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Delito de Opinião

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.03.22

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Ana Vidal: «Da minha língua vê-se as consoantes mudas, os hífenes e os acentos. Porque da minha língua se vê o mar.»

 

Bandeira: «A Cioran, o homem que elevou o pessimismo à categoria de arte, perguntaram certa vez por que razão, se a vida lhe era assim tão insuportável, não acabava com ela de uma vez por todas; ele respondeu, com o habitual pessimismo, que “do outro lado” era capaz de ser ainda pior.»

 

Ivone Mendes da Silva: «É Eleonora recém-chegada e tudo nela prenuncia o outro retrato em que a segurança da senhora de Florença atingiu a sua plenitude. O vestido é de um encarnado belíssimo, bordado a bouclé de ouro, e no encaixe dos ombros dispõem-se geometricamente pérolas que Eleonora também usava nos brincos, na rede que prendia o cabelo. Bronzino gostava de pintar as mãos à altura do peito: as mãos esguias com anéis pesados, até parecem ali estar casualmente, quando nada é casual nestes retratos.»

 

João Carvalho: «É raro um transporte levar gente mais à frente do que o motorista...»

 

José António Abreu: «O Sr. Marques encontra-se agora sentado na zona dos restaurantes, cansado de tanto raciocínio – mas não de observar as pessoas. Numa mesa próxima, uma pessoa do sexo feminino com cerca de vinte e cinco anos de idade troca mensagens no telemóvel. Veste uma blusa fina e decotada e um soutien que deve ser de um número abaixo do adequado porque lhe deixa um mamilo quase inteiramente à vista. O Sr. Marques olha e pondera se deve tentar não olhar. Procura também imaginar a reacção dela se, simpaticamente, a avisar do descuido. Está absorto a elaborar uma lista mental de prós e contras quando uma segunda mulher chega junto da primeira, se inclina para a beijar e, enquanto se senta, diz: "Tens a mama à mostra." A outra encolhe os ombros. "Ora, sempre alegra a vida a alguns coitados."»

 

Patrícia Reis: «Eduardo Prado Coelho faz anos hoje. Já cá não está e faz falta. A homenagem faz-se hoje, a partir das 14h30, na Casa Fernando Pessoa, numa maratona de leitura de vários textos da sua autoria. Para matar saudades.»

 

Teresa Ribeiro: «A frota pesqueira portuguesa só captura cerca de 1/4 do peixe que consumimos, o resto tem de ser importado para não se exceder a quota que a UE nos impingiu, lembra um relatório hoje divulgado nos jornais. Os donos da UE, sempre tão lestos a apontar os nossos vícios de governação, esquecem, como é óbvio, as responsabilidades que também tiveram no desconcerto da nossa economia, obrigando-nos a desmantelar boa parte da nossa frota e a abrir mão do nosso pescado, um dos melhores do mundo e uma das nossas grandes riquezas.»

História bucólica

José Meireles Graça, 28.03.22

À borda da pista, num baldio coberto da erva túrgida de uns dias de chuva, uma velhota frágil, de óculos, segava-a com uma foice. Parei. Boa tarde. Boa tarde, respondeu. Está a cortar erva para os seus coelhos, aposto, disse com um sorriso – a velha parecia simpática. Estou, disse ela com um molho de ervas numa mão e a foice na outra, levantando-se. E tem muitos?, perguntei, a pensar que nem sequer um cesto trazia, dali não levaria grande coisa. Não, disse ela, só quatro coelhas e um coelho. Morreram-me cinco, não sei o que deu nos filhos da puta, e já larguei o coelho às coelhas mas nada. Se daqui a uma semana estiver igual mato-as. A elas?, perguntei. E ele? – se calhar a culpa é dele. Olhe que tem razão, vai-se a ver é paneleiro, o grande caralho.

Às vezes gosto do meu povo.

Sobre a estalada de Will Smith

jpt, 28.03.22

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Este Savancosinus é o soldado romano a quem foram reconhecidas capacidades intelectuais adequadas a especialista da então pioneira "guerra psicológica", uma invenção de Tullius Detritus, o arguto "enviado especial" de César à "aldeia irredutível".
 
