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Delito de Opinião

Dois acontecimentos editoriais

Pedro Correia, 31.03.22

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São de fresca data, merecem registo e aplauso. Refiro-me a dois verdadeiros acontecimentos no nosso mercado literário.

O primeiro, lançado ainda em Dezembro, é o monumental volume (809 páginas) dos Diários de Sylvia Plath, incluindo os trechos expurgados pelo marido da malograda escritora, Ted Hughes, e recuperados em 1999, após a morte deste. O público português dispõe enfim desta obra no nosso idioma: são oito diários principais, redigidos entre 1950 e 1959, e quinze fragmentos de cadernos de apontamentos, iniciados em 1951 e prolongados até 1962 - meses antes do suicídio da autora de Ariel. Lançamento com a competência a que a Relógio d'Água já nos habituou. Destaco a excelente tradução de José Miguel Silva e Inês Dias.

O segundo, chegado às livrarias já este mês, é História de um Homem Comum (título original: Coming Up for Air). Único dos seis romances de George Orwell que permanecia inédito em Portugal. Elaborado em 1938, pouco depois da saída do escritor de Espanha, onde combateu nas fileiras republicanas, é uma sátira à sociedade britânica das décadas iniciais do século XX. «Um romance notável, ao mesmo tempo divertido e dolorosamente verosímil», como assinalou à época o jornal australiano The Age. Edição da E-primatur, outra chancela que prima pela qualidade. Com tradução digna de elogio de Jacinta Maria Matos, que também assina a introdução. 

Obras que tenho o maior gosto em saudar aqui. Os editores, Francisco Vale e Hugo Xavier, merecem um cumprimento deste leitor atento e grato.

Liberdade de expressão oficial

José Meireles Graça, 31.03.22

Às pessoas que assinam esta proclamação cabem graus diferentes de responsabilidade na parte abominável da Academia portuguesa e da opinião publicada. Infelizmente, só assinaram vinte, decerto por urgência. Procurando, encontrar-se-iam mais umas centenas, ainda que seja duvidoso que fosse vista com bons olhos a assinatura de um anónimo que se desse a conhecer descrevendo-se como Fulano, comunista e entregador da Uber – aquilo é só artistas, em mais do que um sentido da palavra, intelectuais e gente de representação.

Os que conheço são entulho esquerdista, e os que não conheço tresandam à mesma proveniência: Está lá BSS, o conhecido sociólogo do Bloco imensamente prestigiado no Belize e acho que noutros países sul-americanos, incluindo até o Brasil, pelo menos dois escritores, ignoro se de romances ou bulas de medicamentos, gente do teatro, vários jornalistas e professores universitários, até mesmo militares – que Nosso Senhor lhes perdoe que eu, de generosidade, nem por isso.

Como não leio o Expresso por não carecer, para me abastecer de opiniões, de ler a tralha situacionista que por lá se publica, a declaração solene passar-me-ia ao lado não se desse o caso de seguir Vital Moreira, que repesca o exercício. Este Vital aprecio porque é um intelectual do PS, com o prestígio de um percurso político de peso e autonomia bastante para abundar em opiniões, e ser portanto um influente no pensamento político (peço desculpa) do partido, que todavia tem gente que lhe escapa à deletéria autoridade. E como o PS é hoje praticamente o país, a mim convém-me andar ao corrente do que vai naquelas cabeças, pela mesma razão pela qual um epidemiologista se interessa por mutações de vírus.

Vital, com abundância de pontos de exclamação e exageros retóricos que decerto serão considerados, nos cafés de Coimbra, um fino exercício de ironia, associa-se à carta aberta, ainda que não a assine porque, diz, “desde há muitos anos que decidi não alinhar em posições políticas coletivas, sempre seletivas e compromissórias, por descrença na sua efetividade, numa atitude de irredutível responsabilidade política individual. É por isso que tenho o Causa Nossa!”

Confesso: Não assinei porque ninguém me pediu (nem pediria, que raio haviam de pôr na profissão – industrial? Só se fosse dos grandes, e mesmo assim). Se bem que, a bem da verdade, deva dizer que, vendo as assinaturas dos promotores, recuaria com horror, ainda antes de ler – diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és.

Depois de ler, mesmo assim, sugeriria alterações, nomeadamente estas:

Os signatários manifestam a sua admiração pelo povo ucraniano, que dá provas de que o sentimento nacional, que algumas instâncias internacionais gostariam de terraplanar, está vivo e é o cimento que leva cidadãos como nós (como nós porque são depositários dos valores que indistintamente designamos como os do Ocidente) a resistir heroicamente;

A invasão é uma manifestação intolerável de imperialismo e o seu sucesso seria uma derrota não apenas do Direito Internacional e da própria Ucrânia mas também do Ocidente no seu conjunto, o qual, sem ser beligerante, não ignora que é a sua maneira de estar no mundo que ali é também agredida;

A guerra justa é a da defesa perante um ataque injustificado, como é este, e pode ser também a prevenção de outras guerras. Uma vitória russa que não fosse de Pirro constituiria um sinal para outras potências que lançam olhos compridos sobre vizinhos que pretendem anexar.

Isto, ou coisa parecida, tinha de lá estar. Em contrapartida, é claro que haveria parágrafos inteiros para riscar. Quase todos, tal é o afã de “contextualização”, como se houvesse equivalência de razões entre uma parte e a outra.

Mas. Mas. A União Europeia não está em guerra, nem nenhum dos países que a constituem. E mesmo que seja devida à Ucrânia toda a solidariedade, que implica consequências e sacrifícios, não se vê de que forma é que os Ucranianos são ajudados se se suspenderem os Estados de Direito, como é o caso quando a liberdade de expressão da opinião é condicionada, ou quando cidadãos russos, pelo facto de o serem, e sem que sequer se lhes estabeleçam acusações de simpatia com a invasão, são tratados como personae non gratae.

