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Delito de Opinião

Um futuro cada vez mais quente

João André, 30.06.23

A temperatura não existe. ou melhor, existe, mas é uma medida da energia de um sistema. Quanto maior a energia de um sistema, mais a temperatura pode subir, desde que esse sistema se mantenha constante. Se o sistema puder mudar, a temperatura pode manter-se inalterada. Uma forma de pensar nisto é através de diluição de algo que esteja ao lume. Se adicionarmos mais água a uma temperatura mais baixa, a temperatura da água ao lume reduz-se. Outra forma seria pensar no aquecimento de um gás. Se se permitir que o gás a ser aquecido se expanda, ou seja, se "estenda" por um volume maior, a temperatura não mudará. O oposto, como é óbvio, também é verdade: se comprimirmos um gás sem o aquecermos, a temperatura aumentará, porque aumentará também a interacção entre as moléculas do gás. A temperatura é assim uma forma de medir a actividade termodinâmica de um sistema, como se podem usar os testes Pisa para avaliar um sistema de ensino.

Porquê referir isto? Porque quero falar de Aquecimento Global (AG) mas para o fazer preciso de começar por explicar que "aquecimento global" é apenas uma forma de olhar para fenómenos termodinâmicos na nossa atmosfera à escala... bem, global.

Nota prévia antes de continuar a ler este longo post. Nos comentários não aceitarei ataques às ideias de Aquecimento Global, a sua origem antropogénica ou aos seus efeitos nas Alterações Climáticas. Estes são hoje factos científicos e não estou para aceitar negacionistas. Todos os comentários nesse sentido serão apagados. Quem quiser discordar comigo na análise em si, pode fazê-lo, mas não vou debater se a realidade é real.

O que é o Aquecimento Global?
Quando falamos em AG estamos a referir-nos ao aumento das temperaturas médias que se tem verificado por todo o planeta ao longo de sensivelmente o último século e meio. Quando falamos em temperaturas médias estamos a falar em todas as temperaturas que são medidas ao longo de todo o dia, em todos os dias do ano, em milhares de localizações distintas por todo o planeta. Todas estas medidas são somadas, divididas pelo número de medições e lá temos a temperatura média (hoje em dia será simultaneamente mais complexo e mais simples mas manterei as explicações a um nível mais básico). Por exemplo, se medirmos a temperatura em Lisboa, Faro e Porto em 3 momentos distintos do dia teremos um total de 9 medições as quais podem ser adicionadas e divididas por 9 para dar um valor médio. Se fizermos o mesmo para os 18 distritos (do continente) e por hora, seriam 432 pontos por dia e fazendo o mesmo para todos os concelhos e também por hora ao longo do ano estaríamos a falar em quase 2,7 milhões de medições.

A importância de fazer estas ressalvas tem a ver com a necessidade de olhar para lá de "estamos há uma semana com calor, prova de AG" ou "se há AG como explicam este frio?". Haverá sempre temperaturas extremas numa e outra direcção, mas em si mesmas não significam nada (embora tomadas em conjunto até sejam indicação de AG, mas já lá chego). Seria o mesmo que ver um eucalipto no Pinhal de Leiria e propôr a mudança de nome do mesmo.

O Aquecimento Global é real e está perfeitamente documentado. Há hoje muito poucas pessoas que se deêm ao trabalho de o negar. Haverá quem proponha razões alternativas (de forma séria ou nem por isso) mas o aumento das temperaturas a nível global é indesmentível. Para facilitar a compreensão, podem olhar para o vídeo abaixo, que apresenta de forma visual esta evolução.

Se damos então por aceite que as temperaturas estão a aumentar, porque razão se está isto a passar? Como já toda a gente saberá, o principal culpado é o dióxido de carbono, CO2 na sua notação química. O CO2 é um gás com efeito de estufa, tal como muitos outros, mas para entender o que isso quer dizer precisamos de compreender o conceito de efeito de estufa. Como sabemos, a principal fonte de calor para o nosso planeta é o Sol. A radiação solar chega ao nosso planeta especialmente na forma de ultravioleta e luz visível e aquece as moléculas que com ela interagem (parte da energia é reflectida de volta ao espaço). Esta radiação aumenta a energia dos objectos (aqui objectos é tudo desde moléculas a montanhas e oceanos) e estes depois libertam parte dessa energia na forma de radiação infravermelha, menos energética que a ultravioleta e visível.

Ora, as moléculas de gases tendem a absorver radiação em comprimentos de onda distintos, ou seja, em partes específicas do espectro. A ragião na qual o CO2 se especializa é precisamente na zona da radiação infravermelha, o que significa que o CO2 tem tendência a absorver a radiação que deixa o nosso planeta e, em condições normais, voltaria ao espaço. Note-se que não é a única molécula que o faz. A água, muito mais presente na atmosfera, tem também o mesmo efeito de estufa, tal como metano ou ozono e muitos outros. E ainda bem que assim é. Sem o efeito estufa destes gases, o nosso planeta não teria uma temperatura média por volta dos 14 ºC mas uma temperatura média inferior a 0 ºC e a Terra parecer-se-ia então mais com Europa, o satélite de Júpiter, que com este globo azul.

Ao longo da História do planeta, as concentrações destes gases mudaram muito na nossa atmosfera. Há múltiplas razões para isso, algumas internas (vulcanismo, geologia) e outras externas (ciclos de Milankovitch - ou Milanković - que determinam a quantidade de radiação solar a que o nosso planeta está exposto e causam efeitos na biosfera que levam a mudanças na composição da atmosfera). Só que estas variações habitualmente ocorrem ao longo de milhões de anos. Para a escala de tempo que nos interessa, a de seres humanos, a concentração destes gases com efeito de estufa tem estado mais ou menos constante ao longo dos últimos 12 mil anos, especialmente no caso do CO2, que se manteve entre as 260 e 270 partes por milhão (ppm) na atmosfera. Isto é, até cerca de meados do século XIX.

Por essa altura, como se sabe, começou a Revolução Industrial, que foi alimentada graças às reservas de carvão - primeiro - e petróleo - posteriormente - que foram sendo encontradas no nosso subsolo. Carvão e petróleo são compostos de carbono que quando queimados na presença de oxigénio formam dióxido de carbono entre outros compostos (a química é como uma criança em idade pré-escolar, uma desarrumada). A partir do início da Revolução Industrial, as necessidades de energia explodiram o que levou a uma explosão do consumo de carvão e petróleo e à libertação de CO2 para a atmosfera. Isto levou a um círculo virtuoso no efeito que a ciência e tecnologia tiveram na sociedade e vicioso no efeito que as inovações daí resultantes tiveram na atmosfera. Um exemplo: o aumento de indústria permitiu um aumento de eficiência na agricultura, o que levou a uma redução na mão de obra necessária para a mesma e aumento na produção de produtos alimentares. Isso levou a um aumento da mão de obra disponível para a indústria, o que exacerbou o efeito inicial e levou a um aumento da população - coajudado pelas melhorias científicas no combate às doenças. Tivemos então necessidade de descobrir melhores formas de produção na agricultura o que permitindo a descoberta do processo de Haber-Bosch para fixação de azoto para fertilizantes, processo o qual exigiu o uso de grandes quantidades de energia. E etc.

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Evolução da concentração de CO2 ao longo dos últimos 40 mil anos. Medidos a partir de gelo do Árctico e do Observatório de Mauna Loa.

A concentração de CO2 na atmosfera explodiu assim, dos sensivelmente 270 ppm em 1880, até aos 410 ppm actuais. Normalmente o nosso planeta controla o nível de CO2 através do ciclo de carbono, onde o CO2 que é libertado por processos naturais (decomposição, respiração, processos geológicos ocasionais ou regulares de baixa intensidade) é compensado pela absorção através de fotosíntese (terrestre ou aquática) e sequestro no subsolo (como quando matéria orgânica fica enterrada). Historicamente houve momentos ocasionais em que o planeta libertou mais CO2 que aquele que era habitualmente absorvido, tipicamente através de vulcanismo, ou outros em que a fotosíntese foi comprometida a nível global devido a catástrofes repentinas (como supervulcões ou impactos de asteróides) ou mais progressivas (como mudanças climáticas causadas por mudanças geográficas, por exemplo o fecho do istmo do Panamá).

No entanto, a queima de combustíveis fósseis - os tais que resultaram do sequestro de matéria orgânica no subsolo ao longo de milhões de anos e subsequente transformação em carvão, petróleo ou gás natural - acabou por causar um desequilíbrio no ciclo de carbono que não pôde ser compensado no curto período de tempo que passou desde que a industrialização em massa começou. Aliás, olhando para o gráfico acima até se pode ver um ligeiro aumento na concentração de CO2 desde há 6-7 mil anos até sensivelmente o século XIX, o qual é atribuído por muitos ao surgimento das civilizações humanas, que dominaram o fogo e foram desflorestando partes do planeta. Claro que tais acções terão no máximo causado um ligeiro aumento na concentração de CO2, e que, sendo muito gradual, ajudaria a Natureza a equilibrar tal aumento.

Nota: o último máximo glacial teve lugar há cerca de 20-26 mil anos, um período que terá começado há cerca de 33 mil anos e a "deglaciação" (as minhas desculpas pela tradução canhestra de deglaciation) há cerca de 19-20 mil anos. Estas datas são muito fluidas, devido a estes momentos terem começado em períodos diferentes no globo. O importante a reter é como isto se reflecte também nos níveis de CO2 no ar. Não falarei sobre as origens da glaciação, mas note-se que no período do máximo glacial o nível do mar reduziu-se bastante e grande parte da superfície do planeta, sobre terra ou água, foi coberta por gelo que é, na maior parte das vezes, opaco. Isto terá reduzido a fotosíntese mas também a respiração, resultando (ou reforçando) a queda nos níveis de CO2. Já agora, essa queda do nível da água do mar também permitiu a criação de uma ponte terrestre entre a Ásia e a América e a migração de humanos para esse continente. De notar também que ainda vivemos num período glacial, ou seja, ainda estamos numa Idade do Gelo. Isto porque ter gelo de forma permanente nos pólos ou a altitudes relativamente baixas não é comum na história do nosso planeta. Ou seja, a história da humanidade existe num período glacial.

