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Delito de Opinião

Memórias da Ucrânia - V

Paulo Sousa, 28.02.22

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Estes monumentos encontram-se todos num espaço que não ultrapassa os 100 met. Neles podemos observar alguns dos pilares da identidade ucraniana, o cristianismo ortodoxo, a força da memória da Grande Guerra da Pátria que é como os soviéticos identificam a Segunda Guerra Mundial e a propaganda sovietica, ao lado da bandeira a Ucrânia.

Fotos tiradas a poucos quilómetros após entrada na Ucrânia pela fronteira de Mamalyga, vindo da Moldávia, em 2018.

Dezoito milhões de pessoas

Pedro Correia, 28.02.22

Sete milhões de pessoas, por estes dias, terão abandonado as suas casas na Ucrânia. Mais de meio milhão já cruzou as fronteiras --  de carro, autocarro ou comboio -- na Polónia, na Hungria, na Eslováquia e na Roménia desde quinta-feira, segundo revelou o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. O êxodo vai-se intensificando, como testemunham numerosos repórteres nas zonas fronteiriças. 

Estimativas da ONU indicam que a agressão russa à Ucrânia pode provocar um total de 18 milhões de desalojados. São vítimas da guerra também - não apenas os mortos e os feridos. Convém termos isto sempre presente.

Coisas que é preciso dizer

beatriz j a, 28.02.22

A UE e a Comissão têm estado à altura da situação. O que se tem visto nestes poucos dias é aquilo que gostávamos de ter visto sempre -união, solidariedade, lucidez e coragem- e que esperamos não desapareça rapidamente a seguir a esta crise. Mostraram que são capazes. É verdade que também me parece que a pressão da opinião pública um pouco por todo o lado, nas redes sociais e nas ruas, empurrou os políticos que de início estavam indecisos, mas a verdade é que podiam não ter estado à altura dos acontecimento e estiveram, o que dá gosto ver.

Esse terá sido o grande erro de Putin. Olhando para a situação no seu esqueleto, vejo esta linha de acção de Putin ter um começo remoto na reacção de Bush e da sua entourage, Rumsfeld, Collins e companhia ao 11 de Setembro. Dez anos de destruição irresponsável e insana no Médio Oriente, a que se seguiu uma crise de refugiados, não nos EUA que a causaram, mas na Europa, que fez surgir uma desunião e ganância na UE (os países do Norte a perseguirem as economias do Sul) e EUA, que deu origem ao Brexit e a Trump e que acabou na saída vergonhosa de Biden do Afeganistão. Putin viu neste caos e desunião, por uma lado fraqueza e por outro, oportunidade, mas esqueceu-se que a Europa, tendo uma história de guerras, tem também uma história comum de povos entrelaçados por laços familiares, alianças comerciais e políticas.

 

também publicado no blog azul

Somos mais ou menos ucranianos*

José Meireles Graça, 28.02.22

O estalinista reciclado em czar deu uma de Pedro o Grande e engoliu um território seis vezes maior do que o de Portugal, e com mais de 44 milhões de habitantes, para almofadar o seu país, que é de longe o maior do mundo.

O maior mas com relativamente pouco mar navegável e deserto: 9 habitantes por km2 (EUA 36/km2, China 149/km2, França 119/km2, Grã-Bretanha 282/km2, Brasil 25/km2, a própria Ucrânia 72/km2, só para dar alguns exemplos).

O grande rival desde os tempos do comunismo nunca foi invadido porque tem mar de dois lados e, do Norte e do Sul, apenas dois vizinhos, ambos comparativamente muito mais fracos. Já a Rússia pode ser e tem sido facilmente invadida, mesmo que depois os penetras descubram que a digestão é impossível.

O poder imperial russo sempre soube disto. E com o regime comunista a fome juntou-se à vontade de comer porque às necessidades estratégicas de segurança somou-se o imperativo humanístico da difusão do socialismo científico. À boleia desta doutrina, e dos resultados da II Guerra Mundial, a Rússia tornou-se uma superpotência. E quando esta implodiu deixou a memória da grandeza pretérita enquanto as franjas do império deram à sola para se irem acolher, as que foram aceites, debaixo do guarda-chuva da OTAN.

Esta, a OTAN, garantiu durante décadas que a Europa Ocidental vivesse em paz, com um inimigo comum que lhe servia de cimento, e que era a URSS. Foi aliás a OTAN, e não as gabadas excelências da União Europeia, que a garantiram, à paz. E a percepção de que o urso russo, ferido, podia ainda ser perigoso; a constatação de que há poderes ascendentes que talvez ainda nos venham a pôr, como os deles, os olhos amendoados; a infeliz circunstância de a Europa ter uma longa tradição de batatada interna; a inércia – tudo concorreu para que a OTAN não tivesse seguido o caminho da sua contraparte do outro lado, o Pacto de Varsóvia.