É o verdadeiro ancestral de todos estes "opinadores" internéticos, alguns deles profissionais intelectuais - universitários e quadros-, um ou outro quase-"influencer", até políticos de carreira ou ambição, que botam hoje algo incomodados, quase-nada, pouco ou até mesmo muito, com uma estalada que um actor norte-americano deu num colega. E que antes, durante este último mês, têm vindo, de forma mais ou menos redonda, a botar "contextualizando", "compreendendo", "matizando", "explicando" a invasão russa da Ucrânia.
 
Contrariamente ao que se possa pensar não há outros motivos, são apenas savancosinus... Uns grunhos.

A estalada smithiana

jpt, 28.03.22

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(Zidane headbutts Materazzi - BEST ANGLE )

Este é um dos mais magníficos momentos que vi, um monumento de húbris, da insolente paixão furiosa dos heróis (bastardos de deuses), afrontando desregradamente os ditâmes da moral e da razão mediana, as sentenças divinas, se se quiser dizê-las assim. E que melhor exemplo do que este, o melhor jogador do mundo, no final do último jogo da sua longa carreira, numa final de Mundial visto por milhares de milhões... Um adversário a despropósito insulta-lhe a irmã, ele ignora-o e segue no caminho que é dito o "correcto". Mas, de súbito, inflecte, assoma-se e assume o inadmissível do acontecido. E derruba o energúmeno.
 
Que ontem um actor muito mediano, premiado nos "Óscares" apenas porque representou uma personagem cujo elogio convém à "representação" de uma das "comunidades" com que a sociedade norte-americana se descreve, como essas fossem não só existentes como também virtuosas, não convoca a mesma epopeia, é apenas eco de um ambiente intelectual medíocre que se vai tornando pandémico.
 
Mas um estalo num palhaço que goza em público com a careca da mulher que se ama é uma acção muito apropriada, algo muito bem feito. Que o pobre homem depois se tenha justificado com a má influência do "Demónio" é risível, demonstração do quão medíocre e obscurantista é este movimento "comunitário" de integrismo cristão e islâmico feito, assente no espaço dado a miseráveis "pastores", evangelistas, coranistas, moralistas.
 
Mas o estalo?, ai esse foi uma grande decisão.

Dois apontamentos

beatriz j a, 28.03.22

Relativamente à teoria segundo a qual a invasão da Ucrânia é da responsabilidade da NATO e do Ocidente, duas notas:

1º Essa teoria assume um ponto de vista sociológico e descreve os eventos como resultado de forças sociais, assentes em pressupostos deterministas segundo os quais a realidade é um encadeamento de causas e efeitos cuja força é inexorável. O indivíduo filosófico e psicológico que decidiu tal e tal acção está ausente dessas explicações, como se as suas acções particulares nada tivessem que ver com a sua identidade, a sua consciência, a sua intenção e o seu livre-arbítrio, mas fossem meras reacções à força necessária da corrente dos acontecimentos em que se insere amorfamente. Porque a NATO fez isto e aquilo e o Ocidente teve esta e a outra atitude, Putin foi levado a invadir a Ucrânia. Ora, se há coisa que esta guerra mostrou foi a parcialidade ou falta de objectividade dessa teoria. Contrariamente aos vaticínios dos primeiros dias desta guerra, tanto de teóricos, como de dirigentes de países -incluindo Putin- ou de diplomatas, a Ucrânia não só não se rendeu como recusa ser um tronco à deriva arrastado pelo rio da realidade sociológico-determinista. Ora isso deve-se, sobretudo, à decisão livre, da pessoa do seu Presidente. Gostava de ver as teorias da força inexorável da corrente histórica explicarem uma pessoa como ele e a resistência, o moral, o espírito e a vontade do povo ucraniano que são um tronco, não a seguir impotentemente a corrente, mas a mudar-lhe a orientação.