Lamento, lamento muito, que me visse obrigado a deixar ficar estes dois parágrafos:

Repudiamos que se tenha aceitado, sem qualquer espírito critico nem sentido de soberania, uma diretiva da União Europeia que é contrária à Constituição Portuguesa, promovendo a flagrante e grosseira violação dos direitos de liberdade de expressão e informação expresso no artigo 37 - e o de liberdade de imprensa referido no artigo 38.

Assiste-se por toda a Europa a uma “censura necessária” onde, à revelia de todos os proclamados valores ocidentais, se afastam desportistas, fecham exposições, retiram temporadas teatrais, despedem-se encenadores, professores e maestros, suspendem concertos e ballets, cursos universitários de literatura e ciclos de cinema.

Costuma dizer-se que no melhor pano cai a nódoa. Será o caso de dizer aqui que há panos sujos com zonas imaculadas. Vá lá que não falta quem, na parte escorreita do espectro político, que não é esta, perceba que também nisto se joga, com diferença de graus e de valores, a mesma repugnante deriva que já infectou a Covid: há uma verdade oficial, definida pelas autoridades, e quem não a seguir inteiramente é, num caso, negacionista, e no outro haverá o bem-pensismo oficial de inventar a palavra adequada um dia destes.

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 31.03.22

No  Dia  31 de Março  comemoramos o Dia de S. Benjamim e também  o Dia Mundial do Backup.

 

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São Benjamim nasceu no ano de 394 na Pérsia e foi um diácono e mártir cristão, vítima da forte perseguição aos cristãos vivida no início do século V na Pérsia. Benjamim foi preso por um ano pela sua fé.

Foi preso e torturado diversas vezes por nunca ter preterido a fé à liberdade.

São Benjamim acabou por não resistir às torturas, tendo falecido em 422, no dia 31 de março, um dia que acabaria por ficar reservado para a sua celebração.

Conhecer as origens do nosso panteão é cultura. Como os Santos lá nas alturas podem estar nas núvens, no dia de hoje comemoramos também as núvens mais carregadas da todas.

 

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O Backup afinal também  se comemora num dia específico. O que seria de nós sem Backup? 

Pode mesmo dizer-se que seria justo intronizar esta função protectora de todas as nossas manobras online, do foro pessoal e profissional? Já para não falar das fotos a que o tempo tira a cor e que têm vida eterna ( paga, claro ) colorida e editada em backup numa qualquer nuvem perto de si?

Comememoremos hoje também,  com a deferência devida, o dia se S. Backup, que com fé e algum conhecimento na óptica do utilizador, também nos salva.

 

Calendarr/Google

Estradas

Ana CB, 31.03.22

 

É unânime que a invenção da roda foi um dos acontecimentos mais importantes para a evolução da humanidade, sobretudo quando mentes brilhantes se lembraram de aplicar o conceito na criação de meios para o transporte de cargas pesadas. Mas pouca importância é dada ao facto de que essa invenção acabou por arrastar com ela uma outra: a da estrada.

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As estradas são um paradoxo: entidades estáticas, a sua função principal (quiçá única) é facilitar a movimentação – das pessoas e das “coisas”. Imóveis, levam-nos a quase todo o lado. Podemos percorrê-las a pé ou numa variedade de meios de transporte diferentes, mas impelem-nos sempre a avançar. Ninguém fica simplesmente parado no meio de uma estrada. Se queremos parar, saímos dela. Podemos ficar na berma, a olhar para quem passa, ou sentar-nos a descansar, ou fazer qualquer outra coisa, mas sempre à margem. Uma estrada pede progressão, não imobilidade.

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A estrada pavimentada mais antiga que sobreviveu parcialmente até aos nossos dias ligava um cais nas margens do Lago Moeris à pedreira de Widan el-Faras, de onde era extraída a pedra basáltica para as câmaras mortuárias das Pirâmides de Gizé. Com cerca de dois metros de largura e composta por lajes de arenito e rocha calcária à mistura com madeira petrificada, calcula-se que date de pelo menos 2500 a.C., mais século menos século. Mas sabe-se, por exemplo, que na Mesopotâmia já se pavimentavam ruas desde 4000 a.C.

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Gizé

 

No entanto, é aos Romanos que o nosso imaginário associa a construção em massa de estradas. A calçada romana tinha quatro estratos diferentes de materiais e era feita para durar e facilitar a expansão do império, reduzindo o tempo de deslocação das colunas militares e melhorando a comunicação entre as grandes cidades que se iam criando por todo o território ocupado. Desde cerca do ano 300 a.C. e até ao declínio do império, dizem os livros que foram construídos por todo o território cerca de 80 mil quilómetros de estradas pavimentadas. Muitas delas foram continuadamente usadas e reestruturadas até aos dias de hoje; de outras, há troços que subsistem na sua forma praticamente original. Indiferentes aos recuos e avanços civilizacionais ao longo dos séculos e aos desfasamentos técnicos entre as várias regiões e culturas do nosso mundo, as estradas persistiram e foram ganhando cada vez mais importância e presença no planeta Terra, e hoje já não saberíamos viver sem elas.

Ponte romana de Vila Formosa (Alentejo)

 

As estradas são como as pessoas (ou não fossem elas uma invenção nossa!). Umas adaptam-se a cada sobressalto no relevo do terreno: curva para a esquerda aqui, cotovelo para a direita ali, contornam milimetricamente precipícios, lançam-se às alturas das montanhas, esgueiram-se por desfiladeiros que mais parecem buracos de agulha. Outras são impetuosas e cortam a direito por onde passam, rasgam túneis, esventram colinas, abatem árvores, compactam dunas. Outras ainda comportam-se com moderação, ora limando uma ruga orográfica, ora fazendo a ponte sobre um vale apertado ou sobre um rio que não convém incomodar.

