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Delito de Opinião

A ditadura tem muitas formas

Joana Nave, 02.03.22

A propósito dos tempos que vivemos, em que a opressão tomou conta da racionalidade, em que os direitos humanos são aniquilados em prol do poder de um louco, a palavra ditadura surge em todo o seu esplendor, com mais eloquência do que outrora, porque de este a oeste não há quem não tenha sentido na pele o que ela representa. Aos mais novos ficam os testemunhos dos que viveram sob a influência de um ditador. De tudo o que uma ditadura implica, aflige-me a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento e a liberdade plena como direito. A ditadura tem muitas formas e uma delas é a que impomos a nós próprios, quando calamos as nossas angústias para sermos aceites nos meios em que estamos inseridos. Não damos voz às situações que nos aprisionam na nossa condição de mais pequenos, mais pobres, mais velhos, mais debilitados e, com isso, damos força a quem nos quer vencer convencendo-nos de que somos menos. Menos astutos, menos inteligentes, menos fortes e menos capazes. Neste país onde me encontro podemos dizer o que nos apetece, até demasiado, porque algum pudor fica sempre bem e é adequado ao que é do bem comum, mas sofreremos inevitavelmente as consequências. Quando acontecem no mundo situações tão catastróficas como a que está a ocorrer neste momento, devíamos repensar todas estas atitudes mesquinhas, que rebaixam o ser humano, que lhe tiram dignidade, mas infelizmente há mais loucos por aí, disfarçados de lobos em pele de cordeiro.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 02.03.22

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Cláudia Köver: «"The ultimate kiss"  é uma antologia de beijos, criada há pouco mais de um mês, com o intuito de trazer alguma alegria aos dias e momentos mais cinzentos. Podem "segui-la" no tumblr. Prometo pelo menos um beijo por dia. E para quem quiser saber mais sobre a história dos mesmos, conhecer outras curiosidades, como músicas ou livros sobre esse mesmo tema, convido-vos a seguirem "the ultimate Kiss" no Facebook. Sim, é só isso: beijos

 

João Carvalho: «O Austin 8 é capaz de ter sido o primeiro carro a fazer parte da minha vida. Pelo menos, parece-me ser assim que o localizo nas minhas memórias. Era do meu avô materno e nunca me esqueci da matrícula: TO-11-54.»

 

José António Abreu: «Parceira de Tricky em vários álbuns (desde logo, no fundamental Maxinquaye, de 1995), Martina Topley-Bird lançou desde então três discos a solo, dois de originais (Quixotic, de 2003, e The Blue God, de 2008) e um, na sequência de uma sugestão de Damon Albarn, com quatro originais e versões menos electrónicas, mais «despidas», de temas incluídos nos anteriores (Some Place Simple, de 2010). Há perto de três anos foi dela o primeiro vídeo que coloquei no meu blogue pessoal.»

 

Luís Menezes Leitão: «As ajudas não duram para sempre e o regresso aos mercados é um sonho delirante para estes países. Há muito que nos mercados se diz em relação à dívida grega e portuguesa: "Take the money and run". Basta olhar para a escalada permanente dos juros. E aí põe-se a pergunta inevitável a que ninguém responde: Estamos a fazer todos estes sacrifícios para quê?»

 

Rui Rocha: «Portugal tem duas soluções. A saída do euro ou o cumprimento da austeridade que nos é imposta. Aos portugueses e ao governo que os representa cabe escolher o caminho. E, depois disso, assegurar uma repartição eticamente aceitável dos sacrifícios que qualquer das soluções implica. Prometer mais do que isso, invocando Krugman, Schumpeter ou o Bruxo de Fafe não é mais de que insistir no caminho da desonestidade intelectual. Na senda do pensamento mágico que, em boa medida, nos trouxe até aqui onde estamos.»

