A maioria esmagadora dos portugueses não tem nada a correr nos tribunais, isto é, não é parte, nem réu, nem testemunha. E presumo que uma muito menor parte, mas ainda assim maioria, nunca tenha frequentado tais estabelecimentos ominosos.
A maioria esmagadora dos portugueses não está internada, ou tem consultas, exames ou intervenções cirúrgicas marcadas. Porém, será difícil encontrar quem seja indiferente ao que se passa em hospitais e centros de saúde, quer porque já os frequentou, quer porque tem familiares ou amigos que lá estão, estiveram ou têm de regressar, quer porque não ignora que há grandes probabilidades de, a qualquer momento, deles necessitar.
Não é muito nítida na consciência social a necessidade da Educação, cuja utilidade a generalidade das pessoas (e não poucos responsáveis) mede pela quantidade de diplomas. Disto decorre que os danos que as medidas induzidas pela histeria covidesca causaram ao ensino, ou melhor, à aprendizagem, não aflijam excessivamente os pais porque, baixando o nível de exigência escolar, é possível satisfazê-los.
Sucede que estes três sectores – Justiça, Saúde e Educação – estão volta e meia em greve, e esta vai num crescendo de frequência, acrimónia e irredutibilidade.
O PS, que governou em 21 dos últimos 28 anos, nunca se distinguiu pela inflexibilidade na satisfação de reivindicações; e pelo contrário não hesitou em “negociar”, que é o nome que se dá à cedência, mesmo que limitada, às reivindicações dos sindicatos, no caso do sector privado após os respectivos representantes anuírem (voluntariamente coagidos, se posso usar a expressão).
A isto se chama concórdia. E é sobretudo ela, e a consideração pelo interesse de pensionistas e reformados, que explica as vitórias pêessísticas.
Cabe portanto perguntar por que razão há tanta relutância do Governo em pôr-se de acordo com médicos, enfermeiros, oficiais de justiça e professores.
A resposta é simples: não há dinheiro. A dívida pública continua nominalmente a crescer e a falência socratiana enxertou no corpo ideológico do PS a ideia (acertada) de que os défices orçamentais (mais propriamente de execução orçamental, que os Orçamentos tornaram-se instrumentos de manipulação e fantasia) devem tender para zero, uma vitória póstuma de Salazar.
Ora, se foi possível diminuir horários de trabalho, aumentar o número de funcionários públicos e controlar o défice, o preço veio sob a forma de degradação dos serviços que o Estado oferece, por falta de investimento, não obstante a carga fiscal dar sinais, após sorrateiros e sucessivos crescimentos, de estar no limite, mesmo para estatistas de vária pinta.
Essa degradação não pode prosseguir, as queixas e resmungos já começam a erodir o saldo de confiança popular. E o Governo, não tendo outra ideia para o país que não sejam as cansadas receitas da chupice europeia, intervencionismos sortidos na economia privada (sempre promissores e sempre falhados) e “apostas” grandiloquentes nisto e naquilo, conta agora apenas com doses massivas de propaganda, benevolência da comunicação social, um bodo aos pobres e cedências às reivindicações mais perto das eleições, tudo e ainda o que a mestria de Costa nas cabriolas do Poder recomende para tirar um coelho da cartola.
Até onde a vista alcança, porém, ou aumenta uma regressão palpável no que o Estado vem oferecendo na qualidade dos serviços, ou se regressa aos défices, ou nas próximas eleições este Governo é despedido.
Se for, todavia, doses mais modestas das mesmas políticas não vão resolver o problema de fundo, que é o da ausência de crescimento, sem a qual o bolo para distribuir, com o número de velhos a aumentar e os novos a darem à sola, tende a diminuir. E como a criação de condições para sair do arrastar de pés implica, entre outras coisas, diminuir a dívida, há que travar o aumento da despesa,
Dizem alguns que o corte nos impostos induz crescimento. Concordo que sim, a prazo, mas o intervalo é grande e entretanto é preciso maneirar.
Dito de outro modo: ceder às reivindicações na medida das exigências não é um bom caminho; cortar nas despesas sim, desde que sem convulsões sociais (verdadeiras, não o berreiro de sindicatos e a fronda da boa gente de esquerda), ainda que as poupanças daí decorrentes não sejam exaltantes, salvo um esforço sério e nunca empreendido de extinguir serviços inúteis, ou prejudiciais, ou redundantes; e inverter o caminho da degradação dos serviços igualmente sim, na exacta medida em que com isso não se comprometa o sanear das contas públicas.
Não é provável que os servidores públicos aceitem apertar o cinto. E um novo governo, sendo por definição, se for novo, de direita, terá mais e não menos dificuldade em lidar com este complicado puzzle.
Daí que a solução óbvia (tão óbvia que até mesmo um governo do PS tenha porventura de a vir a encarar) seja rever as leis da greve, não para resolver qualquer problema de fundo mas para lhe podar as consequências. As greves assentam no pressuposto de que o direito respectivo se pode sobrepor a outros direitos, nomeadamente o à Saúde, ao Ensino e à Justiça, com a condição de haver serviços mínimos decididos em determinadas condições e que respeitem os princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.
Esses princípios são actualmente contemplados? Claramente não.
Admite-se que doentes (sobretudo pobres que não podem recorrer ao privado) vejam consultas, cirurgias e exames adiados porque, não correndo o risco de morrer de imediato, podem bem aguentar? Das duas uma: ou essas consultas, cirurgias e exames, não servem para nada; ou, se servem, então o doente vê, provavelmente, diminuir a sua esperança de vida, ou a continuação do seu sofrimento.
Admite-se que se assista pacificamente ao degradar da qualidade do ensino, que vai entupir o país, a prazo, de analfabetos licenciados? Ou acreditamos que o progresso tem necessariamente uma componente de educação ou não. Se acreditamos (e quase ninguém duvida) então é intolerável que uma geração inteira seja comprometida.
É razoável que todos os dias milhares de diligências nos tribunais sejam canceladas (ainda por cima em menu à lista, umas são adiadas, outras não, nuns dias serviços xis sim, noutros não), com danos para credores, devedores, pessoas e empresas que vêm a sua vida gratuitamente complicada e os seus negócios prejudicados? Ou achamos que o progresso material exige o funcionamento tempestivo da Justiça, a que todos têm direito, ou não.
De modo que urge uma clarificação. A ideia de que o direito à greve é universal contempla, no ordenamento jurídico actual, limitações, como os militares, juízes (quanto a estes segundo o melhor entendimento, o ponto não é, inacreditavelmente, completamente pacífico) e deputados, em cada um destes grupos por boas razões. Que não são as mesmas, obviamente, que as dos médicos, professores, enfermeiros e oficiais de Justiça.
Excepto pelo facto de todos serem pagos por dinheiros públicos e todos estarem ao serviço de funções do Estado que satisfazem direitos constitucionalmente garantidos.
Que os partidos de direita tenham paciência: os serviços mínimos não garantem nada; o seu silêncio é interesseiro e cego, traduz apenas uma cedência acéfala a uma bandeira que a esquerda quer impingir como um direito humano; e se precisamos de Forças Armadas que assegurem um módico de respeito para com o país, não precisamos menos de Saúde, Educação e Justiça e não simulacros mancos desses três bens.
* Publicado no Observador