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Para lá da sua utilidade facilitadora de movimentos militares e comerciais, as estradas tornaram-se também um “objecto de culto” para quem viaja em lazer. A literatura está cheia de obras épicas (ou nem tanto!) que contam histórias de viagens sobre rodas em estradas intermináveis e têm tanto de jornada de descoberta exterior como interior. O famosíssimo “Pela Estrada Fora”, de Jack Kerouac, trouxe para a ribalta a não menos famosa (e entretanto parcialmente alterada) Route 66 americana, que tinha sido criada em 1926. Os “Diários de Motocicleta” de Che Guevara descrevem uma viagem de 12 mil quilómetros da Argentina ao Peru. O “Na Patagónia”, independentemente da polémica gerada à volta do facto de Bruce Chatwin ter (segundo parece) inventado algumas das suas personagens, permanece uma belíssima narrativa de aventuras nos confins da geografia sul-americana, desde Rio Negro até Ushuaia. O mais recente “Clanlands”, dos outlanders Sam Heughan e Graham McTavish, passeia-nos pelas Terras Altas escocesas e pela sua cultura, entre histórias e diálogos cheios de humor. E o também relativamente recente “Na Planície das Serpentes”, desse “monstro” da escrita de viagens que se chama Paul Theroux, é um relato sem filtros sobre um México multifacetado, dilacerado entre a realidade dura da violência e a sua fantástica e antiquíssima cultura.

 

As minhas primeiras memórias de viagens são, precisamente, as de viajar de carro com os meus pais e a minha irmã. Naquela altura, mesmo em distâncias que hoje consideramos curtas, viajar em Portugal implicava sempre várias horas para chegar ao destino e uma preparação complicada, que envolvia farnel, almofadas para dormir no banco de trás, e sacos com material para todas as eventualidades – mesmo que fôssemos apenas às Caldas da Rainha para comprar fruta e visitar a família e regressássemos no mesmo dia. Desde então, perdi a conta às viagens que fiz por estrada, e viajar de carro permanece uma das minhas formas favoritas de conhecer mundo.

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Independentemente de nos levarem a lugares mais ou menos desejáveis, há estradas que por si só valem uma deslocação propositada para viver a experiência de as percorrer. Porque têm características únicas, porque são belas, porque nos transmitem uma sensação de encantamento, ou porque estão carregadas de História e de significado. Em Portugal, a mais famosa é certamente a N222, não só pelo seu célebre troço entre Peso da Régua e Pinhão – que lhe valeu o título de “World Best Driving Road” atribuído segundo o estudo de uma famosa empresa de aluguer de carros – mas por unir o país na quase totalidade da sua largura, entre Vila Nova de Gaia e Almendra, e acompanhar o Douro em partes do seu itinerário.

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A N222 em Foz Côa

 

Mas há várias outras estradas que me levam a querer voltar a elas uma e outra vez, e me deixam com saudades assim que as abandono. Na N304, percorrer as curvas e contracurvas do troço entre Mondim de Basto e a Campeã é ver no pára-brisas um filme sobre a grandiosidade do Parque Natural do Alvão. No Maciço da Gralheira, ziguezagueando no gume da montanha pela Estrada do Portal do Inferno, sinto-me uma funambulista em equilíbrio no arame. A M518 dá-me acesso à frescura da Fraga da Pena e depois à Mata da Margaraça, que é “só” uma das matas portuguesas mais antigas e notáveis, onde o ambiente é quase irreal. No Alentejo das estradas sem fim, na N246-1 perto de São Salvador da Aramenha há uma recta de um quilómetro em que freixos com 200 anos formam um túnel que parece dar acesso a uma outra dimensão.

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Portal  do Inferno

 

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Mata da Margaraça

10 N246-1 Alameda dos Freixos.JPGN246-1 Alameda dos Freixos

 

Além-fronteiras, entre uma longa lista de estradas que ainda sonho percorrer, há algumas que guardo na memória em lugar especial. Na Costa Rica, um autocarro levou-me (durante quase duas horas para cobrir apenas 90 km) de La Pita a Libéria, sobre um pequeno fragmento desse colosso de muitos milhares de quilómetros que é a Estrada Pan-Americana. Na Roménia, naquele que foi provavelmente o dia de condução mais cansativo de toda a minha vida até agora, desafiei-me a percorrer a icónica Transfăgărășan, cujo ponto mais alto fica acima dos dois mil metros: 151 km através das montanhas, dos quais 90 são de curvas e contracurvas constantes. Um desafio, sim, mas também uma satisfação, porque esta é realmente uma das estradas mais espectaculares do mundo, a todos os níveis. Mais perto, em terras dos nossos vizinhos, a parte cantábrica da N-621 inclui o desfiladeiro de La Hermida, 21 km acompanhando o rio Deva entre paredes de rocha que parecem tocar o céu, e mais para sul cruza a imensidão azul da barragem de Riaño. Na Camarga francesa, entre Aigues-Mortes e Le-Grau-du-Roi a estrada é apenas uma fita de asfalto, completamente recta e plana, rodeada de pântanos e salinas a perder de vista. Quando estive na Croácia, aconselharam-me a esquecer a auto-estrada no trajecto de Split para Dubrovnik e optar pela número 8, que segue o recorte da costa adriática e é de uma beleza fora de série – e eu segui o conselho. Ao lado, no Montenegro, não me arrependi de ignorar o ferry e continuar pela estrada que contorna a Baía de Kotor: o que se perde em tempo, ganha-se em paisagem que enche a alma. E em Itália, a SR2 entre Torrenieri e Bagno Vignoni, na região do Val d'Orcia, superou em muito tudo o que já tinha visto das paisagens toscanas em fotografia ou filme.

