente para sacar uns aplausos a nenhum dos parentes pobres da geringonça que nos governou, até porque lhes cairiam as mãos se tentassem aplaudir alguém que representasse o que ele até há dias atrás representava, mas ainda assim deu no que deu. Eu defendo que as pessoas possam dizer coisas livremente, mas é normal que quando um sujeito assume determinadas funções consiga separar a sua derme da camisola que é pago para vestir. Ele só terá descoberto isso com este episódio, mas, e é aqui que que entro no segundo ponto, falta avaliar o custo dessa aprendizagem.

Para as ilustres figuras da nação, este evento era muito importante, assim-assim pelos eventuais negócios que por cá passassem, mas muito mais por ser um excelente disfarce de modernidade tecnológica. Para eles, as consequências das afirmações do CEO agora demissionário equivalem a um sério abalo na sua narrativa. Sem a nata das empresas do sector, para poderem continuar a jogar ao entrudo disfarçados de governantes que procuram atrair investimento terão de fingir muito melhor, até porque se esse fosse o seu fito, há muito que teríamos abandonado o pódio da mais alta tributação às empresas em toda a OCDE.

Fico curioso, mas não ansioso, por saber quais os custos contratuais em que o senhor Cosgrove incorreu ao proferir declarações que literalmente mandaram a barraca abaixo. Que condições e contrapartidas lhe foram exigidas no contrato que celebrou com o Estado português? Poderá a coqueluche da modernidade tecnológica chique ser responsabilizada por danos causados pelas suas declarações?

O Irish Independent afirmou que os trabalhadores da Web Summit já foram informados que, actualmente, os seus empregos não estão ameaçados. Este é o tipo de notícias que serve para lançar assuntos e ideias subliminares. O abalo foi suficiente para que a continuidade dos seus empregos, do projecto, já seja assunto de jornal. Se isto não fosse suficiente para os deixar preocupados, o governo português já veio garantir que há condições para que a Web Summit possa decorrer com “normalidade”. Quem lhe conhece o currículo, já sabe o que valem as garantias dadas por António Costa.

Sabendo que dinheiro nosso rola neste jogo e conhecendo a profunda competência de quem, neste negócio, representou os chamados “interesses nacionais” não posso dizer que temo o pior, porque já me vou habituando.

 

Adenda às 18:00

Precipitei-me. Há quem tenha salvaguardado o interesse e os recursos público. Bem haja por isso.

Moedas com cláusula para Web Summit: organização terá de devolver dinheiro se empresas e participantes falharem

E que tal exibirem a bandeira no Irão?

Pedro Correia, 25.10.23

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Estes fervorosos fãs do Hamas que se manifestam no Rio de Janeiro contra Israel e a favor dos terroristas islâmicos, para serem consequentes, deviam exibir aquela bandeira arco-íris em qualquer dos 22 países árabes.

E também, claro, no Irão.

Voltariam certamente de lá com histórias interessantes para contar. Se voltassem.