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Delito de Opinião

Vítimas, assassinos e jornalismo

Cristina Torrão, 02.04.23

Através do facebook, tive conhecimento de uma news-letter de Bárbara Reis, no Público, no passado dia 29. Dizia ela:

Li há anos, num ensaio sobre como os media devem noticiar os assassínios em massa, que uma técnica simples a usar – e o jornalismo é sobretudo técnica – é falar o mínimo sobre o assassino e o máximo sobre a vítima.

(...)

Os defensores desta técnica pedem para os media não publicarem sequer o nome do assassino, muito menos a sua fotografia. Por contraste, dizem que devemos falar sobre as vítimas, contar as suas histórias, prestar-lhes homenagem, celebrarmos as suas vidas.

Isto vem, claro, a propósito do ataque no Centro Ismaili, em Lisboa, no passado dia 28.

À primeira vista, esta parece ser a técnica ideal. Sabemos como o destaque dado, pela comunicação social, a assassinos deste tipo, causa fascínio em certas pessoas. Tanto fascínio, que o perigo de imitação é real, já por várias vezes aconteceu.

Por outro lado, não devemos aceitar a alternativa de ânimo leve. Pergunto-me quanto destaque dado às vítimas será legítimo. Contar as suas histórias? Muitos dos familiares não desejam ver as vidas dos parentes mortos devassadas. Causa-me bastante impressão os jornalistas irem pesquisar sobre as vítimas e publicarem os resultados, sem autorização dos familiares mais próximos. Ao mesmo tempo, pedir a autorização, num momento de luto pesado, não é sustentável, do ponto de vista ético. Pais e mães que acabam de perder um filho ou uma filha, por exemplo, não estão em condições de lidar com o assédio de jornalistas, tendo de decidir o que deve ser, ou não, publicado. Tenhamos em mente que o facto de se ser vítima de um crime hediondo não faz de ninguém santo, tão-pouco cidadão exemplar. Todos nós temos aspectos da nossa vida que não gostaríamos de ver expostos publicamente.

E como agir em casos de assassinatos em massa, como o foi o da Noruega, há vários anos, no qual foram mortas setenta e sete pessoas (e feridas 319) em Oslo e em Utøya? Contar as histórias de todas as vítimas tornar-se-ia fastidioso, o que acabaria por ter o efeito contrário, ou seja, causaria a indiferença do público. (A propósito deste caso, é interessante verificar que, na sua news-letter, Bárbara Reis, defensora desta técnica de nem sequer se publicar o nome do assassino, acaba por o fazer em relação ao norueguês).

Trata-se de uma questão polémica, quanto a mim, sem solução fácil. É verdade que não se devia dar tanto destaque aos assassinos, tornando-os famosos e aliciando mentes mais frágeis. Contudo, das vítimas, a meu ver, basta saber o nome, a idade e a profissão. Mais do que isso, só mesmo por iniciativa dos parentes próximos. Há quem goste de contar as histórias dos seus mortos (contra o qual nada tenho a apontar, pois pode ajudar no luto). Mas isso não se aplica a toda a gente. E, quando acontece, costuma ser mais tarde, não no momento do choque.

Meio capitalismo

Luís Naves, 02.04.23

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O 'liberalismo' das nossas instituições, nomeadamente em Bruxelas, consiste em acabar com a concorrência e criar grandes grupos económicos. Esta é a história dos últimos vinte anos, mas vai acelerar. Será subsidiada a produção de chips (um exemplo), canalizando dinheiro dos contribuintes para empresas multinacionais lucrativas, que depois vendem os chips para aumentarem os seus lucros. Isto é feito em nome da segurança das nações e em violação do mercado único. Uma espécie de socialismo só com a parte dos subsídios. A transição verde também está a ser subsidiada, para depois as empresas (por exemplo, de hidrogénio verde) venderem energia ao preço de mercado. No fundo, será socialismo na fase de arranque, liberalismo na segunda fase. Nem é preciso referir o caso do salvamento dos bancos, dos investimentos nas indústrias militares ou da concentração empresarial no sector da aviação. O que se está a passar no capitalismo é estranho, trata-se de acabar com os pequeninos, subsidiar fortemente os fortes, criar um sistema de rendas.

imagem criada por Dall-e, com instruções mínimas

Pensamento da semana

Ana CB, 02.04.23

Viajar é, à partida, um bom antídoto contra a intolerância. Falo, é claro, das viagens mais imersivas, onde se contacta com a cultura e o modo de vida de cada local (e não de uma mera estadia num qualquer resort blindado contra a realidade que o rodeia). Mas viajar também cria por vezes em mim – como mulher, portuguesa, europeia, e produto do século XX – sensações de incompreensão, frequentemente associadas às de impotência.