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A Pan-Americana na Costa Rica

A Transfăgărășan na Roménia

 

A N-621 na Cantábria

 

Camarga, sul de França

 

A Baía de Kotor, no Montenegro

 

Val d'Orcia, na Toscana

 

Para quem gosta de viajar, as estradas são dádivas dos deuses. Mais do que uma viagem de comboio ou de barco, e certamente muito mais do que uma viagem de avião, viajar por estrada dá-nos toda uma outra liberdade de movimentos e de tempo, e um contacto muito mais próximo com os lugares por onde passamos, com os seus pormenores, as suas características particulares e as suas pessoas. Permitem-nos o acesso a um mundo feito de tantas gentes e culturas diferentes, tantas obras de arte naturais ou construídas, e tantas idiossincrasias, que vai muito para lá do que julgamos ser possível existir – este mundo cheio de maravilhas, e também de desgraças, que é o nosso.

 

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 31.03.22

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José Navarro de Andrade: «Sarah Palin é um bocado desligada, em vários sentidos da palavra, nenhum deles abonatório. As suas falas são por isso desconexas, como se estivesse a descobrir as respostas no preciso momento em que lhe fazem as perguntas. Tornou-se por isso uma especialista em calinadas abissais, que depressa se transformam em catch frases ou em T-shits

 

Teresa Ribeiro: «Dorme como se não houvesse amanhã. Deviam inventar pílulas de gato para as insónias

 

Eu: «Coppola filmou propositadamente à moda antiga, recorrendo à técnica em vigor nos anos 40 e 50, em que a acção decorre - um tempo em que o cinema americano praticamente não utilizava o zoom nem recorria por sistema a planos de corte sincopados nas mesas de montagem. Este virtuosismo técnico faz parte da magia intemporal d' O Padrinho, um filme sobre mafiosos onde a palavra Mafia nunca é proferida. Um filme que pertence ao imaginário de todos nós.»

Reflexão do dia

Pedro Correia, 30.03.22

«Devia ter ficado claro que uma sociedade decente acha que a reacção a uma piada não pode ser uma agressão. Uma vez que o agressor [Will Smith] continuou na sala [da gala dos Óscares] e menos de uma hora depois estava a ser ovacionado enquanto pedia desculpa a toda a gente menos ao agredido [Chris Rock], e justificava o seu comportamento com o "amor", que "nos faz fazer coisas malucas", e com o nobre propósito de "proteger a família", julgo que não ficou muito claro.»

Ricardo Araújo Pereira, hoje, no Público

Nadiya do pobachennya

Maria Dulce Fernandes, 30.03.22

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Fomos completamente apanhados de surpresa, não por uma invasão tipo blitz, mas por uma evasão relâmpago.

A nossa Nadiya de olhos de madona pediu rescisão de contrato com efeito imediato.

Como todo o emigrante, a intenção da Nadiya é trabalhar, amealhar e construir. Não tinha atingido completamente os seus objectivos, mas nestes dias outros valores mais altos se levantam e o principal é ajudar.

Conjuntamente com o marido e com o filho, tomaram um espaço de restaurante onde poderão dar emprego a ucranianos refugiados da guerra, providenciando também habitação para três famílias. Tse ne bahato, não é muito, mas é um começo, porque precisa ajudar, conta a Nadiya com os olhos húmidos, onde baila algum agrado e muita esperança.

A Nadiya em menos de um mês tornou-se uma sombra magra e triste. Nem por isso deixou de executar as suas funções na perfeição e projectar a sua contribuição à causa das suas gentes.

Quando a vejo agarrada ao telefone com as lágrimas a correr, sei que está a ouvir as vozes dos seus afectos lá longe naquele inferno, que isso a destroça e a consome e que não há palavras de conforto.

Ontem foi o último dia. Dei-lhe um abraço e agradeci. Devolveu-me o meio sorriso dyakuyu za vse titon’ko dyakuyu da pravdu.

Vamos voltar a ver-nos e em breve saudar a liberdade. A Nadiya acredita. Eu também. 

 

Foto Google

O homem que perdeu a pressa

Pedro Correia, 30.03.22

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Rui Rio conduziu o PSD à segunda derrota em eleições legislativas, consumada a 30 de Janeiro. Entra para a história do partido, mas pela negativa. Nunca antes um presidente social-democrata tinha somado dois fracassos consecutivos em escrutínios para a Assembleia da República. António Costa bem pode agradecer-lhe.

Neste século, dois dos maiores desaires do partido em disputas eleitorais têm o nome e o rosto de Rui Rio. Que entre 2019 e 2022 conseguiu fazer recuar ainda mais o grupo parlamentar laranja: eram 79 deputados, passaram a 77, contabilizados enfim os votos dos portugueses inscritos no círculo da emigração na Europa. Outra trapalhada em que o ainda presidente do PSD se envolveu, atrasando quase dois meses a posse do novo governo e a entrada em funcionamento da nova legislatura. Para afinal ver o seu partido derrotado em toda a linha também aí: o PS ganhou um deputado extra neste círculo. Reforçando a maioria absoluta: tem 120 lugares no parlamento.

Mais 43 do que o PSD.

 

Outra trapalhada, sim, mas talvez não a última. Porque Rio resiste a assumir as consequências do imenso fracasso que foi o seu mandato na Rua de São Caetano à Lapa. Dois meses após a derrota, insiste em manter-se entrincheirado na sede em vez de ter saído logo, por iniciativa própria, honrando a ética da responsabilidade.

Pelo contrário, adiou o mais possível o processo de substituição, que será ainda mais demorado do que já foi a contagem dos votos da emigração e a instalação da legislatura em São Bento.

O PSD só irá a votos a 28 de Maio - mais dois meses de espera. Mas todo o processo de sucessão só ficará concluído em Julho, mês de férias. Permanecendo até lá com uma Direcção moribunda: faz que anda mas não anda, encalhada em definitivo. Enquanto o PP espanhol - parceiro do PSD no Partido Popular Europeu - viu o líder, Pablo Casado, demitir-se a 22 de Fevereiro e terá o seu sucessor, Alberto Nuñez Feijóo, eleito já neste fim-de-semana.

