Pelo caminho, e por irmos identificados com o azul e amarelo da bandeira da Ucrânia, fomos sempre recebendo calorosos apoios de muitos dos carros e camiões com que nos cruzamos. A extensão da caravana levava a que fossem os carros de trás os mais congratulados. Também pelo rádio CB recebemos calorosas palavras de apoio. Lembro-me particularmente de um camionista português com quem fomos falando ao longo do vários quilómetros e que nos transmitiu aquilo que interpretei como sendo o sentimento de muitos portugueses. Fez-me sentir um privilegiado por estar numa das linhas da frente e com uma espessa retaguarda de apoios, que se projectava e que se revia no que estávamos a fazer.
Como sempre que se atravessa as estradas nacionais espanholas e francesas, preenchidas com camiões de matrícula portuguesa, sou assaltado pela constatação da falta de reconhecimento social do numeroso exército que transporta os bens que encontramos nas prateleiras dos supermercados e nos armazéns grossistas. Quantas famílias de camionistas estão esporadicamente juntas para que as colunas de carros pesados que levam e trazem mercadorias, continuem em movimento? Tal como o nosso biorritmo depende do sol e da lua, o dos profissionais da estrada depende do tacógrafo que regista a respectiva velocidade, horas de condução e de descanso. A exigência física, a monotonia e a solidão, sob um permanente anonimato e com a falta de reconhecimento em pano de fundo, faz desta classe profissional uns eternos esquecidos e até desprezados.
Desde a saída de casa, o nosso primeiro descanso digno desse nome aconteceu em Satu Mare, já na Roménia. Daí, dirigimo-nos a Suceava, onde nos dividimos em dois grupos. Dois carros foram fazer a primeira recolha de hóspedes, ali perto da cidade, e os restantes quatro foram descarregar todos os materiais transportados nas instalações dos Bombeiros, que em Siret são partilhadas com as da Cruz Vermelha.
Ao chegarmos à fronteira vimos então toda a dimensão do que nos tinha levado ali. Pelo que soubemos através dos Bombeiros, que na Roménia são militares, em Siret a média diária de pessoas em fuga da guerra rondava os dez mil, muito abaixo do que tem acontecido nas fronteiras da Polónia.
Apesar disso, e para além do desespero de quem deixou tudo para trás, ali também conflui muita solidariedade. Tendas que distribuem comida, bebidas quentes, agasalhos, e que até permitem umas horas de descanso, são abundantes. Muitas delas oriundas de países quase improváveis, como a Índia, Egipto, Arménia, Turquia, Israel, Moldávia, assim como de muitas organizações romenas ligadas à igreja ortodoxa e católica.
Na tenda de Israel, onde bebi um café, conversei com um jovem voluntário norte-americano, que se tinha deslocado para ali sensibilizado pela situação e especialmente motivado pelas suas próprias raízes ucranianas.
Ali, toda a ajuda flui. Voluntários, autoridades e pessoas em fuga da guerra colaboram recorrendo a triangulações linguísticas e a todos os recursos comunicacionais possíveis. O tradutor do nosso grupo, que é também um meu conterrâneo, foi incansável em telefonemas para o outro lado da fronteira. Era necessário combinar uma hora e um ponto de encontro, sabendo que os telefones ucranianos mal cruzassem a fronteira perderiam o sinal, e sabendo também que as máfias que se dedicam ao tráfico de pessoas estão no terreno. Era necessário confirmar que os nossos hóspedes seriam recebidos pelas pessoas certas. Graças ao seu esforço, à forma como transmitiu confiança a cada um dos nossos hóspedes, tudo correu pelo melhor.
Surpresa nossa, quem coordenava a Cruz Vermelha naquela fronteira era um português. O Francisco, que ali estará até ao final de Março, recebeu-nos de braços abertos e, logo depois de descarregados os materiais que transportamos, e que encheram várias paletes, tiramos a foto da praxe. A bandeira tinha-a ele dobrada no seu kit de emergência do bolso direito.
Naquela primeira ida à fronteira de Siret trouxemos apenas alguns hóspedes. Só no dia seguinte a nossa capacidade ficaria esgotada. No meu carro, que foi cedido pela Associação Nova Vida (Нове життя) – uma metáfora perfeita para o efeito – trouxe a Irina, com o seu filho Ivan de 5 anos e a Olga de 3 (nomes fictícios). Os pais da Irina trabalham e vivem no centro de Portugal e foi através de um dos nossos telefones que voltaram a falar. Mesmo sem entender ucraniano, pela linguagem corporal, sorrisos e lágrimas dela, todos entendemos que estávamos a fazer parte de algo realmente válido e uns furos acima do que se pode descrever como decente.
Durante a viagem a pequena Olga mostrou-se sempre pródiga em abraços e sorrisos, e nunca deixou de testar o filtro emocional que cada um de nós tinha preparado para poder ali estar a decidir os detalhes operacionais da missão. Com a mão no ouvido a simular um telefone, “falou” durante horas com a avó que a esperava em Portugal, disse-lhe o nome de cada um de nós e foi-lhe relatando a viagem. Uma jóia. Mais tarde, uma outra hóspede disse-me que o que sentiam não cabia na palavra “obrigado”, mas a resposta que tínhamos era sempre a mesma, dizer “obrigado” era suficiente. Poder ali estar, e fazer parte do que estava a acontecer, era maior que qualquer pagamento, até porque todos sentíamos que estávamos a receber muito mais do que aquilo que pudéssemos estar a dar.
Na noite que se seguiu à primeira ida à fronteira, pernoitamos num hotel em Botoșani. O jantar foi num restaurante ali ao lado, que já estava para fechar, mas que nos recebeu com simpatia. Depois do repasto, alguns de nós ficamos na conversa com o pessoal do restaurante até bem depois da hora normal. Além de ficarmos a saber que na Roménia se brinda dizendo “noroc”, soubemos também que a minoria romena na Ucrânia andava nos últimos anos a passar um mau bocado, tendo até sido proibidas as escolas em língua romena. Ainda assim, todos estavam solidários com a situação e isso era visível por todo o país.
À saída do restaurante reparamos num cartaz, de entre vários de onde se anunciavam eventos da cidade, que fazia referência clara ao nosso país.
Segundo o que os nossos anfitriões do restaurante nos explicaram, o dito cartaz era relativo a uma peça de teatro cujo tema era de facto Portugal. Não deixamos de ficar curiosos e, entre nós, até comentamos se não seria isto um exemplo do que se pode designar por soft power. Seria interessante ter acesso ao guião traduzido.
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