Resumindo: CO2 é um gás com efeito de estufa e fundamental para manter a temperatura no planeta mais alta do que seria sem ele. Ao longo dos últimos 150 anos temos enviado mais CO2 para a atmosfera que aquele que o nosso planeta pode remover, levando a um aumento da concentração do CO2. Isto tem levado a um aumento da temperatura média global até aos cerca de 1,2 ºC mais que no período pré-industrial e que terá certamente alguma influência num planeta que tem existido num estado de era glacial desde que os seres humanos modernos surgiram.

Alterações Climáticas
Como acima falei no conceito de Aquecimento Global (AG), tenho agora que falar no conceito de Alterações Climáticas (AC). Enquanto AG se refere a um efeito termodinâmico como referi acima, AC refere-se ao efeito que tal aquecimento tem no clima em geral. Antes de mais é necessário distinguir entre Clima e Tempo (no sentido metereológico, claro). O primeiro equivale a uma muito extensa floresta, enquanto que o segundo equivale mais a uma árvore, bosque ou a um pequeno sector na dita floresta. Quando adicionamos "Global" a Clima, então as escalas mudam completamente e o próprio termo deixa de fazer sentido. Não existe "Um Clima" global, antes uma colecção de climas mais localizados, mesmo que muito mais (e às vezes menos) extensos que uma região de um país. Um Clima também descreve uma dinâmica, enquanto que o Tempo descreve um momento. Podemos ter microclimas causados por montanhas, vales, lagos ou desertos e que se estendem por áreas comparativamente reduzidas. O Tempo, por sua vez, é uma descrição das condições num período e geografia reduzidos.

Usando estas definições podemos então olhar para a relação entre AG e AC. Como indiquei acima, o aumento de temperatura global médio no período industrial é de 1,2 ºC. Como comentei no início do post, a temperatura não existe por si mesma, sendo antes uma indicação da energia de um sistema. Assim sendo, é possível fazer uma estimativa de quanta energia é necessário adicionar à atmosfera do nosso planeta para aumentar a temperatura média em 1,2 ºC. Aqui, e como gosto de experimentar coisas novas que me poupem trabalho porque sou algo preguiçoso, recorri ao novo e famoso ChatGPT para me simplificar a tarefa. Pelos seus cálculos, e sabendo uma estimativa do volume e massa totais da atmosfera, bem como a sua capacidade calorífica em J/kg.ºC - Joules por kilograma e graus Celsius (um valor de 1 J/kg.ºC significa que 1 Joule de energia irá elevar em 1 ºC uma quantidade de 1 kg do material em causa) - podemos multiplicar a massa da atmosfera pelos 1,2 ºC e chegar a um valor de 6,6 x 10^21 Joules adicionados à atmosfera terrestre por acção da industrialização do planeta [para explicação: dado que o sistema de edição de texto do SAPO Blogs não me permite usar a notação habitual de potências, usarei o conceito de 10^x para o descrever. Para quem não esteja acostumado a isto, 10^x é um "1" com um número de zeros igual ao valor de x. Assim, 10^2 é 100, 10^0 é 1 e 10^20 é um 1 com 20 zeros.]. Para dar uma perspectiva, é um valor equivalente a 15 vezes o consumo global de energia em 2019 (ou para sermos apocalípticos, 110.000.000 - 110 milhões - de bombas equivalentes à de Hiroshima). Note-se que este valor refere-se ao aumento de energia na atmosfera, mas não à energia que nós próprios libertámos com o consumo de combustíveis fósseis (e outras actividades). A essa energia também se adiciona a energia que, como explicado acima, deixou de ser libertada para o espaço (mais uma fonte para dados sobre energia).

Se hoje deixássemos de aumentar as nossas emissões (ou seja, se mantivessem ao nível presente, o chamado "Net Zero"), é provável que a temperatura aumente a um ritmo de 0,2 ºC por década, chegando a cerca de 1,5 ºC em 2050. [Não encontro a fonte de onde retirei este valor. Este outro artigo fala num aumento total de 0,3 ºC mas baseia-se num artigo de 2010, quando os modelos era muito menos robustos e quase não levavam em conta outros factores]. Esse aumento corresponderia a cerca de 8,25 x 10^21 J de energia mais que nos níveis pré-industriais e um aumento de 1,65 x 10^21 J de energia nos próximos 27 anos. Ou seja, imaginemos que estaríamos a rebentar 27.500.000 (vinte se sete milhões e meio) de bombas de Hiroshima, ou um milhão de bombas de Hiroshima por ano (sem os efeitos de radioactividade, claro).

Qual a importância desta energia então? Bom, o problema é que o nosso planeta não é homogéneo. Os sistemas complexos têm o hábito de querer homogeneizar tudo ainda mais que burocratas em Bruxelas. Isso significa que zonas que estão quentes tentarão "ir" para zonas frias, mas como isso só é possível movendo massas de ar, quando o fazem também "empurram" as massas de ar dessas zonas frias, que depois podem ir para onde não se espera. É em parte (e de forma extremamente simplificada) que um aquecimento da atmosfera no Ártico pode levar a temperaturas muito baixas em zonas onde isso não se esperaria, por empurrar o ar mais frio para Sul. Outras complicações ocorrem quando os oceanos são levados em conta. O valor de energia que referi acima corresponde apenas ao aumento de energia na atmosfera necessário para chegar aos 1,2 ou 1,5 ºC. Mas os oceanos também absorvem energia, e em maior quantidade que a atmosfera (porque são muito massivos e porque a água tem grande capacidade absorção de calor, para não falar na vida, que também absorve a sua parte). Isso significa que a energia libertada foi provavelmente maior que aquela que apontei acima (para valores mais sólidos teria de se falar com especialistas em climatologia).

Isso significa que não só a atmosfera aquece, mas também que os oceanos estão a aquecer. Aliás, sem o efeito moderador dos oceanos, o aumento de temperatura teria sido provavelmente muito superior (note-se: é também por isso que as estações tendem a "mostrar-se" mais tarde que a data em que começam, porque os oceanos ou absorvem parte do calor extra da nova estação ou compensam o arrefecimento libertando parte do seu calor da estação anterior). Mas isso significa também que a temperatura dos oceanos aumenta o que, além de diversos efeitos na vida aquática, tem duas imediatas consequências: aumenta a evaporação de água e perturba a circulação termoalina. Vamos explicar estes conceitos e seus efeitos.

A evaporação é mais simples de compreender, como é claro. A temperatura aumenta, a água evapora mais facilmente e assim introduz-se mais vapor de água na atmosfera. Isto tem dois efeitos: a humidade aumenta e a quantidade de nuvens também. A influência destes dois factores é complicada de determinar, mas a humidade poderá ser a mais importante (isto é avaliação pessoal). As nuvens sobem à atmosfera e, sendo compostas de cristais de gelo, aumentam o albedo (uma medida de capacidade de reflexão de luz, servindo para "medir" quão branca uma superfície é) do nosso planeta. Isso faz com que mais energia solar seja reflectida de volta ao espaço e ajuda a diminuir o aquecimento. Por outro lado, a humidade tem o efeito contrário: o vapor de água é também um gás com efeito de estufa e o seu aumento na atmosfera levará a que mais calor que chegue ao planeta fique preso na atmosfera em vez de ser irradiado de volta ao espaço. Por outro lado, nuvens são passageiras e podem formar-se menos em temperaturas mais elevadas. A humidade total não muda significativamente, dado que efeitos de redução (saturação e chuva) levam a que a água chegue ao solo ou oceanos de onde se voltará a evaporar. (por isso a minha observação pessoal que o efeito de humidade contribui mais para o aquecimento que as nuvens para o arrefecimento). Claro que a humidade e nuvens não se dispersam igualmente por todo o planeta, pelo que mais água e nuvens levarão a um aumento, potencialmente brutal, da precipitação em determinadas zonas.

Representação da circulação termoalina.

Já a circulação termoalina é mais complexa. Refere-se a uma circulação da água nos oceanos causada por diferenças de densidade da água a profundidades distintas. Há aqui alguns aspectos a reter. À medida que a água arrefece, a sua densidade aumenta. À medida que água é retirada ao oceano, seja por evaporação ou congelação, a água líquida que fica no oceano tem uma salinidade maior e fica igualmente mais densa. Isto, juntamente com ventos e outros fenómenos, é responsavel pela circulação termoalina, a qual se pode resumir (de forma extremamente simplificada) da seguinte forma. A água que vem do equador e trópicos, quente e à superfície do oceano, segue na direcção dos pólos. À medida que se aproxima dos pólos vai arrefecendo devido à diferença de temperatura e evaporação (a evaporação causa uma baixa de temperatura do líquido que evapora, chama-se a isso arrefecimento por evaporação). Isto faz com que a água fique mais densa (temperatura mais baixa e salinidade mais elevada) e vai assim afundando para o fundo do oceano. A isto acrescem fenómenos extra relacionados com o congelamento da água, mas estes são complexos e não entrarei por aí. À medida que afunda, esta água vira em direcção ao equador e trópicos e volta a aquecer e a ascender, numa troca com a água mais quente e menos densa acima.

O processo descrito acima, que como disse simplifiquei enormemente, permite transportar enormes quantidades de calor e equilibrar o clima no planeta. A forma como se distribui é fortemente responsável pelo facto de o Porto e Nova Iorque terem climas bastante distintos apesar de estarem sensivelmente à mesma latitude. A circulação termohalina transporta a água mais quente mais perto da Europa que da América do Norte, pelo que acaba por influenciar os climas nos dois continentes.