Incompreensão ao constatar como o mundo parece girar a velocidades diferentes consoante a cultura em que estamos, como a pobreza corta (ou serve de desculpa para cortar) o acesso à educação mas não aos modelos de smartphone mais recentes, como a vaidade exterior consegue coabitar com o desleixo, o lixo, e até mesmo a falta de compaixão. Impotência por perceber que mesmo quando nos exprimimos numa língua comum, o fosso que me separa desses outros é tão grande que sou olhada como se falasse uma língua diferente, talvez alienígena, e não há entendimento possível.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 02.04.23

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José António Abreu: «Por que motivo, em comparação com o que sucedeu nos Estados Unidos, tão poucos bancos encerraram na Europa desde o início da crise financeira? Devem os bancos europeus continuar a ser salvos com dinheiro dos contribuintes ou deve a solução encontrada para Chipre ser alargada a outros países? Este artigo, na edição online em inglês da Der Spiegel, ajuda a perceber que não há respostas fáceis.»

 

José Gomes André: «Estamos perante um discurso político, social e económico que combina as inanidades de livros como "O Segredo" ("tu podes ser quem quiseres") com a profundidade da reflexão filosófica de um Zézé Camarinha. O pior de tudo isto? É que este discurso tem tanto de disparatado quanto de perigoso. Denunciá-lo já não é uma simples questão de bom-senso; é um dever de todos os homens civilizados.»

 

Eu: «Ouvido ontem, por feliz acaso, da boca de uma personagem feminina numa telenovela brasileira: "A mulher gosta de sapatear na cara das outras. Por isso tem que colocar uma roupa chamativa p'ra ela poder se sentir, se ver, pegando um gato e arrasando pr'às outras mulheres."»

Leituras

Pedro Correia, 01.04.23

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«As promessas custam menos do que os presentes e valem muito mais. Nunca se dá tanto como quando se dão esperanças.»

Anatole France, A Ilha dos Pinguins (1908), p. 108

Ed. Europa-América / Bibliotex, 2003. Tradução de Sampaio Marinho. Colecção Prémio Nobel Diário de Notícias

Resistência em alemão (12)

Cristina Torrão, 01.04.23

Alfred Delp

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Imagem daqui

Alfred Friedrich Delp nasceu a 15 de Setembro de 1907, em Mannheim. Era o mais velho de seis irmãos, mas, à altura do seu nascimento, os pais não eram casados e Alfred nasceu num lar de grávidas, pertencente à Ordem dos Jesuítas, onde foi igualmente baptizado. A mãe era católica, mas o pai era luterano. Acabaram por casar catolicamente e o pai, Johann Delp, teve de assinar uma declaração, onde se comprometia a deixar baptizar e educar as crianças que adviessem do seu casamento na Igreja Católica.

Esta promessa, porém, não foi cumprida, pois o casal foi viver com os pais protestantes de Johann Delp e a avó, orgulhosa da sua herança luterana, educou os netos na sua religião. Os conflitos na família eram constantes. Alfred chegou a fazer a “confirmação” (comunhão protestante), mas, depois de uma discussão com o pastor luterano, fez a primeira comunhão e recebeu o crisma.

Assim que acabou o liceu, Alfred Delp ingressou na Ordem dos Jesuítas, onde fez a sua formação superior. Foi ordenado padre em 1937 e colocado numa paróquia de Munique. Escrevia para a revista dos Jesuítas alemães, Stimmen der Zeit (Vozes do Tempo) que, desde a sua fundação, em 1865, se ocupava do papel da Igreja Católica na sociedade. Os artigos de Alfred Delp versavam sobre uma sociedade baseada nos princípios cristãos. A revista foi proibida pelos nazis, em Junho de 1941, só tornando a poder ser publicada em Outubro de 1946.