Um momento de clarificação

Paulo Sousa, 01.03.22

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A União Europeia, do alto do seu incrível currículo de mais de sete décadas de paz, é frequentemente acusada de representar uma sociedade pós-bélica, o que, para os seus críticos, é uma fragilidade. As opiniões públicas dos seus diversos países, que já nasceram e cresceram em paz, perante tão óbvias vantagens na colaboração e na partilha, não aceitam sacrificar vidas humanas para acertar contas com a história ou pela vã glória de mandar.

Se o ataque da Rússia de Putin à Ucrânia serviu para alguma coisa, foi para unir a Europa na condenação de tal acto. Ao contrário do que aconteceu na ocupação da Crimeia e de parte do Donbass, desta vez a UE passou a linha das declarações vagas, gelatinosas e inconsequentes. Pela primeira vez na sua história, as instituições europeias decidiram gastar parte dos seus milhões na compra de armas, e até a sempre neutral Suíça irá acatar integralmente as sanções europeias contra a oligarquia russa.

Estes últimos dias serviram também para que esta sociedade pós-bélica, de que felizmente fazemos parte, entenda que a liberdade tem um custo – como os americanos dizem Freedom it’s not for free – , e que a diplomacia sem pelo menos um pau, não tem força. Mesmo os mais lunáticos finalmente entenderam que pertencer à NATO não é um capricho.

Descobrimos (muitos já o sabíamos) que os fofinhos partidos anti-sistema que adoram as luzes da ribalta e de proclamar soundbytes sonantes, que insistem em negar os crimes soviéticos, que privam a apoiam ditadores sanguinários, são uma quinta coluna apostada em enfraquecer as instituições e os valores que partilhamos.

Os recentes crimes de Putin e do seu círculo próximo, mostraram-nos também por que é que temem uma democracia à porta de casa. Se a vizinha Ucrânia se tornar próspera e funcional, e for capaz de proporcionar uma vida digna aos seus habitantes, os russos irão querer algo idêntico.

Essa é também a força de uma democracia razoavelmente decente. Nunca nenhum povo aceitaria ficar isolado do mundo para, à força da bomba e deixando um rasto de sangue, defender algo como o que Putin defende. É por isso que os déspotas não gostam da ordem liberal, e dos contra-pesos da democracia. E é exactamente por isso que esta deve ser defendida.

É também por isso que a geringonça que nos governou não deixou de ser uma aliança com o diabo, personalizado pelos partidos que nestas horas mostram aquilo que realmente são e o que verdadeiramente defendem.

Pena é que também, e mais uma vez, a ONU não consiga estar à altura dos acontecimentos. Se o seu secretário-geral quisesse honrar o propósito da Organização que lidera, deveria deslocar-se à Ucrânia, visitar as vítimas da guerra e participar nas conversões entre as partes beligerantes. Mas no que toca a gestos simbólicos, ele prefere ir lavar os pés a uma praia tropical.

A aceitabilidade vigente

jpt, 01.03.22

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Face ao que se passa na Ucrânia dir-se-ia secundário atentar no que algumas figuras proeminentes de pequenos partidos portugueses têm proclamado a esse respeito. Mas será importante entender (até "para mais tarde recordar") o que vêm dizendo, tão demonstrativas são essas declarações das mundividências que têm e dos anseios políticos que perseguem. Não para estabelecer postulados meramente moralistas mas para sublinhar a sua fobia à democraticidade, que transparece nas suas manipulações da História, e a qual convém explicitar até pela sua influente presença na comunicação social (televisão e jornais ditos "de referência") - muitíssimo maior do que o efectivo peso eleitoral dos actuais partidos comunistas -, na qual promovem uma chã propaganda falsificacionista. Mas também para sublinhar a absurda ausência de crivo crítico sobre as aleivosias que vão botando, embrulhada numa carnavalesca máscara dita "diálogo democrático" mas que nada mais é do que colaboracionismo.