Só que também aqui pode haver problemas. O AG está a causar um aumento das temperaturas em todo o lado, especialmente em certas regiões. uma delas é o Ártico, que está assim a derreter mais que normalmente seria o caso. Isto não causa o problema que a maior parte das pessoas poderá imaginar: o nível das águas do mar não aumenta significativamente porque o gelo no círculo polar ártico está na sua grande maioria a flutuar na água, pelo que se derreter não causará aumento do nível da água (não contabilizo aqui a Gronelândia). Só que esse gelo é de água essencialmente pura, a qual iria então diluir as águas ao redor e assim perturbar a circulação termoalina. Isso sucederia porque ao introduzir água pura no oceano e diminuir a salinidade da água, iria impedir que a mesma afundasse da mesma forma. Isso poderia levar a uma perturbação das correntes o que mudaria completamente a forma como o calor é transportado pelos oceanos. Isto pode parecer pouco, mas deixo um exemplo da sua importância. Há cerca de 3 milhões de anos, o Istmo do Panamá fechou, eliminando a circulação entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Isto causou enormes perturbações no clima a nível global, tendo possivelmente sido responsável por uma desertificação de grandes partes de África, levando a que certas regiões passassem de florestas a savanas e outras ficassem completamente desertificadas. Uma teoria é que tais modificações climáticas e do terreno terão levado a que as florestas de que dependiam os nossos antepassados desapareceram levando a que tivessem que se adaptar (evoluíssem) para uma posição mais erecta e assim iniciassem o percurso que levou ao Homo sapiens (isto seria apenas uma contribuição para essa evolução, tais adaptações nunca resultariam de apenas um tipo de pressão ambiental).

E isto é só a introdução.

Sistemas complexos e mudanças metereológicas
Em qualquer sistema, as dinâmicas são tais que o sistema procura o equilíbrio. Este equlíbrio pode ser muito simples ou mais complexo. Se abrirmos as portas e janelas de nossa casa, aquecida, o sistema atmosférico rua-casa irá mudar de forma a criar um novo equilíbrio, no qual a temperatura e pressão é igual em todo o lado. A casa arrefecerá e a rua irá aquecer, mesmo que de forma insignificante (devido à grande diferença de volumes). Quando temos um sistema em equlíbrio, não devemos no entanto pensar que o mesmo se manterá sempre em equilíbrio ou que perturbações no equilíbrio levarão a ajustes simples. Quanto mais complexo o sistema, mais probabilidades há para variações fortes ou inesperadas devido às muitas interdependências entre os factores (temperatura influencia pressão que influencia volume, que influencia circulação de ar, que influencia evaporação, etc...). Este tipo de reacções, onde as consequências de uma variação ou perturbação são inesperadas ou não proporcionais à dita perturbação podem indicar não-linearidade do sistema, ou seja, não há relação directa entre a acção e a reacção (uso aqui linguagem o mais simples possível para descrever conceitos que são essencialmente matemáticos e que não domino suficientemente). Um exemplo de um sistema que parece não-linear aos nosso olhos é o conceito de drifiting com automóveis: quando um carro faz uma curva em grande velocidade e começa a deslizar com as rodas traseiras. O instinto de um condutor é de virar o volante na direcção da curva para endireitar o carro, mas isto apenas resulta num pião. A solução passa por virar o volante na direcção oposta à curva e deixar o carro continuar a deslizar enquanto completa a curva. Conceito explicado de forma interessante e acessível aqui.

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Visualização de um exemplo de perturbação do equilíbrio de um sistema (aqui unidimensional, por isso numa linha) retirado daqui. Note-se como o ponto de equçíbrio pode ser encontrado de novo (a linha recta no meio) mas pode não ser estável.

Voltando a sistemas complexos, quando a perturbação não só é introduzida no sistema como continua a ser introduzida, as consequências podem ser bastante inesperadas. A contínua emissão de gases de efeito de estufa para a nossa atmosfera é um exemplo de um sistema complexo (a nossa atmosfera, o clima, os oceanos, o planeta em si) a ser alterado por uma perturbação constante (e crescente) ao longo de um período de tempo muito longo (as emissões). Neste caso, pode até acontecer que, se amanhã deixássemos de emitir gases com efeito de estufa, o sistema não encontrasse um novo ponto de equlíbrio senão ao fim de períodos de tempo muito longos, certamente mais que vidas humanas. Poderíamos até encontrar pontos semelhantes ao nosso equilíbrio anterior (relativamente ao ciclo de carbono) mas que não estivessem em equilíbrio, porque as perturbações levaram a outras modificações no sistema que contribuem para uma convergência do sistema muito mais difícil e longa que aquela que seria possível sem a perturbação. No nosso caso, isto pode acontecer graças a pontos de inflexão na Natureza. Alguns deles são:

  • alterar os oceanos o suficiente para que extinções massivas de plankton tenha lugar e assim desapareça um dos maiores reservatórios de CO2.
  • as temperaturas sobem o suficiente para que o permafrost em latitudes elevadas comece a descongelar significativamente e a libertar as suas imensas reservas de metano, que é um gás com efeito de estufa cerca de 20x mais forte que o CO2.
  • A floresta amazónica é reduzida e perturbada o suficiente para que a sua dinâmica deixe de ser orientada pra regeneração e comece a causar a sua auto-destruição. Isto não é causado apenas por AC, mas pela desflorestação, mas as AC podem ser depois responsáveis por um empurrar da floresta para o precipício.
  • O gelo nos pólos (especialmente na Antártida e na Gronelândia) derrete o suficiente para criar uma situação onde mesmo que a temperatura voltasse a diminuir, o gelo continuaria a derreter, devido a menor albedo (superfícies mais escuras absorvem mais calor), lubrificação por água líquida do espaço entre gelo e rocha (que levaria a deslizamento mais rápido dos glaciares para o mar).
  • Derretimento dos gelos em montanhas como os Himalaias, que fornecem água a alguns dos mais importantes rios na Ásia. Esses rios (por exemplo o Ganges e o Indus) podem então perder caudal o que, além de potencialmente levar a fomes a escalas inacreditáveis, poderia levar também a desertificação da região e assim fazer perder um enorme reservatório de carbono.

Para ser claro: não é certo que os pontos referidos acima venham a suceder e há estudos que apontam para a sua improbabilidade, mas a comunidade científica identificou estes e vários outros pontos de inflexão que podem não só perturbar o complexo sistema que é o clima global como inclusivamente acelerar e alimentar essa perturbação. Um exemplo de uma perturbação que poderia levar a uma consequência oposta refere-se à circulação termoalina. Tal como se comenta de forma canhestra no filme The Day After Tomorrow, a perturbação da circulação (como referi acima) poderia reduzir o transporte de água mais quente para os pólos e assim causar uma queda de temperatura no hemisfério norte, levando assim a uma glaciação mais semelhante aos últimos picos de glaciação (mas não em dias, como no filme, antes em séculos). Não é claro se isso realmente aconteceria (a circulação termoalina e a sua influência no clima é um outro sistema tão complexo que não o compreendemos completamente), mas essa possibilidade existe definitivamente.

Este é apenas um dos aspectos que aponta para como a evolução de sistemas complexos e perturbações ao equílibrio nos mesmos podem parecer um contrasenso. Um aquecimento global leva a um arrefecimento localizado mas vasto, por exemplo. Nalgumas zonas as chuvas aumentam e noutras o clima fica mais seco. Há várias consequências imprevistas quando conduzimos uma experiência não monitorizada num sistema complexo, como é o caso da industrialização contínua (ainda hoje prossegue) do nosso planeta no meio de uma atmosfera e uma hidrosfera que mal compreendemos. A isto ainda acrescem outros pormenores que à partida não consideraríamos. Um exemplo pode ser o aumento de chuvas que leve a uma desertificação de certas regiões. Isto pode suceder se, numa região cuja geografia, geologia, fauna e flora, estão habituadas a um determinado padrão de precipitação, o clima mudar de forma a que esta precipitação aumente ou, alternativamente, se concentre em períodos de tempo mais curtos. Neste caso, chuvas mais intensas poderiam causar um lavar dos solos mais intenso que o habitual, assim removendo a camada superior dos mesmos (que albergará a maior parte dos nutrientes necessários para as plantas) e assim cause uma diminuição da cobertura verde. Os animais acabam igualmente por desaparecer (morrendo ou migrando) o que exacerba o problema ao perturbar ainda mais o equilíbrio (animais consomem plantas e pestes, introduzem nutrientes no solo, ajudam com a polinização, etc). O desaparecimento de plantas também retira capacidade de retenção de água ao solo e na ausência de raízes saudáveis, deixa igualmente de proteger essa camada superior de solo. Ao fim de algum tempo, a região poderá ter mais chuva, mas reter menos água e vegetação, assim ficando mais desertificada (note-se que a desertificação por seu turno provavelmente reduziria depois a precipitação na região).

De certa forma, podemos pensar de forma extremamente simplificada e grosseira no nosso clima como se fosse um anel elástico em volta de um dedo e o qual esticamos com o outro. Esticamos um pouco e depois relaxamos, esticamos e relaxamos, de forma contínua e sem parar. É um ritmo constante e existe algum equilíbrio. Contudo, a perturbação pode ser se começarmos a esticar mais mas a relaxar menos. A tensão no elástico cresce e até pode acontecer partir ou escapar do nosso dedo. A direcção que tomaria seria impossível de prever apenas saberíamos que o equlíbrio deixaria de existir. O mesmo acontece, mas em ordens de grandeza extraordinariamente maiores, com o clima. É por isso que termos dias frios no Verão ou mesmo toda uma estação de Verão ou Primavera mais fria que o habitual não nega um aquecimento global. Pode até ser uma confirmação do mesmo.