A partir de 1942, Alfred Delp começou a colaborar com o “Círculo de Kreisau” (Kreisauer Kreis), um movimento crítico do regime nazi, dirigido pelo conde von Moltke. O “Círculo de Kreisau” tentava desenvolver um modelo de sociedade depois do colapso do nazismo. Com a sua participação, Alfred Delp pretendia reforçar a orientação cristã na Alemanha a reconstruir.

O “Círculo de Kreisau” tinha contactos com os envolvidos no atentado a Hitler, de 20 de Julho de 1944, e, apesar de não estar envolvido nestes planos, Alfred Delp foi preso, cerca de uma semana mais tarde, ao terminar de rezar a missa matinal, na igreja de São Jorge, em Munique. O Tribunal reconheceu a sua inocência em relação ao atentado, mas a sua participação no “Círculo de Kreisau” e a sua acção social como padre Jesuíta foram suficientes para o condenar à morte por enforcamento. A Gestapo chegou a propor-lhe a libertação em troca do seu abandono da Ordem dos Jesuítas, mas ele recusou.

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Alfred Delp no julgamento que o condenou à morte

Numa carta escrita na prisão, Alfred Delp dizia:

«Não sei quanto tempo tenho de esperar, nem sequer se serei executado. Daqui ao cadafalso de Plötzensee são apenas dez minutos de carro. Só nos informam pouco antes, só no próprio dia nos dizem: chegou a tua vez (…) Esforçar-me-ei por ser semente fértil, neste chão, para todos vocês, por este país e por este povo, a quem pretendi servir e ajudar» (tradução minha, do alemão).

Alfred Delp foi executado a 2 de Fevereiro de 1945. A caminho do cadafalso, disse ao confessor prisional: «Daqui a momentos, saberei mais do que o senhor».

O seu nome foi dado a inúmeras ruas, escolas, liceus, colégios, lares estudantis, casas paroquiais e centros de convívio juvenis. A conferência episcopal alemã incluiu-o no Martirológio do século XX.

Os pensamentos de Alfred Delp, principalmente, os escritos na prisão, foram reunidos em livros e alguns deles estão traduzidos, pelo menos, em inglês. Escreveu muitos desses papéis algemado, pois, além de ser regularmente torturado, havia alturas, em que, durante semanas, não lhe tiravam as algemas, nem para dormir, assim como não lhe apagavam a luz na sua cela.

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«Pensámos apenas. Vamos ser executados, porque pensámos juntos. Se isto não é um reconhecimento!»

(Wir haben nur gedacht. Wir werden gehenkt, weil wir zusammen gedacht haben. Wenn das nicht ein Kompliment ist!)

Lápis L-Azuli

Maria Dulce Fernandes, 01.04.23

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Hoje Lemos: Raymond Chandler – O Longo Adeus

Philip Marlowe: “Álcool é como o amor. O primeiro beijo é mágico, o segundo é íntimo, o terceiro, mera rotina. Depois disso, despe-se a rapariga.”

Passagem L-azulada. Alvitre de relações pré-conjugais. Deveria ler-se “olharam-se tímidos e após um breve beijo na face, caminharam lado a lado, com um sorriso ladino nos lábios, de cabeça baixa a contemplarem a própria sombra. Acabaram por sentar-se na penumbra de um cafezinho triste, onde tomaram um galão pingado (porque o café é quase tão estimulante e tóxico como o álcool) e comeram meio papo seco com manteiga cada um.” Muito seco, cogitou Marlowe. Deve ser de cedo da manhã, ou de ontem talvez, que a vida não está para deitar as sobras fora, ou fora apenas desapontante por Marlowe ser grande apreciador de vianinhas.