Esta incompetente colaboração com os locutores destas aleivosias chegou agora a um ponto quase inacreditável. Na sequência da invasão russa da Ucrânia o secretário-geral do PCP criticou Putin, reclamando - em declarações tornadas oficiais pelo seu partido - o respeito pela "notável solução que a União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos povos e suas culturas". Sabia-se que a ex-deputada Rita Rato - à qual a estrutura do PCP fez herdar a direcção de um museu estatal - desconhecia o tema "Gulag". E que o ex-deputado tatuado Miguel Tiago é um negacionista do Holodomor. E todas essas ignomínias intelectuais são acolhidas como meras idiossincrasias dos comunistas locais. Mas temos agora o desplante total do PCP e do seu secretário-geral, de um vil negacionismo anunciando como "notável" (no sentido de "virtuosa") a política soviética face às "nacionalidades" (muitas vezes ditas "minorias étnicas).

E proclamam uma aleivosia destas, sem rebuço, 66 anos depois do XX Congresso do PCUS, 30 anos após a queda da URSS. Sabendo-se bem os dramáticos atropelos feitos às populações daquele país (ver p. ex. aqui um rol dessas acções de perseguição a "nacionalidades", sendo que existe vasta literatura historiográfica sobre este assunto. E sobre o genocídio na Ucrânia ver, para seguir bibliografia portuguesa, este estudo). E é esta falsificação da História que o PCP e os seus dirigentes continuam a promover, apoiados por militantes e simpatizantes mais ou  menos intelectualizados, essa "parada de idiotas úteis" como bem os define Paulo Batista Ramos, sempre acolhidos no "jornalismo de referência" - como nota o Pedro Correia, exemplificando com o "Público" de hoje, jornal cuja activíssima célula "decolonial" se esquece de atentar numa barbárie destas.

A placidez da recepção a esta proclamação negacionista é tão absurda que me parece necessário um contrafactual para a explicitar, desnormalizando-a. Imagine-se que o partido CHEGA ou o seu presidente Ventura, sobre os quais se exige uma "cerca sanitária", desencadeia proclamações basto elogiosas sobre o colonialismo em África - não será assim tão descabido esperar isso pois lembro-me que, in illo tempore, no do frenético bloguismo "liberal", o prof. Arroja clamava que os escravos africanos levados para América tinham com isso beneficiado, pois passando a gozar de melhores e mais longas vidas, argumento muito a la XVIII e até inícios de XIX... Fujamos ao nosso colonialismo, sempre temática sensível. Imaginemos que, por algum motivo, a liderança do CHEGA elogia o "notável" regime colonial na Namíbia ou as "notáveis" virtudes civilizatórias da Bélgica de Leopoldo no Congo

Que então se diria, entre aqueles para cá da "cerca sanitária", sobre essa abjecta falsificação da História? Louvaríamos (seguindo o ror de elogios que recobriu o sec.-geral Sousa aquando do seu recente problema de saúde) a "face granítica" de "homem honrado", "simples", "franco", "simpático", "empenhado", "humilde" do locutor dessas aleivosias colonialistas? Com toda a certeza que não, e decerto que cairia o Carmo e a Trindade entre os entusiásticos "decoloniais". Então a que propósito é que se aceita com simpatia esta comunista falsificação, ainda por cima sobre assuntos similares que nos são historicamente mais próximos e que, evidentemente, se estão a refractar na actual crise europeia?

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Mas estes quadros mentais não se esgotam no PCP. Há dias vi um excerto televisivo no qual a deputada Mariana Mortágua algo sumarizava as causas desta crise ao invectivar o governo ucraniano de "corrupto" e "neonazi" - sendo que este é um tópico recorrente, e lembro que já há três anos o activista anti-discriminações Ba reduzia os ucranianos a nazis, ante o silêncio das hostes identitaristas, quantas outras vezes mui especiosas em questões de epítetos... -, reproduzindo qual um desses "idiotas úteis" a propaganda moscovita. E ao falar sobre o assunto logo amigo mais atento me recomendou a audição deste programa Linhas Vermelhas