A árvore e as florestas
Note-se que embora um qualquer extremo meterológico (calor, frio, inundações, secas) possa estar ligado ao AG e às AC, não quer dizer que o possamos dizer. Temos vindo a ver as notícias sobre fogos, inundações ou outros eventos e os comentários, frequentemente precipitados, de jornalistas sobre estarem ligados às AC. Isto é precipitado porque não podemos dizer, de forma inequívoca, que um evento específico não teria lugar sem o despejar massivo de gases com efeito de estufa na atmosfera. Aquilo que podemos frequentemente fazer é apontar para um aumento da frequência ou intensidade de eventos extremos como indicação das AC. Aqui não falamos de ver tais tendências (aumento de frequência e intensidade) e usarmos esse argumento para defender um ponto de vista. Essas tendências eram esperadas pelos cientistas há já muito e seriam previsíveis por qualquer pessoa que compreenda sistemas complexos.

Estes extremos em si mesmos são obviamente um problema grave, mas não são sequer toda a história. Um dos seus efeitos é que podem em si mesmos ampliar o problema em si. Secas podem fazer desaparecer reservas de água como lagos que ajudam a um arrefecimento localizado e suportam vegetação. O aumento de temperaturas diminui a cobertura de gelo em glaciares que ajuda a reflectir luz do sol e reduzir temperaturas. Tempestades costeiras podem ajudar a erodir as próprias costas e a fazer desaparecer protecções naturais contra o mar.

Pegando neste último aspecto, há ainda que notar que aparentes pequenas variações em certos parâmetros (como uma subida de cerca de 20 cm do nível do mar desde 1880) podem ter consequências muito piores do que pensamos. A Natureza, não costuma funcionar de forma gradual, antes tende a absorver mudanças até atingir a sua capacidade máxima de o fazer e depois reagindo de forma mais intensa. Isso significa que um aumento do nível do mar de 20 cm pode parecer pouco, mas dado declive muito gradual de muitas zonas costeiras (como praias), a perda de terreno pode ser muito mais grave. A regra geral é dizer que cada 1 cm que o nível do mar sobe causa a perda de 1 m de praia (com variações acima ou abaixo destes valores, dependendo da situação). A perda de 20 cm significa então a perda de 20 m de praia. Se isto parece pouco, consideremos outros aspectos: a perda de praia também aumenta a erosão e a intrusão de água salgada no subsolo; torna o terreno sobre o qual erguemos as nossas construções menos firme e assim arriscamos maiores danos estruturais entre outros riscos. Pior ainda são as variações. O nível da água do mar não é constante, como qualquer pessoa que vê marés sabe. É antes uma medida média, como a da temperatura. As marés mudam o nível e as estações do ano também. Quando existem tempestades, o nível da água pode ser vários metros mais elevado, o que é amplificado ainda mais quando existe uma subida da água do mar pré-existente.

Neste caso temos então na nossa analogia uma dependência entre as árvores (episódios isolados) e a floresta (a multiplicidade de tais incidentes) no sentido que embora não possamos identificar Alterações Climáticas através de episódios localizados no tempo e no espaço, podemos com enorme margem de segurança apontar para um aumento destes episódios como indicativos das AC. Ainda mais, tais episódios têm o potencial de amplificar as tendências globais, seja de forma directa, seja de forma mais indirecta, para não falar nos efeitos cumulativos de tais episódios no planeta.

A direcção a tomar
É neste momento que os leitores esperarão o meu comentário sobre energias renováveis, racionalização do uso de energia (vulgo: melhorar a poupança da mesma) ou até mesmo uma diatribe contra um mundo moderno que dá prioridade a desenvolvimentos económicos predadores do sistema global em que vivemos. Nenhum destes pontos estará errado e longe da minha mente. No entanto tenho uma visão diferente e mais fatalista: penso que nada funcionará e que estamos a caminho da catástrofe climática e que não vamos conseguir evitá-la de forma nenhuma.

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Comparação dos custos de energia por tipo e por região para 2020 (fonte aqui).

Antes de mais uns pontos sobre o que fazer para mitigar esta situação ou, se possível, revertê-la. As tecnologias para geração de energia existem. As energias fotovoltaica e eólica estão hoje bem estabelecidas e perfeitamente competitivas, com um custo por MWh consistentemente competitivas com, ou abaixo dos, de combustíveis fósseis, mesmo sem contribuições de subsídios ou benefícios fiscais. À medida que se vai aumentando a capacidade instalada, estes custos continuarão a cair, assim como com a melhoria da tecnologia disponível (incluindo a reciclagem dos materiais para produção de moinhos e painéis). A estas tecnologias acrescem outras como a geotérmica, o biogás, a hídrica ou o nuclear. Não sou um adepto da energia nuclear, mas vejo o risco para o clima como sendo várias ordens de magnitude superior ao risco da energia nuclear, desde que devidamente gerida e actualizada de um ponto de vista tecnológico. Energia das marés está no entanto ainda a vários anos de distância e o mesmo se pode dizer, mas de forma ainda mais certeira, sobre a fusão nuclear. Note-se que o uso de combustíveis fósseis é inevitável no curto (e talvez também médio) prazo, dado que demorará ainda algum tempo até que se consiga instalar suficiente capacidade de geração de energia a partir de fontes renováveis para substituir as actuais centrais.

Outras medidas necessárias estão no campo da racionalização do uso de energias. São as medidas que, a nível privado e doméstico, passam por coisas como isolamento térmico ou uso de bombas de calor em casa. Também na indústria há muitas medidas que se podem tomar e que existem há já muito e só não são tomadas de forma mais diversificada porque exigem investimentos. Estes passam pela recuperação de recursos na produção, uso de tecnologias alternativas ou melhoramentos dos equipamentos e processos para reduzir o uso de energia. Em alguns casos até podem passar por questões logísticas onde produtos são transportados para a frente e para trás por questões logísticas (um exemplo real que conheço: uma bebida que é produzida numa fábrica, transportada em tanques para outra onde se enchem as latas e transportada de volta à primeira para as latas serem colocadas nos packs de 6 ou 12 para venda).

Teríamos outras opções ainda que passam por questões como o uso de fontes de energia alternativas para o transporte (baterias, e-combustíveis, hidrogénio, etc) ou mudanças nos hábitos pessoais (diminuição de consumo de carne, uso de transportes públicos ou bicicletas, redução no consumo de outros produtos como roupas). Até mesmo aceitar que os nossos efluentes, após tratados, sejam reutilizados e recolocados na nossa rede de distribuição de água seria importante para reduzir o desperdício de recursos. Estes aspectos exigem em grande parte uma mudança de mentalidade que não se consegue de forma fácil e exigiriam medidas pouco populares para serem alcançadas (proibições não fariam sentido, mas medidas populares como impostos também não seriam fáceis de implementar).

Há ainda opções como tentar reverter a presente situação, como com a descarbonização da atmosfera, seja de forma natural através de mais áreas verdes que absorvam o CO2; através de medidas tecnológicas para remover o CO2 e depois o usar (em químicos ou e-combustíveis) ou sequestrar; ou até mesmo através de geoengenharia como as ideias para arrefecer o planeta usando alguma forma de redução da exposição solar ou promoção de crescimento de fitopláncton nos nossos oceanos. É muito possível que uma combinação destas e outras soluções venham a ser necessárias para ajudar a reduzir a temperatura - ou no mínimo limitar o seu aumento - mas estamos longe de as conseguir, seja por motivos económicos, práticos ou devido à incerteza das mesmas.

Ao mesmo tempo vemos que o mundo continua a consumir cada vez mais energia e continua a ser mais fácil para a maioria das empresas e países reverter para as tecnologias mais antigas como carvão ou gás do que optar por soluções renováveis. Em parte isto deve-se a conservadorismo de empresas e engenheiros, mas igualmente devido à pressão exercida por grupo de interesse na indústria fóssil para manter o status quo da forma mais longa possível. Onde as indústrias renováveis não têm ainda a mesma eficiência é no lobbying, onde as indústrias de combustíveis fósseis levam um século de avanço e sabem como manipular os políticos e os eleitorados, inclusivamente criando imagens "verdes" das suas próprias indústrias para disfarçar as sua políticas reais e falam em opções tecnológicas que, parecendo apoiar uma descarbonização da economia, na realidade perpetuam a mesma (basta olhar para o conceito do "hidrogénio azul").

O futuro
Sei que isto soa fatalista quando olhamos para tantos avanços nas últimas duas décadas, mas a realidade é que não avançamos depressa o suficiente. Penso que iremos viver num mundo cada vez mais quente e onde o aumento de temperatura irá acelerar constantemente. Isto porque os modelos climáticos que vemos e que referem consenso são conservadores. Para que se entenda: um consenso de 1,0-2,5 ºC, por exemplo, não corresponde a uma maioria de opinião ou sequer a um aceitar de toda a gente que esses valores são os mais prováveis. Um exemplo com 3 cientistas diferentes seria dos seguintes intervalos: 1,0-3,0 ºC; 3,0-5,0 ºC; 1,5-2,5 ºC. Aquilo com que o três cientistas concordariam é que o planeta aqueceria no mínimo 1,0 ºC e pelo menos poderia chegar aos 2,5 ºC. Mesmo o que previria o intervalo entre 3 e 5 ºCaceitaria um mínimo destes valores. O consenso acabaria assim por ser o valor menor.

Por isso creio que os aumentos serão maiores. A cada dia se descobrem novos dados que apontam para um reforçar do ciclos de feedback no clima, onde consequências do aumento das temperaturas amplificarão esse efeito (descrevi alguns acima). Os modelos também são por força conservadores por não poderem integrar todos os dados possíveis, em grande parte devido à complexidade dos modelos matemáticos e em parte devido à capacidade de computação disponível. À medida que os modelos melhoram e os computadores aumentam a sua capacidade de processo, vamos vendo novos dados, a maioria dos quais tendem a rever os aumentos de temperatura para cima. Uma vez que ainda mal estamos no início do processo de descarbonização da economia, que há pouca vontade política para forçar estados, empresas e público e tomar as medidas necessárias e que as empresas do status quo continuam a beneficiar de apoios e a poder influenciar a narrativa, tudo isto me faz pensar que o futuro não é verde. É muito escuro.