2º Essas explicações parecem só funcionar para um dos lados. Putin justifica a sua decisão (que não foi um impulso, foi calculada e preparada durante muitos anos) com as acções da NATO  e do Ocidente e muitos aceitam essa justificação. Da mesma maneira explicam Lenine e Estaline culpando o imperialismo dos Czars, primeiro e, depois, o imperialismo do Ocidente; também Hitler é explicado pelo imperialismo arrogante dos ocidentais. No entanto, quando se trata de acções dos ocidentais, nunca a responsabilidade é alocada a forças deterministas da História, mas aos próprios indivíduos. Ninguém explica a decisão de Truman de largar a bomba em Hiroshima como uma reacção inevitável à corrente dos eventos históricos; ninguém justifica a decisão de Bush, o filho, de invadir o Iraque, como uma reacção inevitável aos acontecimentos do 11 de Setembro. Tanto num como noutro caso assume-se que essas decisões foram tomadas com a liberdade da vontade e plena consciência individual das pessoas em questão, tal como no caso das decisões da NATO. Podíamos citar muitos outros exemplos. De há uns tempos para cá, quando se trata do imperialismo dos ocidentais a culpa é da pessoa que decidiu, quando se trata do imperialismo dos outros (neste caso de Putin), a culpa é das forças da História postas em marcha pelos decisões individuais dos ocidentais. 

Portanto, os ocidentais são pessoas livres que tomam decisões conscientes e voluntárias, os outros déspotas são agentes determinados e amorfos da História que reagem às forças negativas postas em marcha pelos ocidentais?

texto também publicado no blog azul

Os papagaios de Putin (2)

Pedro Correia, 28.03.22

 

25 de Fevereiro, RTP 3:

«[Os ucranianos] não devem conseguir resistir muito mais tempo.»

«Foi quase totalmente neutralizada a capacidade de defesa anti-aérea porque os seus sistemas - que até eram de origem russa - foram eliminados praticamente pelos russos.»

«Há algum desespero por parte das forças ucranianas - não deles, mas pelo menos dos seus líderes.»

«Quando se fazem apelos - que eu acho incrível que se façam - à população civil para usar cocktails Molotov e kalachnikovs contra carros de combate, contra forças extremamente bem equipadas e armadas, é mandar essas pessoas para a morte. (... ) Um cocktail Molotov contra um destes carros de combate modernos é como um mosquito a picar um elefante. Não é uma atitude digna.»

«Depois de as forças ucranianas estarem praticamente cercadas e sem capacidade de reabastecimento, terão de se render.»

«Eu sou um bocado diferente. Toda a gente gosta de pôr a culpa no Putin. Eu acho que os líderes ocidentais, sobretudo, incentivaram este governo ucraniano. Os Estados Unidos venderam-lhes 600 milhões de dólares de armamento... contra a Rússia, por amor de Deus! Para mim, os líderes ocidentais, a NATO, o Presidente americano, o senhor Boris Johnson e a União Europeia tiveram um comportamento também nas bordas do criminoso, tão mau como o do Putin.»

«O momento em que o Presidente Putin fez o discurso dele, até esse momento eu sempre pensei que iam aceitar algumas das condições que ele tinha posto.»

«Durante oito anos andou-se a insistir do lado russo para que os acordos de Minsk fossem cumpridos. A França e a Alemanha, que foram testemunhas dessa assinatura, nunca fizeram pressão nenhuma sobre a Ucrânia para cumprir a sua parte dos acordos de Minsk.»

«Se têm cumprido aquilo que estava assinado e acordado entre a Ucrânia e os separatistas, não tinha havido nada disto.»

«Putin é tudo menos louco. E é uma loucura da nossa parte se o formos provocar.»

«O Ocidente agora lava a sua consciência e diz: "O homem é um facínora, é mau." Não! A União Europeia tem grandes culpas quando derrubou um presidente que tinha sido eleito, que era o presidente legítimo da Ucrânia. Quem é que ajudou a depor o Ianukovitch? Foram os EUA e foi a UE.»

«Agora o mau é o Putin... por amor de Deus!»

«Quando o puseram num beco sem saída, o que é que ele fazia a seguir? Tinha de atacar a Ucrânia, obviamente.»

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 28.03.22

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Comemora-se em Portugal a 28 de Março o Dia Nacional dos Centros Históricos.

