Conto, não conto? Conto:
As pessoas que estão na terceira idade, hoje, fazem análises periodicamente e no caso de algum desarranjo o clínico geral endossa o problemático para o especialista, o qual prescreve outros exames.
Convém navegar no meio da classe médica com alguma prudência, que o cidadão desprevenido não tem. Fácil é uns exames originarem outros e todos os males se tratarem com comprimidos. Tanto que hoje nas mesas dos restaurantes onde se senta gente que já teve muito cabelo, ou que ainda o tem mas branco, figura, ao lado do telemóvel, a inevitável caixa das pílulas – para o colesterol, a tensão alta, o ácido úrico, a ureia e mais dezassete não sei quês.
Não pouco conviva enuncia com gosto os seus valores do colesterol bom, e da creatinina, da ferritina, da ureia e outros igualmente obscuros; o PSA, então, é um must. E daqui decorrem as diversas propriedades benfazejas de algumas abominações que as pessoas comem porque fazem bem a qualquer coisa, como a detestável alcachofra, cujo principal função é servir de desculpa para as quantidades pantagruélicas de bacalhau, vitela, orelheira e fígado de que as mesmas pessoas consoladamente se atocham.
Os abusos, desde que não excedam demasiado os limites do apetite para entrar com descaramento nos da gula, têm a minha bênção porque a seguir os ditames médicos toda a gente viveria num imenso hospital com um grande recreio para exercício físico, excepto os próprios facultativos, que bem os vejo a entupirem-se de dobrada, empurrada a copadas de tinto. E seria uma positiva evolução social se toda a gente cessasse de ler estudos que provam, sem margem para dúvidas, que em fazendo isto e aquilo, sobretudo exercício, e comendo ou nada ou verduras dessoradas, se garante a vida eterna ou, vá lá, um depósito numa instituição da terceira idade, para efeito dos abusos do pessoal, prepotência dos donos do estabelecimento e esquecimento das autoridades e dos familiares.
De modo que gente sensata, isto é, que tem bom senso mais do que senso comum, trata os médicos como os consultores que eles julgam que não são, e dá-lhes apropriado desconto. Boa parte do que dizem não é a mesma coisa que, para os mesmos achaques, diriam há 20 anos, ou dirão daqui a outros 20. E, então e agora, quando não sabem resolver um problema atribuem-no a vícios ou desvios de comportamento, os grandes maganões.
Alguma coisa porém fica de cuidados. E foi o caso que a mim me recomendaram uma ressonância a uma determinada víscera que dá mostras de ter tomado o freio nos dentes, e que por isso tem sido objecto de uma vigilância verdadeiramente pidesca.
Vamos lá, então. Marcado o exame, em Braga, numa clínica prestigiada, foi-me dito pela funcionária que deveria pôr um microlax – era naquele quarto-de-banhozinho mesmo ao lado. Examinado o cubículo, não vi nem chuveiro nem bidé, pelo que pedi um que tivesse uma coisa ou outra. Sem entrar em excessivos detalhes, digamos que o papel higiénico tem o grave defeito, a meu ver, de não merecer o adjectivo, que apenas adquiriu por ser herdeiro dos antigos recortes de papel de jornal, em relação aos quais foi efectivamente um progresso, tendo todavia entretanto intervindo outro maior, que foi a água corrente, a utilização liberal do sabonete e a invenção do bidé por algum ignoto empreendedor de génio.
A moça encarou-me surpresa – aparentemente os pacientes são-no também adjectivamente, sujeitando-se a toda a sorte de pequenos deslizes, mesmo em estabelecimentos caros – informando que ia chamar uma técnica, “para me explicar”.
Fui dizendo que não carecia de uma técnica para me explicar como me lavar, e entretanto a especialista chegou, tendo de lhe cortar os detalhes ominosos sobre a forma como funcionava o minúsculo microlax para esclarecer os reais contornos do problema.
Fitaram-me espantadas. E como não vissem maneira de resolver o problema dei-lhes parte, com recomendação de que a fizessem chegar à gerência, da minha opinião segundo a qual só os ingleses, os franceses, os venezuelanos e os porcos é que não usam aquelas louças sanitárias. Após o que saí, furibundo, porta fora.
Há uma história e sempre, comigo, uma moral, a primeira verídica e a segunda discutível. Esta última é, para mim, que o elevador social é uma coisa óptima e que ainda bem que médicos há muitos e boa parte deles tem a educação que os pais não puderam ter. Mas não seria mau se esquecessem alguns hábitos contraídos na juventude, exercitando o raciocínio crítico que lhes permitisse concluir que a higiene íntima não pode consistir apenas na lavagem das mãos.
Para o diabo que carregue a clínica e as meninas – são com certeza da geração mais bem formada de sempre, que tende a diferenciar-se das anteriores sobretudo por ter internet e arranhar inglês. Vou a outro sítio, certificando-me antecipadamente que não vou tropeçar em chiqueiros.
O meu companheiro do passeio da tarde é pessoa melhor de assoar, mas também tinha uma história para a troca: tinha uma consulta (de dermatologia) marcada num hospital privado da terra, lá foi, e puseram-no de seca por três quartos de hora, sem explicações. Foi à recepção, exigiu a devolução do dinheiro da consulta, paga antecipadamente, e deu à sola. Indignado, perguntou: Que achas?
Eu tenho por hábito achar coisas e inventei para a ocasião uma tese, que passo a expor: O SNS é hoje o serviço dos pobres e dos acidentados – quem pode vai ao privado. Daí o sucesso deste: as pessoas não podem esperar meses (ou anos) em assuntos de saúde, querem ser atendidas com a urgência que a medida das suas aflições requer, mesmo que isso implique sacrifícios.
Mas aqui intervém o factor cultural: o pessoal e os dirigentes, quando o seu passadio e a sua sobrevivência profissional estão garantidos, comportam-se como funcionários públicos. A garantia de um bom serviço é a concorrência e o aguilhão da necessidade, ou então uma consciência profissional que não está na nossa tradição. Queres ser atendido a tempo e horas? Só se houver hospitais que corram o risco de falir.
Quando tiver feito o exame, e constatando que está tudo bem, direi coisas boazinhas. Se da visita do banana Guterres a Moscovo tiver resultado algum bem, talvez diga bem do homem.