As consequências serão enormes. A agricultura será provavelmente a mais clara vítima à medida que certas regiões que alimentam grande parte do planeta deixem de o conseguir fazer devido às alterações climáticas. A tecnologia ajudará, mas mesmo esta contribuirá para a libertação de CO2 e acredito que não avance depressa o suficiente para compensar uma aceleração do deteriorar das condições. Depois teremos os deslocados do clima, pessoas que fugirão das águas que subirão, de terrenos que não suportem as suas construções, de economias que cairão ou chegarão mesmo a colapsar por não serem possíveis com as mudanças climáticas. Também teremos muitos que irão simplesmente ansiar por um clima mais ameno e onde não haja risco de vida por saírem de casa para ir buscar a pouca água disponível à única fonte da região. Ainda veremos as migrações de fauna e flora, que levarão doenças a zonas onde elas não existiam e reduzirão a presença de animais e plantas que sempre fizeram parte da região. Tudo isto aumentará a tensão entre regiões e países, que lutarão por acesso a recursos e para evitarem serem invadidos por refugiados climáticos ou sequer para manterem as suas posições priveligiadas.

Note-se, isto não acontecerá amanhã ou no próximo ano, antes ao longo de décadas. Creio que nasci numa das últimas décadas de acalmia climática que as novas gerações irão sofrer muito. É uma visão pessimista e não sei como explicar o quanto desejo estar errado. Mas sinto não o estar.

 

PS - este texto foi escrito durante um relativamente longo período de tempo. Por isso o estilo pode mudar ao longo do mesmo, devido à diferente perspectiva de como o escrever que terei tido em diferentes dias. Peço a vossa tolerância para tais falhas.

O fim de uma era: a morte do "Arcadas"

jpt, 30.06.23

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Há tempos aqui falei do café do meu bairro, meu poiso durante décadas, desde petiz: o "Arcadas". Então saudava a sua reabertura sob a antiga e prestigiada gerência. Mas foi curto o regresso à actividade, passados alguns meses os proprietários regressaram à merecida reforma, ao remanso dos seus "anos doirados". Ficou encerrado o café, sito na loja do prédio, como tantos outros exemplos aconteceram nos Olivais, característica da urbanização daquela década de 1960s a induzir o pequeno comércio local. A clientela, envelhecida e cada vez mais esparsa, esperando um trespasse que mantivesse um mais ou menos "como sempre" na sua vida de vizinhança...

Os pequenos cafés e restaurantes (as tascas, casas de pasto, etc.) serão um modelo de negócio urbano algo condenado. Os hábitos de consumo mudaram, pelo envelhecimento da população - e em alguns nichos pelos devastadores efeitos na saúde física e mental que a pandemia de Covid-19 teve; pelas sucessivas crises económicas, a retrair hábitos tornados "despesistas". Na redução da procura de alguns produtos típicos, a "bica" substituída pelas máquinas domésticas, o bitoque ou a tosta mista trocados pela entrega de fast-food (e não só) ao domicílio, a desnecessidade de ir comprar (ou ler) o jornal, dada a profusão televisiva e digital. E o convívio migrado para as redes sociais e os telefonemas tendencialmente gratuitos. Tudo sublinhado pela concentração de clientela causada pela construção de enormes "grandes superfícies" - patadas urbanísticas advindas na incultura estuporada do período cavaquista. Por outro lado, o pequeno negócio - quantas vezes familiar, concentrado em torno de um casal, coadjuvado pela prole ou parentela - deixou de ser um factor de mobilidade, social e geográfica, com mais atractivas hipóteses laborais para uma população já urbanizada, e que assim se escapa à sobrecarga horária que esta actividade implica. E está sobrecarregado de taxas e regulamentos, numa sociedade e economia estatistas, escorada numa fiscalização digitalizada implacável face às pequenas empresas, e que veicula uma ignara visão do que é higiene, consignando-a à utilização de "detergentes certificados" ou quejandos detalhes.

Enfim, tudo isso é o pano de fundo mas o libreto depende de cada lugar... Tenho andado longe do meu velho bairro. Nisso do convívio com os vizinhos olivalenses, entre os quais me restam um punhado de velhos amigos. Na expectativa de que o "Arcadas" reabrisse, pretexto para lá ir, rever gente, retomar conversas. Há dias um amigo enviou-me esta fotografia, sublinhando o fim de uma era. No final do beco ermo surge agora um restaurante chinês... Nada tenho contra imigrantes e imigrações - ainda que sempre me interrogue sobre a particularidade do modelo migratório chinês, mas isso é outra conversa. Nem contra a pluralidade de oferta gastronómica, em especial os já tradicionais "restaurantes chineses", cuja disseminação por cá até terá sido pioneira - e sempre lembro as juvenis patuscadas num chinês barato na Duque de Loulé, desde as quais neles como sempre o mesmo (os eternos crepes, chop suey e porco doce, cardápio que presumo inexistente na própria China).

Mas, raisparta, ao ver (mais) um restaurante chinês alojado na loja do (meu) "Arcadas", lá no fim do ermo beco, lembro-me do final de recente leitura, pois é exactamente assim que me sinto. O então afamado escritor e cronista Júlio César Machado foi viajar uns meses por Itália na década de 1860, lá palmilhou o Norte, conviveu com Milão, calcorreou Veneza - sob o pérfido domínio austríaco -, isto, dizia, numa época em que "os portugueses não viajam". Dessas andanças deixou um livro interessante, "Do Chiado a Veneza". E a narrativa dessas até aventuras termina assim, explicitando o que realmente importante retirava da sua passeata pela bela Itália, berço da nossa cultura, onde não podia sair à rua sem se deparar com o monumental legado de História e Arte:

"Ao voltar porém daquela formosa Itália, que é a pátria das artes, da graça, da benevolência, do bem-estar e das doçuras da poesia, vim encontrar em Lisboa um grande acontecimento, que durante a minha ausência tivera lugar aqui:

Fechara o Marrare!...

Ora, devo dizer-lhes, Portugal é Lisboa, Lisboa é o Chiado, e o Chiado era o Marrare. O Marrare não era o primeiro nem o melhor botequim, era o único botequim. (...) Era a casa das noites e das manhãs: de tarde, ninguém; à hora em que nos outros botequins não havia mãos a medir para atender aos fregueses, que iam tomar café, a essa hora os fregueses do Marrare estavam a vestir-se para ir jantar. Mas pela noite adiante, que agitação, que vozearia, que teorias transcendentais acerca da arte, que discussões políticas, que dissertações com respeito à música (...)

Conquanto nos últimos anos houvesse perdido alguma coisa do esplendor antigo, e cada dia lhe fosse deixando um vácuo que o dia de amanhã não preenchia, o Marrare era ainda nos últimos tempos um dos lugares mais curiosos de Lisboa. Conservava-se ali a tradição; ali morava o Entrudo; vivia já de recordações, mas vivia; era um veterano a contar as campanhas!

Palavra de honra! Quando cheguei e vi no Marrare aquela loja de sapateiro que lá está agora, percebi que há uma cidade mais devastada ainda do que Veneza... é Lisboa!"

(Júlio César Machado, Do Chiado a Veneza, Tinta da China, 217-218)

Engonhas, sovinas ou caloteiros?

Sérgio de Almeida Correia, 30.06.23

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(créditos: foto daqui)

A notícia de que o PCP, à semelhança de qualquer mau patrão capitalista, não cumpre as suas obrigações para com os trabalhadores ao seu serviço não é nova, não obstante ser lamentável que um partido que se reclama dos trabalhadores e está sempre a atacar as grandes empresas, os capitalistas, o patronato em geral, de cada vez que tem um problema laboral com os seus próprios trabalhadores se remeta ao silêncio. 

Com o património imobiliário que tem, beneficiando de isenções fiscais que há muito deviam ter terminado em relação a todos os partidos políticos, recebendo as subvenções a que por lei tem direito e com os lucros que também obtém da sua actividade empresarial, o mínimo que seria de esperar era que não se comportasse da maneira que o faz, fugindo às suas responsabilidades, não pagando contribuições obrigatórias por lei, de valor irrisório, e fazendo propostas manhosas, de "legalidade duvidosa", como referiu o advogado da queixosa.

Em suma, prejudicando quem para si trabalhou, mostrando falta de seriedade e de carácter, comportando-se como um desses vulgares caloteiros que contratam mão-de-obra no exterior em regime de semi-escravidão a redes mafiosas para também não terem responsabilidades, não fazendo os descontos devidos, não pagando o que deve, prejudicando os trabalhadores e o Estado.

E se as coisas funcionam assim em relação a uma ex-dirigente que até foi deputada, agora imagine-se como será o tratamento em relação a outros trabalhadores de estatuto inferior. Aos que não têm voz, "às vítimas da fome" que não têm um Garcia Pereira que os defenda.

Enfim, olhando para este caso também se percebe o incómodo que é dizer alguma coisa sobre a situação dos trabalhadores na China ou em Macau e a ausência de direitos – como o direito à greve ou à contratação colectiva, por exemplo – que em Portugal são considerados sagrados pelo PCP e vistos como "conquistas irreversíveis dos trabalhadores". É, irreversíveis dos trabalhadores dos outros, não dos deles.

Por isso a luta é contra o roubo e a exploração dos trabalhadores dos patrões vizinhos, não dos próprios. É bom que no Brasil também o saibam.

Uma miséria.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.06.23

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Ana Lima: «O ano passado deixou-nos tristes quando anunciou que, porque o tempo nunca chega, o blogue iria fechar. Para felicidade nossa tratou-se apenas de uma interrupção e podemos contar novamente com os seus textos que gosto sempre de ler e nos quais aprendemos sempre algo de novo (mesmo que o soubéssemos já). O “Patrão da Barca” é  J. Rentes de Carvalho. Tempo Contado é o blogue desta semana.»