"O Dia Nacional dos Centros Históricos Portugueses” que, tendo sido formalmente criado em 28 de Março de 1993, encontrou, desde logo, entusiástico acolhimento na esmagadora maioria das autarquias com centro histórico. A data escolhida para tais celebrações — 28 de Março — está intimamente ligada a uma das figuras da cultura portuguesa que melhor defendeu o património nacional — Alexandre Herculano. Nascido na cidade de Lisboa, em 28 de Março de 1810, o insigne historiador e político jamais deixou de levantar a voz em prol do nosso legado histórico-cultural. Ao instituir o “Dia Nacional dos Centros Históricos Portugueses”, na data do aniversário natalício de Alexandre Herculano, o Governo e a APMCH quiseram homenagear, de forma “perene”, o espírito e a obra do “escritor de bronze que dignificou a língua, do historiador que renovou os métodos para a averiguação do passado e do homem de carácter que modelou um tipo de cidadania que muitos tomam ainda como espelho”. Simultaneamente, visaram criar uma nova oportunidade para a promoção das acções encetadas pelos municípios no que toca à salvaguarda dos seus centros históricos.

 

O Dia Nacional dos Centros Históricos tornou-se como que  o 10 de Junho do Património em Portugal. Com efeito, sem prejuízo das iniciativas promovidas em cada município, é, anualmente, designada uma autarquia para centralizar, em termos oficiais, as comemorações de tal acontecimento.

Para o efeito, foram escolhidos os municípios de

Lisboa (1993)

Trancoso (1994)

Castelo de Vide (1995)

Sintra (1996)

Ponte de Lima (1997)

 Funchal (1998)

 Macau (1999)

Santarém (2000)

Lisboa (2001)

Lamego (2002)

Porto (2003)

Lagos (2004)

Tavira (2005)

Santarém (2006)

Coimbra (2007)

Lamego (2008)

Castro Marim (2009)

Santarém (Vale de Lobos) (2010)

Almeida (2011)

Angra do Heroísmo (2012)

Santarém (2013)

Lagos (2014)

Pedrógão Grande (2015)

Alpiarça (2016)

Tomar (2017)

 Machico (2018)

Castelo de Vide (2019)

Tavira (2020/2021)

 

Informação apmch; foto Google

Missão Ucrânia 2022 - II

Paulo Sousa, 28.03.22

Pelo caminho, e por irmos identificados com o azul e amarelo da bandeira da Ucrânia, fomos sempre recebendo calorosos apoios de muitos dos carros e camiões com que nos cruzamos. A extensão da caravana levava a que fossem os carros de trás os mais congratulados. Também pelo rádio CB recebemos calorosas palavras de apoio. Lembro-me particularmente de um camionista português com quem fomos falando ao longo do vários quilómetros e que nos transmitiu aquilo que interpretei como sendo o sentimento de muitos portugueses. Fez-me sentir um privilegiado por estar numa das linhas da frente e com uma espessa retaguarda de apoios, que se projectava e que se revia no que estávamos a fazer.

Como sempre que se atravessa as estradas nacionais espanholas e francesas, preenchidas com camiões de matrícula portuguesa, sou assaltado pela constatação da falta de reconhecimento social do numeroso exército que transporta os bens que encontramos nas prateleiras dos supermercados e nos armazéns grossistas. Quantas famílias de camionistas estão esporadicamente juntas para que as colunas de carros pesados que levam e trazem mercadorias, continuem em movimento? Tal como o nosso biorritmo depende do sol e da lua, o dos profissionais da estrada depende do tacógrafo que regista a respectiva velocidade, horas de condução e de descanso. A exigência física, a monotonia e a solidão, sob um permanente anonimato e com a falta de reconhecimento em pano de fundo, faz desta classe profissional uns eternos esquecidos e até desprezados.

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Desde a saída de casa, o nosso primeiro descanso digno desse nome aconteceu em Satu Mare, já na Roménia. Daí, dirigimo-nos a Suceava, onde nos dividimos em dois grupos. Dois carros foram fazer a primeira recolha de hóspedes, ali perto da cidade, e os restantes quatro foram descarregar todos os materiais transportados nas instalações dos Bombeiros, que em Siret são partilhadas com as da Cruz Vermelha.

