Qual a dose de moral desejável na política?
O filosofo e ensaísta espanhol Daniel Innerarity já foi várias vezes aqui referido no Delito. Há dias, no El Correo publicou um texto interessante sobre a moralidade e a política.
Dei por mim a fazer uma tradução livre, que aqui partilho.
“Se olharmos para a corrupção e outros comportamentos degradantes é lógico que clamemos por uma moralização da política, que os valores sejam postos acima dos interesses. Porém, proponho inverter por um instante este ponto de vista. Perguntemo-nos se a causa da política ser tão decepcionante, agressiva e disfuncional, não resultará do peso crescente da moralidade em vez de se recorrer a uma lógica mais adequada. Quando o campo de jogo se define como um combate entre o bem e o mal, dificulta-se a argumentação racional e impossibilitam-se os acordos.
A moralização a que me refiro, não consiste apenas na que permite que as questões morais tenham um papel crescente na política, pois nesse caso tudo seria tratado como uma questão moral. A moralização da política ocorre sempre que as avaliações morais se sobrepõem aos valores. Nesses casos o que se observa são interesses e aspirações de poder e que a argumentação política é substituída por sentimentos morais como a culpa e a indignação. A polarização que lamentamos é a consequência lógica de se ter criado um campo de antagonismos absolutos, em que tudo é decidido numa luta épica entre o bem e o mal, nacionais contra traidores (referir-se-á certamente à situação espanhola), as vítimas contra os carrascos, a dignidade contra a infâmia, a culpa contra a inocência. Em contraposição existem duas posições claras, mais nada além disso. O moralismo é uma máquina de simplificação.
A moralização da política tem a vantagem de poupar argumentações mais trabalhosas. Para ter razão e estar do lado certo da história, basta indignar-se contra aqueles que acreditamos oporem-se ao bem. Quem discorda, não tem opinião própria, mas apenas más intenções. A moral, enquanto critério de oposição do bem ao mal, não permite que se discuta com os maus. Se um dos lados considera que as suas próprias intenções são moralmente boas (em vez de simplesmente melhores), então não há outra alternativa a combater por todos os meios, o mal que se aloja nos outros. Quem pensa assim, acha que não está defendendo os seus interesses, mas apenas as convicções e no momento seguinte recorre ao argumento da dignidade e da humilhação e assim encerra qualquer hipótese de diálogo e de negociação.
O exagero moralista é um fingimento com consequências reais negativas, uma vez que beneficia os mais radicais e dificulta os acordos necessários. A primeira vítima da moralização é a margem de negociação. Podem-se negociar interesses, mas se qualquer assunto se torna numa questão de princípio, as transacções são impossíveis. As pessoas com convicções fortes cometem geralmente erros, também por não acudir aos seus próprios interesses. O político munido com as armas da moral, costuma converter os seus interesses em princípios.
(…) A primeira regra da moral na política consiste em não se apresentar como defensor da moral quando se está a defender os seus interesses. De acordo com a segunda, não se pode desclassificar moralmente a quem consideramos estar politicamente errado. Sempre admirei a subtileza liberal que nos ensina a distinguir a diferença do erro, o adversário e o inimigo, que é o mesmo que dizer, entre a política e a moral. Assim, cria-se um espaço de comunicação e combate político, que permite estar completamente a favor de algo e reconhecer o direito de outros defenderem o contrário, sem levantar a suspeita da imoralidade.
Na política, e não só, para além de existirem coisas exclusivamente boas ou más, existem coisas oportunas, discutíveis, previsíveis, negociáveis, desejáveis e outras que não é razoável termos uma posição exclusivamente moral, ainda que o possamos fazer pontualmente.
A comunicação política seria muito diferente se conseguíssemos excluir toda essa carga moral. A política não pode resumir-se à neutralidade técnica, a dados assépticos sem avaliação implícita, mas deveríamos deixar um pouco mais de espaço a factores que suavizem a contraposições ideológicas. Falemos mais do melhor e do pior e menos do bem e do mal. Discutamos mais a partir de critérios menos enfáticos, como a oportunidade, a conveniência, as alternativas, os custos e benefícios, que são muito menos antagónicos. O melhor e o pior estão muito mais próximos do que o bem está do mal.
Defendo uma menor moralização da política porque acredito que isso beneficiaria a política e também a moral. Representar o bem, proporciona um sentimento de superioridade moral que é incompatível com a verdadeira moralidade. Que a moralização não implica necessariamente um aumento da moral, pode comprovar-se nos actos de quem tem diz ter a moral do seu lado e, por isso, acha que tudo lhe é permitido, incluindo comportamentos imorais. O início da imoralidade ocorre quando alguém pensa que tem a moralidade do seu lado. Na medida em que é essencial para a democracia estabelecer um espaço de controvérsia, a moralização da política é um perigo objectivo. Os defensores da democracia precisam não apenas de se defender do mal, mas também devem defender-se da tentação do bem.”