 

Carlos Duarte: «Quando se fala de greves e da estabilidade no emprego, onde está a minha estabilidade? O Estado garante à minha empresa o rendimento mensal necessário para pagar salários (primeiro), ao Estado (segundo) e aos fornecedores (terceiro) para ver se, no final de tudo, sobra alguma coisa. O Estado garante-me as noites mal dormidas porque alguém se atrasou nos pagamentos e agora não sei a cinco dias do fim do mês onde vou desencantar dinheiro para pagar IVA, Segurança Social e os ordenados?»

 

Gui Abreu de Lima: «Um Mefistófeles dentro de casa. 13 anos, a anunciar que não vai mais à missa. "Deixa-te disso", disse a mãe, "enquanto viveres debaixo do meu tecto fazes o que eu mando", lembrou o pai. Conseguiu um acordo - passaria a ir à das seis e meia e dispensavam-no da do meio-dia, na Misericórdia, com aquele errante final social. Da Matriz ao campo da bola era uma certa distância e ainda que com tempos sobrepostos, valia toda a diferença.»

 

José Navarro de Andrade: «Pelo menos desde que em 1588 ofereceram a El Greco uma parede da igreja de São Tomé de Toledo e ele a preencheu com o céu e a terra, ligados pela morte e o milagre, até aos murais de Diego Rivera, que os pintores, só os mais confiantes, ousam representar o universo inteiro de modo que possa caber num olhar. Isto dito sem ver, parece mentira ou insensata vaidade, mas ponham-se diante do que eles fizeram e digam que não sentem a arte de pôr o mundo na palma da mão.»

 

Patrícia Reis: «Dizem - aqueles que acham que o mercado guarda segredos para uns eleitos - que as biografias não vendem. (...) Pois, eu sempre gostei e há uma em especial que acarinho. Minto. Duas. Não, há mais, pronto, não vou fazer a lista. Mas para quem precisar de dicas para as férias leiam a biografia de Benjamin Moser sobre Clarice Lispector, leiam a biografia de Ruy de Carvalho ou a biografia ficcionada - brilhantemente - por David Lodge de um dos meus autores de sempre, Henry James, chama-se Autor, Autor. Tendo-lhe tomado o gosto escreveu recentemente uma outra sobre H. G. Wells e quem lê só pode suspirar de admiração.»

 

Teresa Ribeiro: «Era já um vício. Todos os dias gastava umas horas a espiá-las, procurando adivinhar através do que escreviam os seus traços de personalidade e potencial intelectual. Depois entrava no jogo ainda mais arriscado de lhes atribuir formas e traços fisionómicos sugestionado pela construção frásica, agilidade narrativa, enfim pelas características formais dos textos que lia. Quando um trecho o enfeitiçava deixava-se sempre tomar pela convicção de que a autora só podia ser linda. Pernas longas e bem  torneadas como a sua escrita, o rosto iluminando-se como a mais bela das frases intercalares entre o corpo e a alma.»

O anúncio da PSP

jpt, 29.06.23

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Um homem não deve ligar às imbecilidades que vai lendo na imprensa, em particular aquelas imbecilmente partilhadas nas redes sociais. Mas há tardes…

Há anos o “Público” publicou uma série de entrevistas pindéricas sobre o racismo - julgo que vieram passar a livro. Um afamado antropólogo socratista, entusiasmado, veio a escrever no mesmo jornal que elas “provavam” a existência local do fenómeno - uma deriva “positivista” que às vezes dá jeito, possibilitando que este tipo de gente publique no mesmo boletim que “vivemos num apartheid”. Li algumas dessas peças - e lembro a conversa com uma das entrevistadas, cientista social estrangeira que bem acima está desta tralha, que me contava dos rumos entrevistadores. Explícitos para aqueles, como ela (e até eu) sabem da gigantesca diferença (intelectual, moral, deontológica) entre pôr o informante/entrevistado a falar do que queremos ou a dizer o que queremos. Enfim, almoçávamos nós em esplanada lisboeta e perguntou-me ela se eu lera as entrevistas. Respondi eu que vira algumas, com menosprezo, lembrando que uma delas clamava o racismo português, tamanho que não havia negros nas telenovelas e nos frascos de shampoo… E que a vítima entrevistada não suportava tal coisa, a “invisibilidade” racista, tão letal que partira ela, artista, para a ecuménica Berlim. Rimo-nos, apesar de não estarmos em dias e eras de grandes boas disposições.

Mas este gemebundismo vingou. Há pouco tempo o esquerdalhismo orgasmou-se com as tranças rastafari de um apresentador de telejornais, dando-lhes estatuto fundacional. Depois outra apresentadora de notícias, dotada de cuidado e vasto cabelo “afro”, chorava a morte do norte-americano Floyd enquanto esquecia as mortes contemporâneas, às mãos de similares polícias, de indo-descendente na Beira e de eslavo no aeroporto de Lisboa. A tal “invisibilidade” “racista” reduzia-se… e não só assim.

Há algum tempo entrei na loja da Vodafone do Vasco da Gama. Notei que estava decorada com vários cartazes de risonhos clientes da empresa, na sua maioria negros - o trabalho que as grandes empresas dão a modelos, profissionais ou amadores, é uma forma de luta contra a “invisibilidade” “racista”. Presumo que nas telenovelas aconteça o mesmo. Sorri e comentei o facto com a minha companhia, a melhor que poderia querer. Para seu incómodo, que notar estas coisas pode parecer mal, “racismo” até…

Regresso ao início. Vejo no FB partilhas de um texto jornalístico de um consabido demagogo comunista, que ali chega por via de alguém que há décadas embrulha o seu vil otelismo assassino com berloques da “capela do Rato”. Somos agora racistas, diz esta gente, porque a PSP fez um anúncio para candidaturas usando a fotografia de um agente negro...

Há pessoas que aplaudem, “partilham”, “gostam” deste lixo. De gente. Eu nada digo. As minhas amadas filha e irmã proíbem-me de explicitar o que penso desta gentalha.

O crime

Pedro Correia, 29.06.23

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Acossado pelas sanções internacionais, líder crepuscular de um velha potência em declínio, humilhado pelo mais repugnante dos seus barões da guerra, Vladimir Putin reage com a pulsão dos autocratas. Entrincheirado, dissociado da realidade, numa Rússia que ameaça fragmentar-se em estilhaços repetindo o humilhante fim do Império Austro-Húngaro após a declaração de guerra à Sérvia em 1914. Com uma demografia devastada pela fuga maciça de jovens (mais de um milhão terão abandonado o país neste último ano e meio) e pelo morticínio na Ucrânia, num país onde a esperança de vida à nascença é de apenas 67 anos para os homens, o ditador do Kremlin vive numa realidade paralela. Acreditando só nas suas efabulações, numa réplica do Hitler confinado ao búnquer de Berlim naquele agonizante Inverno de 1945, resta-lhe mandar matar. Seja quem for, não importa quando, não importa onde. Já o fez com opositores políticos, jornalistas, antigos rivais que deixaram de prestar-lhe vassalagem. 

Pela enésima vez desde que decidiu anexar a nação vizinha, no seu delirante projecto de reconstituir o defunto império soviético, o antigo agente do KGB deu ordem para abater civis inocentes. Por terem cometido este pecado: estavam numa pizaria muito frequentada, à hora da refeição. Ontem foram onze, na cidade de Kramatorsk, no Leste da Ucrânia - incluindo três adolescentes. Registaram-se mais de 60 feridos, vários dos quais em estado grave. Atingidos por um míssil russo.

Outro míssil de Putin. Outro crime de Putin.

Entre as vítimas, encontravam-se as irmãs gémeas Anna e Iulia Aksenchenko - que fariam 15 anos em Setembro. Já não festejarão o aniversário.

Mais dois nomes inscritos num extenso memorial de mártires. Mais nódoas de sangue no vasto cadastro de crimes da Federação Russa.

Tentar não rir

Paulo Sousa, 29.06.23

O Presidente da República afirmou ontem que os bancos centrais deveriam ter "muito cuidado naquilo que dizem publicamente".

Estou certo que os bancos centrais levarão em boa conta o aviso do nosso presidente e na próxima ocasião irão ponderar cada uma das palavras proferidas.

Quando se leva o poder da palavra para além do ponto de ebulição, essa é a consequência. Uma recomendação para se ter cuidado com o que se diz, faz a plateia rebentar de tanto rir.

marcelo.pngMiguel A. Lopes - Lusa

Vantagens das autocracias

Sérgio de Almeida Correia, 29.06.23

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Uma das grande vantagens de se viver num estado autocrático é que qualquer pessoa pode ver os escolhidos fazerem publicamente os seus cursūs honōrum, e confirmar que serão alçados a distintas figuras, o que lhes permitirá escrever e dizer publicamente os maiores disparates.

Serão então efusivamente apoiados, citados, aplaudidos, acenarão para as câmaras, e ficarão sem resposta, o que normalmente acontece em razão de todo o povo ter percebido, logo com a primeira decisão tomada, depois sucessivamente confirmada ao longo do seu percurso público, que não passam de destituídos.

Outra é que a ausência de resposta pública mostra que a maioria pode ficar sossegada em silêncio, fazendo figura de boi, com o que vai revelando a sua tolerância e compreensão para com a infelicidade alheia; no que também é visto pelos eleitos como manifestação de reverência e respeito.

São estas vantagens – mas há mais – que lhes permitem continuar a mostrar a sua valia, até ao final dos seus dias, sem que nada lhes aconteça, dando assim oportunidade a que a História o registe, a sua ciência se reproduza, e os outros, os que fazem de bois, alguns entre os verdadeiros e senhores bois, possam pastar tranquilos.

O António que me perdoe. O Monte do Pasto não devia ser no Alentejo. Lá só há bois a sério.