Apesar da penosa agonia do seu mandato, sobra ainda a Rio energia suficiente para ir distribuindo a sua gente pelos lugares que restam, transformando o provisório em definitivo. Quando o próximo líder enfim tomar posse, encontrará um presidente do grupo parlamentar escolhido pelo antecessor e representantes no Conselho de Estado designados pela mesma via. Um deles, provavelmente, o próprio Rio. 

 

Este homem que agora parece não ter pressa alguma é o mesmo que em Outubro anunciou a intenção de adiar as directas no partido porque havia que preparar sem demora as legislativas e foi ao Palácio de Belém comunicar ao Presidente que a nova Assembleia da República devia ser eleita logo a 9 de Janeiro. Alegando que os problemas no País eram prementes e exigiam não desperdiçar mais tempo.

Cada dia que passa com ele ainda no posto de comando, é mais um dia de descrédito para o PSD. E um dia adicional de satisfação para Costa, que ontem deve ter voltado a sorrir quando ouviu Rio dizer: «Eleva a própria qualidade da intervenção do parlamento. Prestigia o parlamento, revejo-me praticamente em tudo Referindo-se ao discurso inaugural de Augusto Santos Silva como presidente da Assembleia da República. O mesmo Santos Silva que em Dezembro lhe deu uma ensaboadela pública, recomendando-lhe «sentido de Estado».

A repreensão produziu efeito, como se vê. O respeitinho é muito bonito. 

Impressões alemãs (19)

Cristina Torrão, 30.03.22

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Rua de Paderborn, com a torre da catedral em fundo

Apesar de não pertencer às maiores cidades alemãs (cerca de 150.000 habitantes), Paderborn é sede diocesana desde o século IX e possui uma imponente catedral gótica.

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Paderborn é igualmente cidade universitária desde 1614, sendo particularmente conhecida, durante vários séculos, pela sua Faculdade de Teologia.

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Elevada a arquidiocese em 1930, Paderborn tornou-se um dos maiores centros católicos alemães, também por lá ter sido criada a Universidade Católica, em 1971.

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Não sendo das mais conhecidas a nível europeu, a catedral de Paderborn vale bem uma visita.

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Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 30.03.22

As apps pelo visto são IA muito pouco entendidas, como aconteceu com a informação da efeméride do dia de hoje, que nem é insignificante, porque afinal se comemora o Dia Mundial do Transtorno Bipolar, mal de que muita gente padece.

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Dia Mundial do Transtorno Bipolar

"A Perturbação Bipolar caracteriza-se por ser uma modificação do humor que implica a presença de episódios maníacos ou hipomaníaco. Normalmente, as pessoas com este tipo de problemática sentem oscilações de humor entre momentos em que sentem tristeza, culpa, baixa autoestima, menor energia e se isolam das outras pessoas e outros momentos em que sentem euforia, grande agitação e dificuldade no controlo de impulsos. A origem da bipolaridade ainda não é totalmente conhecida pelos médicos. Sabe-se que factores genéticos e biológicos têm um papel determinante no desenvolvimento da doença, mas o estilo de vida, personalidade e certos acontecimentos na vida de alguém também têm a sua influência.

Apesar do aparecimento de redes sociais, websites informativos e blogs, o estigma social e a falta de consciência da generalidade do público continuam a pautar a maioria dos pensamentos em relação a esta doença. Em Portugal, aproximadamente duzentas mil pessoas caem algures no espectro da bipolaridade, o que representa pouco menos de 2% da população. Ainda assim, é notório que este é um tema tabu."(RX)

E porque não ser também o Dia Internacional das Coisas Que Eu Gosto? Rumo ao Catar bem confortados.

 Dia Internacional De Algumas Coisas Que Eu Gosto.

Daquelas que são sempre de repetir.10151340_723404234370122_1883754632_n.jpg

 

Fotos Google

Rotina matinal

Joana Nave, 30.03.22

Naquela manhã sombria, Alice acordou sobressaltada ouvindo fortes rajadas de vento investindo contra os vidros do quarto onde dormia. Tinha tido uma noite agitada, repleta de sonhos surrealistas com rostos conhecidos. Espreguiçou-se lentamente, fazendo estalar todas as vértebras até à nuca, soltou dois bocejos e esgueirou-se para fora da cama. Os pés tocaram o tapete macio e procuraram com pouca precisão os chinelos. O Trovão tinha-os arrastado para junto da secretária, onde encontrou também os óculos. Vestiu um casaco de malha que usava como agasalho e foi lavar a cara para ver se espantava o sono. A água fria soube-lhe bem, massajou com as pontas dos dedos embebidas em hidratante o rosto limpo, escovou os dentes e o cabelo, e foi até à zona da cozinha preparar um café. O aroma do café forte, acabado de fazer, despertou-lhe todos os sentidos. Inspirou profundamente, fechando os olhos para saborear melhor aquele doce momento. Com a chávena de café numa mão e um livro noutra, foi até junto da janela que dava para o jardim e sentou-se no cadeirão. O Trovão apareceu a abanar a cauda e sentou-se aos seus pés. Alice olhou lá para fora, viu as árvores que dançavam com o vento, as folhas verdes que acompanhavam a dança, os pássaros recolhidos nos ninhos, e o sol tímido que espreitava no horizonte, tentando rasgar as nuvens espessas que o cobriam, para tomar o lugar da lua. Esta é uma manhã perfeita, pensou, e mergulhou os olhos nas páginas que pulsavam no seu colo, ávidas de a transportar para um mundo de fantasia.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.03.22

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Ana Vidal: «Um exemplo da nova (e excelente) música que se faz por cá. A letra lembrou-me aquela célebre frase do Dumas: "Há mulheres que gostam tanto dos maridos que, para não os gastarem, usam os maridos das outras."

 

João Campos: «Pois eu cá mandaria pintar o país todo de branco-cru. Ficava mais bonito. E uniformizado.»

