Caso do dia
Entre divertido e pasmado, o país assistiu hoje a uma novela reles: um secretário de Estado, a mando do ministro Santos, lavrou um despacho que põe fim à querela de 50 anos sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa, optando por uma solução que o PM não subscreve, ou talvez venha a subscrever se o “líder” da Oposição e o PR com ela vierem a concordar; o PM desautorizou o ministro e, em vez de despedir o subordinado, veio dizer que mandou anular o despacho e que se dá por satisfeito com as explicações – aquilo foi um inconseguimento de comunicação; o ministro veio publicamente pedir desculpa e dar umas não-explicações abjectas; e o PR, ao fim do dia, balbuciou perante as câmaras da televisão umas vacuidades que adensaram a rodilhice.
Os comentadores, perplexos, tentaram com denodo ver algum sentido político nesta garotice: que Santos queria sacar um ás de trunfo para a sua mão de candidato a novo líder do PS, dentro ou fora do Governo, dando uma imagem de homem decidido; que Costa anda pelo estrangeiro a ver se encontra um lugar onde possa pôr a render os seus préstimos de troca-tintas (o que é pudicamente descrito, geralmente, como habilidade política) e que Santos ignorou, como era justo e previsível, a autoridade da lugar-tenente primo-ministerial, a discreta Mariana.
A hipótese de Costa, por ser o mais brilhante demagogo que o regime já produziu mas não albergar qualquer sentido de Estado discernível nem real capacidade de, no que toca ao aeroporto ou a qualquer outro assunto, fazer escolhas que se traduzam no bem comum, que confunde com a sua sobrevivência enquanto político de sucesso; de Santos ser apenas um irresponsável que, à boleia dos seus dotes de orador inspirado, e cavalgando a costela revolucionária e de esquerda que o PS cultiva numa das suas alas, fez carreira acumulando os disparates que diz, e as tolices que agora tem meios de fazer; e de Marcelo não fazer parte da solução para coisa alguma, nem aliás de nenhum problema por não ter estatura para pôr sombra no mundo – não lhes ocorreu.
E por isso um ou outro foi insinuando que em tudo isto talvez haja interesses obscuros, desde logo o comezinho de, face à escandaleira, se ter subitamente deixado de falar do SNS em pré-colapso, e do BCE que vai ser obrigado a apertar-nos o gasganete. Talvez. Uma obra pública que envolve milhares de milhões sem interesses obscuros seria um obsceno desprezo das nossas tradições, e realmente quando há escândalos que evidenciem os desastres da governação socialista costumam aparecer querelas de lana-caprina para a gente se distrair.
Resta que, não havendo mais do que a grande barulheira que se vai previsivelmente fazer nos próximos dias, o momento é tão bom como outro qualquer para um não-lisboeta, nem socialista, nem portador de qualquer outra deficiência, reflectir sobre o novo aeroporto, para dizer que:
É estranho que se dê como adquirida a necessidade deste colossal investimento, por duas razões: uma é que várias zonas de Lisboa já parecem um parque de atracções com o afluxo actual de turistas. Isto tem sido positivo para a cidade e, reflexamente, para o país. Mas conviria perguntarmo-nos se a demasia não matará a galinha dos ovos de ouro: quantos mais turistas é que a cidade pode comportar sem se descaracterizar completamente?
A outra é que os investimentos em Lisboa são normalmente apresentados como sendo de interesse do país, que por isso também os suporta como se deles beneficiasse tanto como dos directos na “província”. Mas das duas uma: ou a macrocefalia é indesejável e como tal não deve ser incentivada; ou Portugal é sobretudo Lisboa e conviria deixar de falar na interioridade, e no combate à desertificação, e na regionalização, e naquelas outras coisas que as pessoas profundas costumam referir desde que, há muito, passou de moda falar do pauperismo.
Depois, se mesmo assim se quiser entender que foi apenas por característica inoperância que em 50 anos não se decidiu nada, e não por falta de meios, o terrorismo dos técnicos, cujas opiniões não podem ser discutidas por quem não o é, deve ser contemplado com desprezo: se as opiniões meramente técnicas nos habilitassem a saber qual é a melhor solução, todos diriam a mesma coisa. Não se decidiu nada é como quem diz, que a aeroporto de Beja aí está para provar, se fosse preciso, que os elefantes brancos costumam ser bem vistos por prestigiados entendidos, que tendem a ver tudo menos o óbvio.
Mas não dizem todos o mesmo, sendo que concluem assim ou assado consoante as variáveis que contemplam nos seus modelos de raciocínio. E nada, absolutamente nada, autoriza a supor que simples leigos não podem incluir outras que infirmam as conclusões a que chegaram – não há, infelizmente, soluções óbvias nem nenhum estudo pode incluir todas as externalidades relevantes.
Se eu fosse lisboeta, e achasse desejável var a cidade como um zoo cheio de sol, formigueiro de turistas loiros e reformados com pouco dinheiro, todos à procura de um tipicismo aliás adulterado, achava bem o novo aeroporto. E olharia para Santos com simpatia: ora aqui está um socialista que dá murros na mesa e não perde tempo com frescuras.
Mas não sou lisboeta nem acho que o voluntarismo a consumir milhões por quem ignora os mecanismos da criação de riqueza (Pedro Nuno tem obra na TAP e na CP, ambas a demonstrar o ponto) seja bom conselheiro.
De modo que o passo em falso do ministro talvez possa ser o que de melhor já fez. Se, o que não é certo, se tiver suicidado politicamente.