(Imagens Google)

Riscos

Luís Naves, 01.04.23

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A adoração do dinheiro é a mola da sociedade contemporânea. Estão a ser publicados numerosos artigos sobre o que se sabe das novas tecnologias de inteligência artificial (IA) e é citado um estudo segundo o qual 10% dos cientistas envolvidos no desenvolvimento da IA consideravam possível que estes programas acabassem por destruir a humanidade. No New York Times, um autor (David Wallace-Wells) colocava a seguinte questão: quantas pessoas embarcariam num avião se soubessem que tinham 10% de probabilidades de morrer? O que sabe é que a tecnologia digital está a ampliar as diferenças de rendimento e há receios de que a IA provoque uma calamidade nos empregos ligados ao conhecimento. Um estudo da Goldman Sachs dizia que 18% do trabalho pode ser automatizado, o que implica 300 milhões de trabalhadores redundantes. Há ainda avisos como este, com Elon Musk entre os signatários. O que leva empresas a investir numa tecnologia tão arriscada? Isso talvez seja explicado pela natureza humana. Estamos dispostos a apostar a própria existência e, no entanto, para além dos perigos, isto tem possibilidades fantásticas: a ilustração em cima foi feita por uma IA, Dall-e, com escassas instruções.

Desvarios do "nosso" jornalismo

João Pedro Pimenta, 01.04.23

Não resisto a este desvario do nosso jornalismo: a dada altura do jogo entre o Luxemburgo e Portugal, no último Domingo, que acabou com meia dúzia de "secos" infligida à equipa do grão-ducado, saiu um jogador luxemburguês com uma tatuagem de uma ave no pescoço. O comentador televisivo, de imediato, afirmou que era um sinal de pertença usar uma tatuagem "da águia do Luxemburgo".

Pena é que o símbolo do Luxemburgo seja um leão rampante e que a ave da tatuagem fosse uma coruja. É o que acontece quando os comentadores desportivos decidem encher chouriços durante a partida, desatando a inventar. Qualquer dia surge um jogador sportinguista com uma tatuagem de uma andorinha e há de aparecer alguém a referir-se à "águia do Sporting".

 

 

Ah, e claro, também houve isto. Se não conseguirem ver, é a página de Facebook de Ribeiro e Castro em que ele mostra uma reportagem na RTP-3 em que o ministro do Interior francês se refere à violência de grupos de "extrême gauche" e nas legendas aparece "grupos de extrema-direita". Julgo que podemos falar num pequeno finis hebdomadis horribilis ("fim de semana" em latim macarrónico) para o jornalismo português.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 01.04.23

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José António Abreu: «Nos transportes públicos a tristeza das pessoas torna-se óbvia. Nos veículos ligeiros é com frequência a agressividade que assoma. Não admira que tanta gente, nas cidades onde isso é fácil, use a bicicleta.»

 

José Navarro de Andrade: «Ao passo que por cá politólogos e comentadores (uma infestante autóctone) competem vivazmente por minutos televisivos em que possam derramar as sua opiniões, palpites e profecias, distinguindo-se uns dos outros somente pelo grau de azedume e pelo nível de pesporrência, noutras longitudes, parece incrível, prevalece a análise em vez da diletância e a feroz competição pelo "acesso" mede-se pela qualidade com que se extrai inteligência do "big data".»

 

JPT: «Páscoa na África do Sul. "Deitado abaixo" por uma qualquer maldita gargantite, a pior de que tenho memória adulta. Impediu-me este manso mas magnífico trilho, a do Santuário de Elefantes de Hazyview. Fui apenas cocheiro da princesa e da rainha, e da sua magnífica companhia.»

 

Teresa Ribeiro: «O que ele [José Sócrates] espera é que a sua caminhada triunfal desemboque numa sinecura à medida da sua ambição e vaidade. E a verdade é que tem tudo para conseguir os seus intentos. A desorientação e desesperança dos portugueses, a ambivalência dos opinion makers, que tanto criticam o que fez, como lhe elogiam o estilo, a cacofonia dos media, que seguem sempre o cherne que mais brilha na pantalha e o desgaste do poder.»

 

Eu: «É um sinal dos tempos. Nesta era de feroz individualismo, o intelectual regressa à torre de marfim. Ou imita aqueles distraídos xadrezistas de Bizâncio, de olhos concentrados no tabuleiro enquanto a cidade ardia. Compreende-se: é mais cómodo ser assim. Depois da intervenção cívica, a demissão cívica. E, no entanto, a Terra move-se.»

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