 

João Carvalho: «O Citroën Ami 6 Break Confort era ronceiro e de baixos consumos, em contraste com os Prinz 1000 anteriores lá de casa. Creio que foi aí pelos finais da década de 60. Era branco-sujo, com estofos pretos. Tinha o seu quê de divertido, isso o Ami 6 tinha, e aquela versão Break era muito mais parecida com um automóvel normal do que a versão Berline, cujo estranho corte do óculo traseiro não contava com uma aceitação que pudesse considerar-se razoável: os poucos adeptos constituíam a explicação óbvia para haver muito mais Breaks do que Berlines.»

 

Luís Menezes Leitão: «Quero aqui manifestar o meu aplauso e o meu profundo reconhecimento a José Ribeiro e Castro por ter votado coerentemente na defesa de Portugal, ao rejeitar uma inenarrável proposta de abolição do feriado do 1º de Dezembro. Nasci com esse feriado a ser comemorado, aprendi na escola primária o heroísmo dos conjurados que acabaram com a submissão de Portugal a um rei estrangeiro, e desejo morrer com esse dia a continuar a ser feriado em Portugal.»

 

Patrícia Reis: «A Egoísta ganhou o prémio Ouro para cratividade e inovação na comunicação em papel com a edição dedicada ao tema Viagem e, para terminar em beleza, ganhou um dos 4 Grandes Prémios da Noite. Foi bonito. Obrigada à Estoril Sol por acreditar há 11 anos numa revista de curtas ficções e portfolios de artistas. Esta foi mais uma edição dos prémios da Meios e Publicidade.»

O apogeu do ofendido

Pedro Correia, 29.03.22

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Sinal dos tempos: um comediante que ganha a vida a fazer humor perde a cabeça e agride um colega de profissão, em pleno palco, com mais de 15 milhões de pessoas a assistirem à cerimónia, só nos Estados Unidos. Não contente com isso, desata a injuriá-lo aos gritos. Qual o crime cometido pelo colega? Uma piada inócua sobre o visual da mulher do agressor, que se sentiu ofendido.

Tudo isto na chamada «noite dos Óscares», em que a indústria do entertenimento norte-americana se homenageia a si própria numa gala anual que congrega vedetas milionárias do sector -  várias das quais construíram as respectivas carreiras com piadas muito menos inócuas do que esta que motivou a agressão. Se cada visado nessas graçolas respondesse da mesma forma, haveria um cenário de violência generalizada e compulsiva: toda a indústria andava à tareia.

 

Aqui o mais preocupante é o retrocesso que representa na liberdade de expressão. O lote de temas interditos vai aumentando, com o aplauso dos basbaques. Fazer uma simples piada, seja sobre que assunto for, logo provoca ondas de indignação das facções tribais que se sentem atingidas - pelo sexo, pelo género, pela orientação sexual, pela pigmentação da pele, pela etnia, pela religião, pelo sotaque, pela filiação clubística ou pelas características físicas ou psicológicas. 

«A liberdade de odiar jamais esteve tão descontrolada nas redes sociais, mas a liberdade de falar e de pensar nunca esteve tão vigiada na vida real», sublinha a escritora francesa Caroline Fourest, colaboradora do Charlie Hebdo, num estimulante ensaio intitulado Geração Ofendida - Da polícia cultural à polícia do pensamento (tradução minha, pois a obra ainda não existe em português).

Agora qualquer ofendido é levado em ombros, justificando o silenciamento dos supostos ofensores. «Nos Estados Unidos, basta a palavra "ofender" para que uma conversa seja apagada», observa Caroline Fourest, sublinhando: «As sociedades contemporâneas puseram o estatuto de vítima no posto mais elevado do pódio.» 

 

Que o amor à liberdade está em retrocesso acelerado é algo que se comprova nas redes sociais pelas reacções de generalizado aplauso ao agressor, Will Smith, nas últimas 24 horas. Aplausos até daqueles que desatariam aos gritos, denunciando o suposto carácter «racista» do incidente, se o humorista negro Chris Rock tivesse sido esbofeteado por um colega de pele mais clara em idênticas circunstâncias. 

Pouco antes, numa das mais apolíticas cerimónias de distribuição de estatuetas da última década, a vasta plateia tinha mantido meio minuto de silêncio em homenagem às vítimas da brutal agressão russa à Ucrânia.

Triste simbolismo o daquela noite no Teatro Dolby, em Los Angeles: minutos depois, fazia-se ali a demonstração prática de que a violência física é o método mais recomendável para a resolução de conflitos. E triste recado ao mundo vindo da chamada América «liberal» - tão rendida afinal aos expedientes das autocracias, tão transparente nesta crescente aversão à liberdade.

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 29.03.22

Pois, ao que parece o dia 29 de Março foi votado ao esquecimento e não é dia de efeméride.

Não é por enquanto, pois material comemorativo é o que não falta.

Que tal Dia Comemorativo dos Papagaios do Putin e das Associações de Papa-Cassetes?

 

É de pequenino que os doutrino... 

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A vida em K...

Viver ao rubro as emoções programadas.

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Um último apontamento sobre os votos dos emigrantes

Cristina Torrão, 29.03.22

Apesar de o processo estar (para já) concluído e o novo governo prestes a tomar posse, resolvi deixar aqui excertos de um artigo de opinião assinado por Gonçalo Galvão Gomes, intitulado "A confiança perdida", no PT-Post nº 332 (jornal português na Alemanha), depois de ser conhecida a resolução do Tribunal Constitucional de repetir as eleições:

Em 2015, durante a contagem dos votos da emigração, recebo uma mensagem da pessoa que nomeei como responsável de uma das mesas de contagem. - Há envelopes a chegar sem cartão de identificação, achas que os devíamos anular?

Foi a primeira vez que tive contacto com a realidade da contagem dos votos e lembro-me que fiquei abismado com a ideia de que cabia ao responsável da mesa decidir se um voto devia ou não contar, quando claramente não cumpria os regulamentos para ser considerado válido. - Cumpre o que está na lei eleitoral e anula tudo o que estiver inválido - foi a minha resposta.