 

(P.S. Espero que os latinistas também sejam compreensivos para com quem tem de pastar)

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.06.23

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Eu: «A pedido de alguns leitores, lanço aqui uma nova série a partir de segunda-feira. Sugerindo um livro por dia até ao fim do ano. Como já tinha feito em 2012, por ocasião das feiras do livro de Lisboa e Porto - iniciativa que retomei em Maio e Junho de 2013, enquanto durou a Feira do Livro de Lisboa (a do Porto, lamentavelmente, não se realizou este ano, o que revela muito sobre a indigência cultural dos gestores políticos da cidade). Antes que alguém me faça a pergunta, fica desde já prestado o esclarecimento: todas as obras recomendadas - dos mais diversos autores, géneros e estilos - terão uma característica comum. Essa mesmo, que já adivinharam: são escritas na grafia pré-acordista - a que continua a ser seguida pela larga maioria dos portugueses, incluindo alguns dos mentores políticos do acordês, a quem devia aplicar-se a regra de São Tomás, mas invertida: não faças o que ele diz, faz o que ele faz.»

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 28.06.23

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Hoje lemos: Gabriel Garcia Marquez, "Amor nos Tempos de Cólera".

Passagem a L-Azular: “Ele ainda era muito jovem para saber que a memória do coração elimina o mal e engrandece o bem, e que graças a esse artifício conseguimos suportar o peso do passado.” Deveria ler-se: "Ele nunca deveria acreditar que existem outras memórias que não as do coração.  Viveria sempre numa bolha de felicidade onde não entrava o negativismo e a maldade."

Na verdade nós os humanos possuímos a estranheza de nos agarrarmos a memórias felizes, porque sem dúvida as temos, e mesmo sem pozinhos de perlimpimpim conseguimos elevar os espíritos e voar para além do saco de ossos que nos prende à terra. É isso que nos faz crescer como pessoas, ter a capacidade de regressar ao nosso eu e recuperar a perseverança.

(Imagem  Google)

O jornal "Público" vê-se grego

jpt, 28.06.23

Volta e meia leio algo publicado no "Público" - o "boletim da SONAE", como digo em dias mais mal-humorados, nos quais me interrogo, sem me dar resposta, sobre que interesse(s) terá aquele grupo económico para estas décadas de financiamento a um jornal com tamanho, e progressivo, viés político.  O apoio aos "poderes fácticos" (o PS, entenda-se) - sob o sempre reclamado cognome "jornalismo de referência" - é compreensível economicamente. E o acolitar do bloquismo terá tido causas também sociológicas, dada a atrapalhada adesão à coalizão m-l de feixes de uma geração letrada lisboeta pequeno-burguesa. Mas o mais recente coito dado aos constantes dislates do marxismo racializado, ecoando esta incessante tralha "decolonial" avessa à "branquitude" e papagueada entre nichos académicos desnorteados (sem Norte e nisso julgando-se pró-"Sul"), sitos nos eixos Campo Grande-Campolide e "do Choupal até à Lapa", será menos compreensível, advirá mesmo de causas internas à empresa, de um enquistamento ideológico na sua redacção. 

Muitos, crentes nessa tal entidade benfazeja "jornalismo de referência", negam tal viés. E escudam-se no pluralismo presente no jornal, lembrando ocasionais investidas sobre derivas mais esconsas nos poderes instalados e, acima de tudo, a presença recorrente de colunistas menos geringôncicos, dos quais o exemplo mais referido é João Miguel Tavares. Nisso não faltam à verdade, aquele ramalhete opinativo é orlado desse e de alguns outros nomes, constantes ou episódicos. Mas isso não obsta ao frenesim esquerdista encapsulado pela agenda socialista que comanda o jornal.

Enfim, avante. O viés do "Público" é notório e não justifica o tal epíteto "de referência". Não porque uma linha editorial política não se possa articular com qualidade. Mas porque o estratégico servilismo face ao poder político é o avesso dessa propalada valorização. Exemplo radical dessa agenda político-ideológica é o noticiar do processo grego. É certo que os directores do jornal vão mudando. E é também certo que há alguma diferença entre o contexto actual neste 2023 e o vigente em 2015, então ressaca da crise do final da década transacta e das políticas de austeridade que provocou. Ainda assim, muito se denota a essência do "Público" na comparação entre o relevo dado aos resultados das eleições legislativas gregas do passado domingo - enorme vitória do centro-direita - e o atribuído aos resultados de 2015. Quando o Syriza ganhou, Tsipras foi para o poder (cumprir as políticas europeias...), António Costa rejubilou, Varoufakis se catapultou como sex-symbol académico e best-seller e best-speaker.

Para quem ache que eu estou a exagerar deixo as capas dos dias subsequentes às duas eleições. E  nem faço análise aos conteúdos do que o "Público" foi noticiando sobre os dois processos eleitorais. Pois bastam estas duas imagens para demarcar mesmo o que é o tal "boletim da SONAE".

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(26 de Junho de 2023)

(26 Janeiro 2015)

Teme-se o pior

Pedro Correia, 28.06.23

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Todos os dias docentes universitários - quase sempre os mesmos - acampam durante horas nas pantalhas, perorando sobre a mais vasta gama de temas, da guerra soviética na Ucrânia às alterações climáticas, passando pela desflorestação da Amazónia e das pequenas peripécias da política doméstica. Tanto faz: qualquer coisa lhes serve de motivo para longa prelecção televisiva.

Ficamos mais sábios ao escutá-los? Não. Espantosamente, estes professores parecem pouco ou nada ter para ensinar. Alguns distinguem-se por falar português de forma deficiente, parecendo cópias de carne e osso do rudimentar Google tradutor.

Uma senhora com pergaminhos académicos proclamava há dias a intenção de se pronunciar com «accuracy» a propósito já não me lembro de que assunto. Confirmando que em certas universidades cá da terra o idioma dominante se tornou o crioulo luso-"amaricano". 

Outra, também com lugar cativo em estabelecimento de ensino alegadamente superior, dizia que «quaisqueres» garantias estariam a ser dadas por alguém, irrelevante para o caso. E um cavalheiro, igualmente docente universitário, assegurava que «vão haver» surpresas num futuro próximo.

Quando os professores falam assim, admira quase nada que os alunos passem o tempo a grunhir inanidades, sem conseguirem debitar três frases seguidas de modo inteligível. Oiço-os nos transportes públicos: em cada cinco palavras, dizem «bué»; em cada três, dizem «tipo». Quase sempre rematado com o onomatopaico «iá»

São as supostas elites do futuro. Estão a ser formadas por «quaisqueres» especialistas em ignorância de alto nível. Teme-se o pior.

A ponte 516 Arouca, passadiços, baloiços e afins

Ana CB, 27.06.23

Eu, pecadora, me confesso: já percorri a ponte 516 Arouca. E gostei da experiência. Quer isto dizer que sou fã de pontes suspensas, passadiços, baloiços e todas as demais infra-estruturas cuja intenção principal é apenas serem chamariz para o turismo? Claro que não. Devemos riscar do nosso mapa e votar ao esquecimento todos estes equipamentos que têm crescido que nem cogumelos um pouco por todo o nosso país? É óbvio que também não. A polémica está instalada e avoluma-se na proporção do aumento destes locais, que atraem cada vez mais atenções e pessoas. Não sou nem me considero tecnicamente habilitada para emitir juízos sobre o assunto. Apenas posso falar sobre o que vejo e sinto, e reflectir sobre o assunto. Que é precisamente o que vou fazer.

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Deixem-me, antes de mais, contar-vos como foi a minha experiência. Fim-de-semana combinado com amigas para ir conhecer Cinfães e uma parte da margem sul do Douro, o facto de nenhuma delas ainda ter ido aos passadiços do Paiva fizeram-nos decidir aproveitar a proximidade geográfica e reservar um dia para este passeio.

A ponte tem duas entradas, uma em Alvarenga e outra no Areinho, e optámos pela primeira porque a do Areinho obriga a subir (e depois descer, obviamente) a escadaria inicial de acesso aos passadiços, e no grupo há uma pessoa que tem uma certa fobia a descidas. Além disso, o plano era também ir depois provar o célebre bife de Alvarenga, uma sugestão à qual não consegui resistir – há já vários anos que evito comer carne de qualquer tipo, mas não sou fundamentalista e abro excepções quando estou em viagem, principalmente quando os outros pratos não me agradam por aí além; e constato, com muita pena minha, que continuo a gostar imenso de um belo bife de vaca. Mas adiante…

O carro ficou estacionado junto ao cemitério de Alvarenga, onde uma seta indica o acesso à ponte por um caminho pedonal que atravessa uma parte da aldeia e segue depois por um belo trilho de terra batida entre árvores.

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As entradas na ponte são com hora marcada, porque é preciso limitar o número de pessoas que acedem, e porque cada grupo leva um guia. As torres onde estão fixados os extremos da ponte são uns mamarrachos altos que desfeiam a paisagem, e só não é pior porque ao longe ficam meio escondidas pelas árvores, sobretudo a da entrada de Alvarenga.

No início, e também quando chegamos ao lado oposto, o guia dá algumas explicações sobre a ponte, a envolvente, e a fauna e flora da região. São explicações curtas e nada maçadoras, pois já se sabe que quem ali está quer mesmo é passar pela experiência sem ter de ouvir grandes dissertações. E atravessar a ponte é, de facto, uma experiência diferente de tudo o resto que podemos ver e fazer no nosso país. A paisagem é lindíssima, como não podia deixar de ser, com a Cascata das Aguieiras a despenhar-se pela encosta abaixo e as vistas sobre quilómetros da Garganta do Paiva de ambos os lados da ponte (e por baixo!), o rio a correr lá bem no fundo. Mas o que mais me impressionou foi mesmo a sensação de estar a uma grande altura tendo em volta um espaço completamente aberto e a perder de vista – quase como se estivesse a pairar. O gradeamento da ponte nem sequer nos chega aos ombros e não serve de grande bloqueador visual, e os cabos de suporte são praticamente invisíveis, mais ainda num dia em que o céu estava da mesma cor. A somar a isso, a ligeira vibração da ponte contribuiu para a impressão de que não estava a pisar chão firme, quase como se estivesse num barco.