Convém ouvir - e até bastarão os primeiros cinco minutos. Em primeiro lugar, e num plano mais geral, é um espantoso exemplo desta perversão normalizada na imprensa portuguesa, a atribuição aos políticos do papel de animadores/comentadores. Ou seja, o primado da reflexão sobre as realidades actuais não é destinado a jornalistas, a investigadores, a profissionais especialistas, a académicos, a membros das associações da sociedade civil, etc. Mas sim aos políticos. Isso é uma dupla perversão: se quantas vezes nos queixamos da falta de qualidade da "classe" política como é possível que isso não se reflicta na pobreza da análise generalista que os políticos trazem? E é evidente que os políticos em actividade têm uma análise do real em função das agendas partidárias, o que ainda mais a empobrece, por defeito de enviesamento e, quantas vezes, de autocensura.

E estes breves minutos iniciais são disso exemplo paradigmático. Nas vésperas da invasão russa Mortágua nega a possibilidade dessa ocorrência, atribuindo os alvitres dessa possibilidade a mera propaganda ocidental e aos discursos de alguns líderes (Biden, Johnson) - tamanho o seu aprisionamento a um visão anti-"ocidental", de facto avessa às democracias liberais. O vigor das suas certezas ali proclamadas são um evidente, enorme e até acabrunhante sinal de incompetência para aquela mera tarefa de "comentário político" sobre a actualidade internacional. Mortágua torna-se ali ridícula. Mas não será decerto por isso afastada daquele palanque de propaganda político-partidária. 

Mas muito mais relevante do que isso é o conteúdo da sua argumentação. Critica Putin e seus anseios. Mas algo justifica a sua política devido a uma contextualização (a la carte) do processo daquela região, uma típica historicização que se pretende legitimadora. Invoca a condição "humilhada" da Rússia e a sua necessidade de um "Espaço Vital". Isto é tão boçal que custa a crer - pois é a pura  recuperação do argumentário da Alemanha nazi, a questão da "humilhação" com o tratado de Versailles e a necessidade de abranger um Espaço Vital (a apropriação nazi do Lebensraum de Ratzel). Chegámos a isto, em Mortágua a repulsa pelas imperfeitas democracias liberais é tamanha que "compreende" o seu agressor imediato através de termos, ideais, com esta genealogia. E temos então a tão "respeitada" e tão "competente" deputada da "esquerda" tão "identitarista" (e nisso "multicultural") a valorizar a necessidade do Lebensraum...

Enfim, há anos tanto se gozou quando Cavaco Silva trocou Mann por Morus, tal como quando Santana Lopes se atrapalhou com Chopin, anódinas asneiritas. E agora a camarada Mortágua avança o Lebensraum contra os norte-americanos e a União Europeia? E a atoarda passa incólume. E ainda bem que não é apanhada como dislate, até aparvalhado. Pois não é apenas isso, mas sim denotativa da malvadez da deputada, dos seus perversos desígnios políticos.

Ele

Teresa Ribeiro, 01.03.22

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Ao contrário do estereótipo das histórias infantis politicamente incorrectas dos meus tempos de menina, este vilão é louro e tem olhos azuis. O rosto redondo, sem rugas, devia sublinhar a suavidade que sugere a mistura dos tons claros do cabelo e dos olhos, mas há uma vida interior por detrás desta máscara delicada que desmonta tudo. O olhar ínvio, incapaz de se sustentar frente às câmaras de televisão e a expressão esfíngica que ostenta sempre que se apresenta em público revelam-no fechado e frio. Dele sabe-se da sua sede assassina de poder. É isso que o move. Não olha a meios, este Darth Vader. Envenena opositores políticos e jornalistas, prende manifestantes, manipula eleições e agora manda bombardear hospitais, creches e lançar no terreno brinquedos armadilhados numa guerra onde vale tudo, até trocar de uniforme para confundir o inimigo.

Comparam-no a Hitler. A megalomania e a metodologia que usou para avançar com as peças no tabuleiro, de facto, confundem-se. Tal como o psicopata de bigode também ele se comporta como dono do mundo, achando-se no direito de determinar que países devem, ou não, existir e não hesita em esmagar quem lhe faz frente. A diferença é que no tempo do outro não havia smartphones, nem internet, nem redes sociais. Hoje é impossível esconder, como antes, os crimes de guerra. Tudo se sabe em tempo real. E essa exposição é, está a ser, demolidora para a reputação deste aspirante a czar de todas as rússias.