A minha mesa anulou centenas de votos naquela noite, muitas não o fizeram e outros milhares de votos foram contados de forma irregular.

(...)

Nesse ano, no meu primeiro como emigrante, e na minha primeira vez enquanto candidato pelo círculo Europa, embora estivesse graduado em saber como as instituições portuguesas funcionam, nunca pensei que numa eleição legislativa, num a(c)to daquela natureza, existisse tamanha arbitrariedade na avaliação dos votos.

Desde aí nada mudou e a eleição de 2019 teve o mesmo desfecho com votos a serem contados (ou não), conforme o apetite do responsável da mesa.

Em relação aos deputados eleitos pela emigração:

Estes podem, devem e até já deviam ter pedido uma mudança nos regulamentos. Não o fizeram, não quiseram saber e têm corrompido os a(c)tos eleitorais com arranjinhos de bastidores. É absolutamente vergonhoso ver pessoas como o senhor deputado Paulo Pisco do Partido Socialista, que já o é há duas décadas, aparecer agora no papel de vítima, como se não tivesse responsabilidade no acontecimento. Pior do que não assumir a sua responsabilidade, é culpar os outros e escrever artigos como o que escreveu no Público, a responsabilizar o PSD pela anulação da votação.

Na verdade, o deputado Paulo Pisco torna à carga nesta mesma edição do PT-Post, num artigo intitulado "Recuperar a confiança das comunidades e votar":

Por que razão o PSD se comprometeu e depois rompeu o entendimento entre todos os partidos para aceitar como válidos os votos sem o cartão do cidadão, numa reunião que foi realizada ao abrigo da lei no dia 18 de Janeiro? [Isto foi escrito depois de o Tribunal Constitucional declarar ilegais reuniões e acordos desse tipo].

E por que recusa o PSD pedir desculpa aos eleitores que agora terão de voltar a pronunciar-se, tal como, humildemente, fez o líder do PS e Primeiro-Ministro António Costa?

(...)

Nada do que aconteceu deveria ter acontecido. Essa é a verdade. Esta é uma crise completamente gratuita, que poderia muito bem ter sido evitada, não fosse o PSD ter medo do voto das comunidades e soubesse respeitar a vontade livre de participação dos eleitores e o seu direito de voto.

Logo no parágrafo seguinte, Paulo Pisco dá, sem o menor pudor, o dito por não dito, ao admitir que o problema está na legislação:

A lei terá de sofrer as necessárias alterações e para tal será necessário um consenso alargado na Assembleia da República, de forma a facilitar o direito de voto dos nossos compatriotas.

(...)

É esse agora o nosso compromisso, de dar prioridade à alteração da lei eleitoral da Assembleia da República, para que uma situação como a que ocorreu nunca mais volte a acontecer.

Pelos vistos, este tipo de discurso manhoso dá os seus frutos. O PS acabou por ser favorecido nesta repetição.

Curiosidade: Neste artigo, Paulo Pisco refere uma guerra às portas da Europa, na Ucrânia. E eu a pensar que a Ucrânia e parte da Rússia eram solo europeu!

Missão Ucrânia 2022 - III

Paulo Sousa, 29.03.22

No dia seguinte regressamos a Siret para a última leva de hóspedes. Depois disso iniciamos o regresso e só apanhamos mais três pessoas que já se encontravam na Roménia.

Sobre a forma como os países europeus estão a reagir perante a crise humanitária em curso, importa referir que na Ucrânia existe um passaporte para uso interno, que equivale ao nosso cartão de cidadão, totalmente em cirílico, e também um passaporte internacional para quem sai do país, este em cirílico e em alfabeto latino. Os menores de 14 anos têm apenas uma certidão de nascimento sem foto e exclusivamente em cirílico. Antes da guerra em curso, apenas o passaporte internacional permitia a saída do país. Neste momento, qualquer destes documentos são suficientes para atravessar as fronteiras terrestres com os países vizinhos. Quando entramos na Hungria, e no espaço Schengen, fomos obrigados a aguardar pelo demorado processo em que todos os nossos hóspedes foram fotografados e foram registadas as respectivas impressões digitais. Mesmo as autoridades húngaras que se notabilizaram pelos entraves colocados aos refugiados do médio oriente, mudaram radicalmente a sua atitude.

Apesar do tradutor do nosso grupo não ter tido um instante de folga, não conseguíamos comunicar com todos os nossos hóspedes da mesma forma. Com cada um dos que arranjamos forma de conversar, soubemos histórias incríveis. Tentarei postar aqui dois casos específicos que me impressionaram.

Ao mesmo tempo que a nossa operação decorria na Roménia, íamos conversando com o resto do grupo na Polónia. Ali a dimensão das coisas eram bem maior, na mesma escala da pressão a que as fronteiras polacas estão a ser sujeitas.

Desde o início que tivemos conhecimento de um grupo de pessoas em Dnipro que estava dentro de um bunker e que tentava sair da Ucrânia. As conversas com o padre que liderava este grupo decorriam através de uma cadeia de contactos e o que se ia sabendo não permitia um planeamento rigoroso. Esse grupo de perto de 100 pessoas era composto por bastantes crianças, alguns órfãos e também alguns deficientes. A possibilidade de saírem dali de autocarro exigia mais do que um veículo, assim como a que a viagem fosse nocturna para evitar que pudessem ser um alvo para as tropas russas. Na sua primeira tentativa soubemos que um dos autocarros avariou e tiveram de voltar para trás. Depois disso o plano passou a incluir uma viagem de comboio. Assumimos para com o referido padre, que chegados à Polónia lhe asseguraríamos transporte para Portugal. Os dias foram passando, e enquanto aguardávamos por notícias deles a nossa capacidade de transporte ia ficando esgotada. Foi quase na última hora que finalmente soubemos que estavam a chegar à fronteira de Chelm. Quem acompanhou a chegada de todos eles, num comboio apinhado de gente em pé, com os rostos quase ocultos pelas vidros embaciados da carruagem, diz ter-se lembrado das imagens a preto e branco que associamos ao pior da Segunda Guerra Mundial. Mas desta vez havia alguém à espera deles.