Ao chegarmos à fronteira vimos então toda a dimensão do que nos tinha levado ali. Pelo que soubemos através dos Bombeiros, que na Roménia são militares, em Siret a média diária de pessoas em fuga da guerra rondava os dez mil, muito abaixo do que tem acontecido nas fronteiras da Polónia.

Apesar disso, e para além do desespero de quem deixou tudo para trás, ali também conflui muita solidariedade. Tendas que distribuem comida, bebidas quentes, agasalhos, e que até permitem umas horas de descanso, são abundantes. Muitas delas oriundas de países quase improváveis, como a Índia, Egipto, Arménia, Turquia, Israel, Moldávia, assim como de muitas organizações romenas ligadas à igreja ortodoxa e católica.

Na tenda de Israel, onde bebi um café, conversei com um jovem voluntário norte-americano, que se tinha deslocado para ali sensibilizado pela situação e especialmente motivado pelas suas próprias raízes ucranianas.

Ali, toda a ajuda flui. Voluntários, autoridades e pessoas em fuga da guerra colaboram recorrendo a triangulações linguísticas e a todos os recursos comunicacionais possíveis. O tradutor do nosso grupo, que é também um meu conterrâneo, foi incansável em telefonemas para o outro lado da fronteira. Era necessário combinar uma hora e um ponto de encontro, sabendo que os telefones ucranianos mal cruzassem a fronteira perderiam o sinal, e sabendo também que as máfias que se dedicam ao tráfico de pessoas estão no terreno. Era necessário confirmar que os nossos hóspedes seriam recebidos pelas pessoas certas. Graças ao seu esforço, à forma como transmitiu confiança a cada um dos nossos hóspedes, tudo correu pelo melhor.

Surpresa nossa, quem coordenava a Cruz Vermelha naquela fronteira era um português. O Francisco, que ali estará até ao final de Março, recebeu-nos de braços abertos e, logo depois de descarregados os materiais que transportamos, e que encheram várias paletes, tiramos a foto da praxe. A bandeira tinha-a ele dobrada no seu kit de emergência do bolso direito.

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Naquela primeira ida à fronteira de Siret trouxemos apenas alguns hóspedes. Só no dia seguinte a nossa capacidade ficaria esgotada. No meu carro, que foi cedido pela Associação Nova Vida (Нове життя) – uma metáfora perfeita para o efeito – trouxe a Irina, com o seu filho Ivan de 5 anos e a Olga de 3 (nomes fictícios). Os pais da Irina trabalham e vivem no centro de Portugal e foi através de um dos nossos telefones que voltaram a falar. Mesmo sem entender ucraniano, pela linguagem corporal, sorrisos e lágrimas dela, todos entendemos que estávamos a fazer parte de algo realmente válido e uns furos acima do que se pode descrever como decente.

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Durante a viagem a pequena Olga mostrou-se sempre pródiga em abraços e sorrisos, e nunca deixou de testar o filtro emocional que cada um de nós tinha preparado para poder ali estar a decidir os detalhes operacionais da missão. Com a mão no ouvido a simular um telefone, “falou” durante horas com a avó que a esperava em Portugal, disse-lhe o nome de cada um de nós e foi-lhe relatando a viagem. Uma jóia. Mais tarde, uma outra hóspede disse-me que o que sentiam não cabia na palavra “obrigado”, mas a resposta que tínhamos era sempre a mesma, dizer “obrigado” era suficiente. Poder ali estar, e fazer parte do que estava a acontecer, era maior que qualquer pagamento, até porque todos sentíamos que estávamos a receber muito mais do que aquilo que pudéssemos estar a dar.