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Depois de terminar a primeira travessia houve quem continuasse para os Passadiços, mas a maioria dos visitantes voltaram para trás pelo mesmo caminho, incluindo nós. Já tínhamos mesa marcada para o famoso bife, que não defraudou as expectativas. O restaurante, um dos vários que há na localidade, é grande mas estava a abarrotar, e havia fila de espera. Não creio que a maioria dos clientes estivesse ali por causa da ponte ou dos passadiços… Nós, portugueses, somos capazes de fazer dezenas (às vezes centenas) de quilómetros para ir comer qualquer coisa de especial que nos apeteça, só porque sim.

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A manhã tinha estado chuvosa, mas quando saímos do almoço o mundo estava diferente, sol brilhante numa tarde calma e quase sem nuvens. Aproveitámos para ir até Espiunca, onde deixámos o carro, e fomos percorrer passadiços durante três ou quatro quilómetros, voltando depois para trás. Um passeio muitíssimo agradável, relaxante, que me deu a oportunidade de ver o rio a uma outra luz, pois da primeira vez que os percorri (podem ler tudo neste post) o tempo estava chuviscoso.

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Já passei por algumas outras experiências “radicais”, mas atravessar a 516 Arouca foi na verdade diferente. Não estou a dizer que tenha sido a mais fantástica de todas – até porque me sentia incomodada com a chuva, que a certa altura caiu com alguma intensidade e começou a encharcar-me, apesar do impermeável. No entanto, embora já tenha cruzado outras pontes suspensas, esta foi de facto única no género, pelo menos até agora.

 

O que é que me levou a querer ir à 516 Arouca? Pois a curiosidade, está claro. De conhecer uma coisa nova, querer saber como é em vez de só ouvir pela boca dos outros, que cada um tem uma perspectiva diferente consoante a sua própria experiência. E, sobretudo, de querer pôr-me à prova, numa situação única e que não é, de maneira nenhuma, para todos. Não sou medricas, não tenho fobia de alturas, nem sofro de vertigens. Mas também não sou propriamente uma supermulher, e há situações que impõem respeito, ou mexem com os meus terrores de criança (e alguns de adulta…). Gosto de saber até onde consigo ir, conhecer os meus limites e tentar esticá-los mais um bocadinho. Já passei por situações que achei irem ser favas contadas e depois não foram, e por outras que pensei serem mais difíceis e ultrapassei sem grandes problemas. É com estas experiências que me vou conhecendo melhor.

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Aqui há uma meia dúzia de anos, descobriu-se que o turismo podia ser uma galinha dos ovos de ouro para Portugal. Acontece que o turismo é um “produto” com tantos outros e, nos tempos que correm, para vender há que apostar no marketing. Se os primeiros passadiços de madeira instalados no nosso país tinham como finalidade proteger os cordões dunares da nossa costa, não tardou muito até que alguém percebesse que seriam também uma forma de tornar acessíveis às pessoas comuns, para fins de lazer, zonas que habitualmente exigiam algum nível de agilidade para serem visitadas, bem como outras de acesso praticamente impossível. Quase de um dia para o outro, passámos a poder andar, correr ou pedalar em áreas de floresta, ria, pântano, areia, rocha, e tudo o mais que as edilidades autárquicas se têm lembrado de aproveitar para atrair visitantes aos seus territórios. Nalguns casos, a madeira veio substituir ou alternar com trilhos de terra batida pré-existentes, noutros simplesmente criou percursos novos onde apenas havia terra ou água.

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A fórmula resultou: portugueses e estrangeiros aderiram em massa a estas novas oportunidades de estarem mais facilmente em contacto com pedaços de natureza que até então lhes estavam praticamente vedados, e muitas localidades desconhecidas (ou quase) começaram a florescer com este aumento de atenção. Mais gente significa mais cafés, mais almoços, mais dormidas na região, mais uma “lembrança” que se compra. Mas também significa mais barulho, mais intrusão, mais lixo, mais impacto ambiental. Negativo, ou nem tanto? Fizeram-se estudos antes de tomar as decisões? Segundo o que tenho lido, parece que não – e também parece que não estão a ser avaliadas quaisquer potenciais alterações que tenham ocorrido ao longo dos anos de utilização de várias destas estruturas.

Se resulta bem para uns, então também deve resultar bem para outros, e as “modas” pegaram. Primeiro foram os passadiços. Com o sucesso dos do Paiva (que, dizem os ambientalistas, não faziam falta nenhuma), começaram a surgir estruturas no género em tudo quanto é sítio – alguns nem sequer são passadiços propriamente ditos, são apenas escadas de madeira absolutamente redundantes, como é o caso, por exemplo, dos que instalaram nas Fragas de São Simão, que nada vieram acrescentar a não ser poluição visual, pois os acessos à praia fluvial já eram mais do que suficientes. Pelo contrário, aumentaram a pressão humana num local idílico, que já foi relativamente tranquilo e agora fica apinhado de gente mal o tempo aquece. Também os passadiços que estão (ou estiveram, porque a obra foi parada a meio e, tanto quanto consegui perceber, ainda não foi concluída) a ser construídos junto ao Pulo do Lobo, perto de Mértola, não fazem grande sentido num local que sempre foi de fácil acesso a partir de qualquer das margens. E estes são só dois exemplos.

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Depois foram os baloiços. Aos dois ou três mais antigos, juntaram-se recentemente tantos que já lhes perdi a conta. Embora não tenham o impacto ambiental dos passadiços, como são “instagramáveis” por natureza acabam por atrair hordas de pessoas ao local onde estão instalados – e quem diz pessoas diz carros, como é óbvio, e a consequente poluição. Alguns estão em sítios onde já existiam outras infra-estruturas de lazer, e por isso acabam por não fazer grande mossa, mas outros foram colocados em locais onde não há mais nada a não ser beleza natural.

Entretanto chegaram as pontes. As notícias da inauguração da 516 Arouca correram mundo (e a polémica de ser ou não a mais longa do mundo não a prejudicou, antes pelo contrário – é aquela coisa de não importar se dizem bem ou mal, o que interessa é que falem…) e visitantes não faltam, apesar das queixas do preço elevado (pode ser caro para o nosso nível de vida médio, mas para qualquer estrangeiro será uma pechincha). A ponte vem até insuflar vida nos próprios passadiços, que já têm demasiada concorrência. As torres estragam a paisagem, é verdade, mas a ponte em si, vista de longe, pouco se nota. Sobre o custo e o facto de alegadamente ter sido feita com dinheiros públicos, que poderiam ter sido usados para outro tipo de investimento, penso que é uma questão que deveria ser bem esclarecida e discutida. Com o sucesso da 516 fica uma porta aberta para que outras estruturas no género comecem a aparecer. E será que fazem falta? Esta é, quanto a mim, mais uma matéria discutível e que não deve ser apenas analisada do ponto de vista do turismo.

 

Devemos então pôr completamente de lado este tipo de infra-estruturas turísticas? Ou, indo mais longe, o turismo será mais nocivo do que vantajoso? Como é óbvio, não tenho qualquer idoneidade para dar uma resposta cabal as estas questões. Mas podemos olhar para o que é feito noutros países, seja de bom ou de menos bom, e tirar algumas conclusões. Bons e maus exemplos não faltam por esse mundo fora. O que pode eventualmente faltar é o discernimento para distinguir entre o que é apropriado para determinados lugares, e o que é exagero e mero exibicionismo.

Será que os benefícios económicos do turismo têm sempre como contraponto desvantagens ambientais e uma descaracterização cultural? Não forçosamente. Tudo depende, como é evidente, de como se olha para esta fonte de rendimento, dos limites que são (ou não) impostos ao seu desenvolvimento, e da forma como são geridas as questões mais complexas que o seu incremento sempre levanta. Bons exemplos há muitos. Organismos e associações regionais que optam por incentivar a continuação de modos de vida e de produção mais tradicionais (em vez de orientarem a maioria das pessoas para profissões padronizadas, como a restauração ou a hotelaria). Reinvestimento de lucros em soluções ambientalmente mais sustentáveis, tanto por parte de entidades privadas como públicas. Ou projectos que juntam a observação da vida selvagem com a sua conservação. Há muitas maneiras de levar a água ao moinho e fomentar o turismo sem desvirtuar o que já é positivo.

O turismo (e sobretudo a sua massificação) é, de facto e em muitos casos, fonte de grandes e variados problemas. Mas pode também, se “utilizado” de outras formas, fazer parte da solução. Independentemente do que nos é oferecido e da forma apelativa como essa oferta é feita, podemos sempre pesar os prós e os contras das nossas opções quando viajamos, e adoptar princípios e condutas que sejam menos danosos para o nosso mundo ou mesmo, idealmente, que contribuam para um desenvolvimento ponderado dos lugares que visitamos.

Mas voltando à questão mais comezinha que deu origem a este texto. Se por um lado é possível compreender o entusiasmo com que no nosso país actualmente se divulgam e acolhem todas as “novidades” turísticas que têm vindo a surgir nos últimos anos (mais ainda agora, quando toda a gente ficou sequiosa de voltar a usufruir de uma liberdade total), por outro lado parece-me ser importante – e antes que este frenesim descambe e depois seja mais difícil contê-lo – reflectir e ter algum espírito crítico em relação ao que está, ou não, a ser feito, e como está a ser feito.

Não é preciso cair no exagero de encarar pontes suspensas, passadiços, baloiços e afins como obras demoníacas, nem o turismo como um pecado, mas é de todo aconselhável ter a noção de que as nossas escolhas quando viajamos têm sempre algum impacto no mundo que nos rodeia.

 

(Adaptado de um post no blogue Viajar Porque Sim)

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