Por já não termos lugares vagos para estas 88 pessoas, a solução passou por contratar dois autocarros polacos e os valores necessários para esse transporte ultrapassavam os 20.000 EUR. Pelo sistema que usamos para poder comunicar dentro de todo o grupo, íamos acompanhando todos estes passos. Foi lançado um apelo geral para que mobilizássemos todos os nosso contactos. Conseguir ajudar este grupo, o mais frágil de todos quantos lidamos, seria a melhor forma de terminar a missão. A divulgação que foi sendo feita de toda a operação através das redes sociais, foi neste momento um factor crítico e não pudemos deixar de ficar emocionados com a rapidez com que esse valor foi coberto por diversos donativos. Em menos de 20 minutos foi possível confirmar a contratação dos autocarros. Para quem dúvidas disso tivesse, ali entendeu que o dinheiro é de facto apenas um meio e não um fim.

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Foto tirada na fronteira de Chelm

O regresso até casa exigiu mais umas dezenas de horas de condução, rodando condutores, consumindo mais uns litros de café e de bebidas energéticas. Dadas as necessidades do nossos hóspedes mais novos,  acabamos por fazer mais paragens.

Muitos foram os sentimentos que nos assaltaram ao longo das longas horas do regresso. Connosco trazíamos pessoas que fugiam da guerra, e no sentido contrário vimos seguir baterias de artilharia, veículos blindados, de engenharia militar e muito mais material transportado em veículos camuflados. Vivemos hoje dias diferentes dos que até agora tínhamos conhecido. O empenho colocado em ajudar os desconhecidos que connosco viajavam, misturou-se com a apreensão de como tudo o que estávamos a fazer será visto por nós próprios se, por nossa infelicidade, a guerra ultrapassar as fronteiras ucranianas.

No regresso tentámos estabelecer uma rede de diversos locais onde pudéssemos descansar. Todos puxamos pela lista de possíveis contactos no sul da Alemanha, centro de França e norte de Espanha. Algumas dezenas de chamadas desencadearam centenas de outras e em pouco tempo havia já uma lista considerável de possibilidades. A nossa colega delituosa Cristina Torrão foi também metida ao barulho e sei bem do empenho que colocou no favor que lhe pedi. Muito Obrigado Cristina.

Acabamos por pernoitar em Ulm, distribuídos por casas de emigrantes portugueses e também num hotel da cidade. Tudo nos foi oferecido sem que nos deixassem despender de um cêntimo. As refeições foram fornecidas por um restaurante português, e enquanto saboreávamos um excelente arroz de pato, sentimos mesmo que estávamos em família.

Uma vez que nem todos os carros iniciaram o regresso ao mesmo tempo, a chegada a casa foi acontecendo ao longo de dois dias. Os últimos a chegar tinham um numeroso grupo à sua espera e uma refeição quente. Quase não houve energia para discursos nem para muitas manifestações do alívio e da satisfação que sentíamos. Todos estavam apenas a começar a processar o que tinha acontecido nos últimos dias, em que uma semana equivaleu a bem mais que um mês de vida. O sentimento de missão cumprida (e bem comprida) era geral. Todos sabíamos que até percorrer o último quilómetro, tudo estava ainda por fazer. Bastava que um carro fosse à berma e a missão podia ser um fracasso. Por isso, na catarse da chegada correram mais lágrimas e trocaram-se mais abraços, do que palavras foram ditas.

Nos escritos da antiguidade, salvar uma vida é como salvar a humanidade. Sem saber se o que tínhamos vivido se podia encaixar nesse pensamento, não duvido que sentimos que, pelo menos, nos estávamos a salvar a nós próprios. Nas redes sociais, os fiscais da moral dos outros, sentados no sofá e de dedo em riste, classificam missões como esta como a prova do racismo dos portugueses, uma vez que nada de comparável foi feito para com os sírios. A nossa sentença é óbvia e inabalável. Mas eu gosto é das pessoas que apenas às vezes fazem coisas boas, e por isso sinto que foi um privilégio conhecer tanta dessa gente nesta viagem.

Dentro da caravana seguia também o Henrique Ferreira, jornalista do Porto Canal, que foi reportando a evolução da Missão.

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Clicar no foto para ver a entrevista.

Como já se ia suspeitando, os testes rápidos confirmaram umas quantas infecções de covid dentro da caravana. Se a moral ajudar a domesticar o bicho, então esse não será mais do que um detalhe na história da missão.

Há ainda um outro aspecto digno de registo. Os mais experientes nestas coisas já tinham lançado o alerta a todo o grupo. Quanto maior for a exigência física e emocional de missões como esta, maior a dificuldade que se tem em regressar às rotinas prévias, e maior será o impulso para as repetir. A uma escala diferente, os repórteres de guerra e as tropas especiais passam exactamente pelo mesmo processo. Independentemente do que se tenha conseguido fazer, nada está resolvido. O regresso ao palco das operações é sempre justificado pela dimensão humana e até histórica do que desenrola na linha da frente dos combates. Nós estivemos a uma distância significativa dos combates, mas tivemos percepção de alguma da dimensão humana que deles resultam e, como nunca até então, sentimos o travo dessa adrenalina que se pode tornar aditiva e contra a qual não há metadona que acuda. No grupo de mensagens criado para a Missão o assunto não parou. Logo que a covid o permita, temos de regressar. Ajudamos “apenas” 284 pessoas a fugir da guerra e os deslocados são aos milhões.

É difícil olhar friamente para todos estes números. Não fosse o facto de, por detrás deles estarem os nossos hóspedes, de nos recordarmos do seu nome, do seu rosto, das suas lágrimas, dos seus sorrisos e das suas histórias, e tudo se poderia reduzir facilmente a uma estatística distante. Mas assim, fico sem saber o que pensar ou dizer.

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