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Na noite que se seguiu à primeira ida à fronteira, pernoitamos num hotel em Botoșani. O jantar foi num restaurante ali ao lado, que já estava para fechar, mas que nos recebeu com simpatia. Depois do repasto, alguns de nós ficamos na conversa com o pessoal do restaurante até bem depois da hora normal. Além de ficarmos a saber que na Roménia se brinda dizendo “noroc”, soubemos também que a minoria romena na Ucrânia andava nos últimos anos a passar um mau bocado, tendo até sido proibidas as escolas em língua romena. Ainda assim, todos estavam solidários com a situação e isso era visível por todo o país.

À saída do restaurante reparamos num cartaz, de entre vários de onde se anunciavam eventos da cidade, que fazia referência clara ao nosso país.

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Segundo o que os nossos anfitriões do restaurante nos explicaram, o dito cartaz era relativo a uma peça de teatro cujo tema era de facto Portugal. Não deixamos de ficar curiosos e, entre nós, até comentamos se não seria isto um exemplo do que se pode designar por soft power. Seria interessante ter acesso ao guião traduzido.

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DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.03.22

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João Carvalho: «Ao contrário do que consta, uma limousine pode ser um transporte adequado. Especialmente se for o último...»

 

José Navarro de Andrade: «No curto período de 13 anos, entre 1908 e 1921, foram assassinados um Rei, um Presidente, um Primeiro-Ministro (António Granjo), um herói nacional (Machado) e dois ministros, os quatro últimos na Noite Sangrenta. Fora alguns ajustes de contas avulsos, como o caso do senador José João de Freitas que em Maio de 1915 tentou matar a tiro num comboio o Primeiro-Ministro indigitado João Chagas, mas acabou linchado pelos populares no Entroncamento. Um palmarés destes, nem nos famigerados Balcãs.»

 

Rui Rocha: «Os meus heróis não fumam ganza. Ou, se fumam, não são meus heróis por fumarem ganza, mas por fazerem outras coisas que valorizo. E os meus heróis também não são papagaios que, debaixo da penugem da falsificação intelectual, escondem a vontade de nos encurralar em sistemas totalitários ou na anarquia.»

Blogue da semana

Cristina Torrão, 27.03.22

Sendo eu interessada em História, escolhi, desta vez, O Sal da História, um blogue que só descobri recentemente e que muito me agradou. Fala-nos de pessoas e factos que normalmente não vêm narrados nos livros, mas são igualmente importantes para aprendermos com (e entendermos) o nosso passado.

A autora, Cristiana Vargas, é jornalista de formação e trabalha no Arquivo Histórico de Alcácer do Sal. Nas suas próprias palavras, encontrou, na criação deste blogue, a solução para aliar o meu ímpeto para a escrita, a minha paixão pela história e a enorme curiosidade de jornalista. Diz-nos ainda que a realidade é, genericamente, o melhor enredo que se pode escrever e que, por vezes, é tão extraordinária que mais parece ficção. Não podia estar mais de acordo.

Aprendamos, então, com O Sal da História!

Leituras

Pedro Correia, 27.03.22

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«Terrível é constatar até que ponto deixámos de poder dizer seja o que for... Nietzsche, Schopenhauer e Espinosa não teriam qualquer hipótese hoje em dia. O politicamente correcto, ou aquilo em que se transformou, torna inaceitável a quase totalidade da filosofia ocidental. Há cada vez mais coisas que deixámos de poder pensar. É assustador.»

Michel Houellebecq, Intervenções (2009), p. 162

Ed. Alfaguara, 2021. Tradução de José Mário Silva

Pensamento da semana

Cristina Torrão, 27.03.22

Confesso que continuo a não perceber quais as verdadeiras intenções de Putin. Espera ele realmente anexar a Ucrânia? Mas a que preço (para ele próprio e o seu país)? A sua demência impedi-lo-á de perceber que uma guerra mundial destruiria a Rússia e que ele próprio dificilmente sobreviveria? Ou pretende suicidar-se, mandando o planeta pelos ares?

Também continuo a não perceber qual o papel da extrema-direita nisto tudo. Leio sobre relações cordiais que o Kremlin tem vindo a estabelecer com a extrema-direita europeia, incluindo apoio financeiro. O certo é que estes partidos, que tudo aproveitam para andar nas parangonas, têm estado estranhamento calados.