Sempre pensei que se um dia uma guerra nuclear eclodisse seria seguramente espoletada por alguém com este perfil: um borderliner com acesso a estas armas e uma ambição desmedida. Mas tenho fé que a devassa que as redes de comunicação e os telemóveis proporcionam faça o milagre de deter esta escalada de violência. Porque o terror, para proliferar, sempre precisou de sombra.

Sem um pingo de vergonha

Pedro Correia, 01.03.22

A criminosa agressão da Rússia à Ucrânia já provocou um êxodo de 660 mil pessoas nestes últimos seis dias, segundo revelou a agência da ONU para os refugiados. Há filas de 60 horas para atravessar a fronteira para a Polónia e de 20 horas para cruzar os postos fronteiriços que ligam o país agredido à Roménia.

Teme-se que o massacre em curso - a que alguns chamam «guerra» - possa gerar o maior fluxo de desalojados em território europeu desde a II Guerra Mundial. Entretanto, os intelectuais orgânicos ligados ao PCP, sem um pingo de vergonha, continuam a disparar em todas as direcções menos contra os fuzis de Moscovo. Como este, que se atreve a perorar sobre a Sérvia e o Iraque enquanto a Ucrânia está em chamas.

Antropólogos e a Guerra

jpt, 01.03.22

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Antropólogos russos contra a guerra (texto de petição)

(Postal para o meu Nenhures)
 
Um amigo em Maputo - pouco prolixo no Facebook, e bem menos sobre temáticas com incidência política - escreve no seu mural, desencantado: "A quantidade de amigos moçambicanos a favor da invasão da Ucrânia envergonha-me." Cá de longe vejo o mesmo, não me envergonhando mas ficando com pele de galinha.
 
E também com alguma surpresa. Não pela existência dessa corrente de opinião, pois conhecendo o país será de a esperar. Mas pela sua dimensão, a sucessão de postais e comentários no Facebook que surgem nesse sentido - vários explícitos ("a Rússia tem razão", "é legítima a sua acção"), imensos implícitos ("a Rússia tem razões"). E alguns verdadeiramente patéticos ("o "Norte" quer impor um barómetro moral mundial e depois não liga aos conflitos em África" - dos quais é, evidentemente, responsável tanto quanto às causas como às formas como são dirimidos, é a perene tese). Não vou elaborar muito sobre este ambiente intelectual - mas recomendo a leitura de um texto sobre o assunto que o sociólogo moçambicano Elísio Macamo acaba de colocar no seu mural de Facebook e com o qual, grosso modo, concordo.
 
Mas há um ponto que sublinho, a abrangência do negacionismo que ali se encontra. Por um lado, a irrelevância atribuída a este "pequeno" detalhe: no fim-de-semana a Bielorússia fez um referendo - antes planeado, e com resultados prenunciados pelo seu presidente ainda em 2021 -, assim disponibilizando-se para ter (mais) tropas russas e arsenal nuclear encostados à União Europeia e à NATO. O que diriam estes opinadores moçambicanos (e as suas fontes brasileiras) se na sequência disso os EUA/NATO tivessem invadido a Bielorússia?
 
Mas o negacionismo vais mais longe, refutando a relevância deste processo. Telefonei a um querido amigo, pois fiquei verdadeiramente estupefacto com proclamações descalibradas que fez a este respeito. Ali ao Whatsapp disse-lhe "isto é a maior guerra europeia desde 1945!", enfatizando o meu estupor diante das suas opiniões, ao que levei o atestado de menoridade intelectual: "qual maior guerra!!! estás a ir na propaganda dos americanos". Apenas quatro dias depois presume-se haver já 7 milhões de deslocados e estão mesmo quantificados 400 mil refugiados em países vizinhos. Números que seriam de esperar, e que previsivelmente crescerão. Mas nada disto, este cansativo real, importa pois é apenas propaganda americana... Dado que o fundamental é criticar o "Ocidente" e, em cabendo, Portugal.
 