 

Este pensamento acompanhou o Delito durante esta semana.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 27.03.22

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Ana Lima: «Porque será que, ao ler o título desta notícia, pensei tratar-se de um outro Cameron?»

 

Ana Vidal: «Durante anos a fio ele foi um imponente porta-aviões. Poderoso, exibia-se pelos mares em que navegava, e eram muitos. Disparava a eito certeiros tiros de canhão, atirando-a mil vezes para um naufrágio triste de que só ela acreditava poder salvar-se

 

João Carvalho: «Esta entrada em Lisboa de comboio pode indicar que um grupo em torno de Sua Majestade tinha arranjado tempo (naqueles primeiros dias de Dezembro que nunca foram os melhores para ir dar uma volta ou preparar alguma caçada) para um encontro recatado, talvez para pôr o monarca a par das maquinações republicanas durante a ausência — uma ausência que serviu para um encontro (premonitório?) entre D. Manuel II e Eduardo VII.»

 

José António Abreu: «Manter o desinteresse cansa mais do que manter o entusiasmo mas a fiabilidade dos resultados é muito superior.»

 

José Gomes André: «Multiplicam-se as análises sobre o "fenómeno Lloret del Mar" e a trágica morte de um jovem de 17 anos. A culpa é dos pais. A culpa é da escola. A culpa é das agências de viagens. A culpa é do hotel. A culpa é dos espanhóis gananciosos. A culpa é dos vendedores de álcool. A culpa é da sociedade. Os únicos que não são culpados, claro, são os jovens envolvidos em festas bacanais, trips de comprimidos e noites sucessivas de shots. Enquanto não percebermos a necessidade de restaurar o conceito de "responsabilidade individual", estaremos condenados a procurar culpas como agulhas num palheiro.»

 

Patrícia Reis: «"O Teatro é um grande meio de civilização mas não prospera onde a não há." Garrett. Dia 27 de Março comemora-se o Dia Mundial do Teatro, iniciativa promovida anualmente pela UNESCO.»

 

Teresa Ribeiro: «Os ordenados milionários dos gestores das empresas públicas começam, enfim, a ser cortados. Não é coragem. Não encham a boca com isso que me faz brotoeja. É a pistola da troika encostada à nuca. Tenho pena que só nestas circunstâncias um governo de Portugal consiga arranjar "coragem" para a decência.»

Esperança

Paulo Sousa, 26.03.22

Violinists Support Ukraine surgiu como forma de apoiar a Ucrânia. Violinistas de todo o mundo juntaram-se a nove ucranianos que mesmo debaixo do chão, enquanto tentam sobreviver aos bombardeamentos russos, não deixam de nos maravilhar.

Entre muitos outros defeitos, será no apego e na necessidade de arte, que melhor nos distinguimos dos bichos. Enquanto isso acontecer, há razões para termos esperança.

No conforto de Nova Iorque

Pedro Correia, 26.03.22

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Desde que a agressão da Rússia à Ucrânia começou, há um mês, o secretário-geral da ONU nada mais fez do que duas ou três declarações beatíficas sobre o tema. Permanecendo inerte no conforto de Nova Iorque: nem sequer pisou solo europeu, ao contrário do Presidente norte-americano.

A sua passividade face ao maior conflito bélico no nosso continente desde a II Guerra Mundial contrasta em absoluto com o protagonismo assumido por um dos seus antecessores, Kofi Annan, na segunda Guerra no Golfo. 

Mas nem tudo é mau. Mostrando-se firme ao leme do Palácio de Vidro, António Guterres acaba de dirigir à população do globo terrestre uma mensagem destinada a assinalar o Dia Mundial da Meteorologia.

Portugal da Idade Média

Cristina Torrão, 26.03.22

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«Em Portugal, houve nas últimas décadas uma explosão de investigações que alargou imenso as temáticas (…) Sabemos hoje muito mais sobre o que aconteceu no território que veio a tornar-se Portugal, e sobre o reino português, do que há 25 anos, e de uma forma mais plural» - palavras da historiadora Maria de Lurdes Rosa, na entrevista que serve de introdução a este especial Visão História.

A publicação cumpre aquilo que a historiadora nos promete. Abrange toda a época medieval (do século V ao XV), dando-nos informações sobre aspectos normalmente desprezados pela nossa História, mas essenciais para entendermos a formação de Portugal e as raízes do nosso povo, como a época dos reinos Suevo e Visigodo e a era islâmica, bem mais diversificada do que aquilo que nos fizeram crer, durante séculos. Além disso, apresenta artigos sobre a vida dos camponeses, os mesteres, a organização da sociedade, as finanças, o ensino, a cultura, a literatura, etc. Porque estudar a História não é apenas decorar datas e nomes de reis, batalhas e guerras.

E, no entanto, "não há bela sem senão". O artigo sobre D. Afonso Henriques, cheio de incongruências, não possui o nível qualitativo das outras contribuições. Para começar, o autor, Luís Almeida Martins, diz-nos que o «político e jurista Diogo Freitas do Amaral (…) deu em 2006 à estampa o livro D. Afonso Henriques - Biografia». Na verdade, esse livro é seis anos mais velho, foi publicado, pela primeira vez, no ano 2000, pela Bertrand Editora. Mais à frente, D. Teresa surge como sendo galega, quando não se sabe ao certo onde nasceu, embora se considere ter sido leonesa. Aponta-se o castelo leonês de Ulver, situado nos montes do Bierzo, como local do seu nascimento. Luís Almeida Martins diz-nos ainda haver uma lenda que diz ser D. Afonso Henriques filho de Egas Moniz, ou seja, o nosso primeiro rei teria sido fruto dos amores ilícitos de D. Teresa com o fidalgo de Ribadouro! Ora, a lenda não fala de “amores ilícitos”. O pequeno Afonso teria nascido aleijado das pernas e D. Egas Moniz, encarregado da sua educação, resolveu trocá-lo, ainda bebé, por um filho seu da mesma idade. Neste caso, a mãe nunca poderia ser D. Teresa! E, para dar mais um exemplo da falta de cuidado na escrita deste capítulo, atente-se à seguinte passagem: «já com 60 anos, D. Afonso Henriques (…) tentou apoderar-se de Badajoz. Ali, teve de lutar contra mouros e leoneses, acabando prisioneiro de Afonso VII (…) Acabaria por ser libertado pelo primo em troca de uma faixa de terreno na Galiza». Na verdade, quando o nosso primeiro rei atacou Badajoz, em 1169, o seu primo estava já morto há doze anos! Quem o fez prisioneiro foi Fernando II de Leão, filho do dito Afonso VII. E, diga-se de passagem, genro do próprio Afonso Henriques.

Tenho ainda uma crítica a fazer a este especial Visão História: falta um artigo dedicado a D. Teresa! Ela aparece-nos em vários momentos, incluindo um capítulo intitulado Ser Rainha, no meio de, por exemplo, D. Mafalda de Saboia, D. Isabel ou D. Filipa de Lencastre. D. Teresa não se enquadra, porém, neste contexto. Ela não se limitou a ser esposa de um rei (até porque foi casada com um conde); ela regeu sozinha sobre o condado Portucalense durante dezasseis anos. D. Henrique continua a ter mais destaque do que ela. Mas, como eu já aqui referi no Delito de Opinião, D. Teresa marcou indubitavelmente a independência em relação a sua meia-irmã D. Urraca, a única herdeira do imperador Afonso VI. Recusou-se terminantemente a prestar-lhe vassalagem, assim como ao sobrinho (depois da morte de D. Urraca em 1126). Ou seja:  muito mais do que o conde D. Henrique, ela foi a preparadora do caminho que seu filho haveria de percorrer.

Pelos vistos, e apesar do avanço do estudo histórico, D. Teresa ainda é limitada à adúltera, a quem o filho teve de pôr na ordem. E, não contentes com os irmãos de Trava, ainda lhe querem impingir outro amante, o próprio Egas Moniz! Haja paciência!

2021-09-16 Ponte de Lima mit Manfred + Birgit 156.

Estátua da rainha D. Teresa, em Ponte de Lima