Isto não seria relevante se fosse apenas o ruído do magma das redes sociais. Mas não é, pois encontro alguma gente do escol nacional botando neste sentido. E, isso sim é-me doloroso, encontro antropólogos neste "adeptismo" mais ou menos explícito à ofensiva russa.
 
Por isso partilho aqui este documento, produzido por um conjunto alargado de antropólogos russos, opondo-se a esta guerra sem rodeios nem derivas "contextualizadoras" (dessas que surgem como se legitimadoras). E lembro que a Rússia é uma "democracia musculada", e que mais ríspido está agora o regime. E que sendo assim produzir e subscrever um texto destes é muito mais difícil do que promover os inúmeros abaixo-assinados contestatários no nosso pérfido "Ocidente".
 
Partilho o texto na esperança de que alguns antropólogos entre o Rovuma e o Maputo, do Zumbo às águas do Índico - e se possível também alguns primos das outras disciplinas, que de facto nos são siamesas -, possam ler o que os colegas russos dizem. Talvez ajude.

A decadência do PCP

Pedro Correia, 01.03.22

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Seis dias depois, tanto quanto sei, ainda ninguém abandonou o PCP em protesto contra a posição oficial do partido perante a criminosa agressão russa à Ucrânia. Nem um cartão de militante rasgado, nem um sonoro protesto na praça pública.

Pelo contrário, há ali até quem aplauda o agressor, que quer riscar a Ucrânia do mapa e ameaça o resto da Europa com ogivas nucleares. Gente como o antigo deputado Miguel Tiago, que se atreve a a bramar barbaridades como esta, torturando os factos: «Quem não queria negociar era a Ucrânia e não foi a Rússia. A Rússia estava a pedir para negociar desde o primeiro dia.» Isto quando, como noticia o Le Monde, o Tribunal Penal Internacional anuncia a abertura de um inquérito às atrocidades cometidas pelo tirano de Moscovo na Ucrânia desde 2014.

 

Quando o mesmo partido, então liderado por Álvaro Cunhal, se apressou a aplaudir a invasão de Praga pelos blindados do Pacto de Varsóvia, em 1968, registaram-se muitas demissões nas suas fileiras, ainda na clandestinidade. Agora, em pleno século XXI, esta justificação do "direito de pernada" de Putin num Estado soberano é acolhida com mansa resignação nas bases do PCP. Incluindo artistas, actores, jornalistas, desportistas, autarcas, sindicalistas: permanecem todos em silêncio, como se aquela abjecta posição não lhes dissesse também respeito.

Se alguma coisa isto comprova, é a decadência da militância comunista. Já esquecida do que Friedrich Engels ensinou: «Não pode ser livre um povo que oprime outros povos.»

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 01.03.22

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Adolfo Mesquita Nunes: «A minha memória é caprichosa, não se deixa enganar ou seduzir pelas minhas instruções. Guarda o que lhe apetece, algumas vezes em segredo, muitas vezes contra a minha vontade. É ela, não eu, que escolhe o que me faz regressar ao ouvir o primeiro acorde ou ao ver primeira imagem. Esta é uma série que lhe é dedicada. Não à minha memória, que não merece, mas ao sítio para onde regresso quando lhe obedeço

 

Cláudia Köver: «Quero ficar com os pés plantados neste lugar, sem nunca mais perder as raízes, nem deixar a chuva me levar. Quero ficar neste solo ainda que inóspito e sem previsão de florir em meu redor. Quero ficar aqui ao lado desta pedra, quer ela me contemple com desassossego ou de olhar gelado. Ele é pedra. Levanta-se com mais facilidade do que eu, que posso cair morta só com a força do puxão. Ele não tem época para ser levado. Eu sou flor, mas tenho em pedra o meu coração.»

 

Ivone Mendes da Silva: «Sei, infelizmente sei muito bem, que há coisas mais tristes na vida do que o encerramento de uma livraria. Mas o encerramento de uma livraria é uma coisa triste. Lentamente, vamos ficando reduzidos a espaços onde não cheira a livros, onde não se respira o pó dos livros (...), onde dois ou três exemplares da mais esplendorosa iliteracia nacional circulam por ali como podiam circular pela charcutaria. Eu sei que a vida está difícil. A minha também.»

 

João Carvalho: «Tem por título Histórias Rocambolescas da História de Portugal e por autor João Ferreira. A Esfera dos Livros lançou-o em Abril de 2010 e o que me chegou às mãos pertence à 6.ª edição, datada de Agosto de 2010, o que significa coisa nenhuma visto que as seis edições mencionadas na ficha técnica não dão conta do número de exemplares publicados, o que torna a indicação irrelevante. Alguém bem intencionado fez o favor de mo oferecer. Conforme as minhas apetências, eu próprio teria comprado o livro apenas pelo título, que é complicado, mas é tentador. Um erro, afinal: João Ferreira, jornalista com mestrado em História Cultural e Política, escreveu um livro que só serve para mostrar o que ninguém deve escrever — ou que alguém pode atrever-se a escrever às escondidas, mas que ninguém deve publicar para não o mostrar.»

 

José Gomes André: «Há muitas explicações para a crise europeia, mas uma das mais importantes passa certamente pela falta de visão dos líderes políticos europeus. Reagiram tarde ao "crash" económico-financeiro, valeram-se de narrativas morais pueris para justificar os buracos da UE, viraram costas a soluções políticas criativas no quadro europeu, ignoram a história do Velho Continente, não querem saber do exemplo americano, não percebem a natureza do federalismo, não entendem o perigo de uma austeridade sem crescimento. Aparentemente, estão agora muito preocupados com a "surpreendente" taxa de desemprego. Quem é esta gente? Que livros (não) leram? Em que mundo vivem?»

 

José Navarro de Andrade: «Aqui está um caso chapado desta espécie de fascismo linguístico, que no seu puritanismo e nas suas certezas ideais, intende rasurar a utilização mundana da língua, em nome de uma adequação perfeita aos supinos conceitos que a deve informar. A minha avó, na sua profunda e rústica ignorância teológica, apodava-me de judeu cada vez que eu atirava pedras aos gatos, o que era, no dizer dela, cheia de piedade pelos felinos, uma "judiaria”. Para o procurador de Uberlândia este linguajar eticamente errado (digo eu hoje, ignorava ela, coitada, então), como não deveria ter existido, não deve ser cientificamente registado.»

 

Patrícia Reis: «Tenho por Eduardo Lourenço, como já se percebeu, não apenas admiração intelectual, mas uma ternura imensa. Gosto de ficar com as suas mãos nas minhas enquanto me conta qualquer episódio e considero um privilégio conhecê-lo, ter essa possibilidade de falar com alguém que, independentemente da idade, pensa sempre fora da caixa

 

Teresa Ribeiro: «Apanharam duas médicas a receber dinheiro de um laboratório farmacêutico. Estranho. Pergunto-me o que terá falhado para o caso ter caído nas malhas da justiça. Cá para mim foi algum colega invejoso que as denunciou, porque como se sabe as boas relações entre laboratórios e médicos nunca são perturbadas pelas autoridades. Nem pela Ordem dos Médicos, sempre muito preocupada em defender a classe no matter what, nem pela justiça

 

Eu: «Um actor tem como missão - muito mais do que profissão - seduzir os outros pela palavra, pelo gesto, pela entoação. Às vezes pelo silêncio, que também constitui uma poderosa arma de sedução. Podemos demitir-nos de um cargo, jamais conseguiremos demitir-nos da nossa vocação. É por isso que jamais me passaria pela cabeça chamar "ex-actriz" a alguém. Mesmo a uma jovem condenada a prisão em Espanha por tráfico de droga.»

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