Isto não impediu que os últimos presidentes americanos começassem a torcer o nariz a pagar o pato da defesa europeia e a sugerir uma grande inconveniência – que a Europa contribuísse mais com recursos e menos com perdigotos.

A OTAN é, para já, um vencedor desta guerra: as alianças militares, mormente se bem-sucedidas, é melhor preservá-las. E os federalistas europeus outro: do que precisamos é de um exército europeu, vai ser uma cantilena que agora deixa de parecer, como de facto é, uma loucura.

Esta sumária descrição dos factos insere-se num esforço de objectivação: a realidade tem os seus motivos e a ponderação destes costuma ser boa conselheira – os estados de alma não. É esta sobriedade que permeia o discurso de quem lembra dois factos: um é o de que a geopolítica casa mal com discursos moralistas; e o outro que o direito internacional (que Putin espezinha com despudor) só seria verdadeiramente direito se houvesse um aparelho repressivo para o impor, como existe dentro dos ordenamentos nacionais. Como não há, restam os factos.

Foram estas considerações que levaram a que a Ucrânia não tivesse sido admitida na OTAN. Afinal de contas, a génese da aliança tem um carácter defensivo anti-soviético, que se confundia, na natureza das coisas, com anti-russo. E isso, mais o peso da história, no caso consubstanciado pela emergência relativamente recente da Ucrânia como Estado-nação, levava a que se estimasse que tal adesão fosse encarada como uma provocação, por ficar a Rússia cercada de inimigos potenciais.

Sucede que as opiniões públicas do Ocidente acham a guerra uma coisa bárbara e primitiva, e portanto a missão da OTAN é evitá-la: admitir as repúblicas bálticas, todas em 2004, era uma coisa; e a Ucrânia outra. O que não faz com que o cidadão ucraniano que hoje se vê indefeso perceba por que razão tem menos direito à solidariedade do que, por exemplo, o Búlgaro ou o Lituano.

Não percebe ele nem a generalidade das opiniões públicas. Excepto pelo facto aborrecido de que estas querem ganhar guerras com a condição de não as pagar, ainda menos travá-las, e até mesmo exigindo dos seus poderes que lhes limitem os incómodos.

Que isto é assim mostra-se pelo facto de as reacções, até agora, terem consistido numas sanções piedosas, devidamente calibradas para não terem um efeito boomerang.

É possível que os cidadãos europeus, velhos, cansados, socialistas de obediências várias, albergando as suas decrépitas quintas-colunas do comunismo derrotado, que hoje quase que unicamente por antiamericanismo primário defendem a agressão putinesca, comecem a cair em si: a história não acabou, e projecta sombras compridas; e si vis pacem para bellum.

Este acordar é outra consequência da guerra. O mais ver-se-á com a evolução: não é impossível que Putin descubra que afinal a sua população não é tão entusiástica como ele da restauração da superpotência, se com isso continuar a arrastar os pés do desenvolvimento e, neste momento, nem sequer há a certeza de que a Rússia não se vai atolar num osso guerrilheiro a lembrar o pântano do Afeganistão.

E pode bem ser que, no nosso tempo em que a guerra chega pela televisão e pelas redes sociais, mesmo que filtrada, mesmo que embrulhada em notícias falsas, os cidadãos russos, antigos irmãos dos ucranianos nas delícias do socialismo, descubram que não estão na realidade ali potenciais inimigos, como não o são verdadeiramente aqueles países que fizeram uma aliança para se defenderem de uma doutrina que eles próprios já enterraram.

Só dúvidas. Entretanto, as bandeirinhas da Ucrânia em milhões de murais no Facebook dizem bem de quem as põe. E diriam melhor se os respectivos donos estivessem dispostos a pagar forças armadas porque a independência não sai de graça; e se lembrassem que não é a melhor das ideias ir sempre buscar energia ou bens onde são mais baratos, quando o preço disso seja pôr na mão do fornecedor mais poder do que o que nos convém.

 

* Publicado no Observador

A tíbia FIFA

jpt, 28.02.22

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(Postal para o És a Nossa Fé)

Não será agora o momento para muito elaborar sobre as características intrínsecas da FIFA - demonstráveis pela atribuição da organização do próximo Mundial à ditadura teocrática do Catar, ainda por cima ao invés de qualquer racionalidade desportiva. Mas a tíbia atitude face aos acontecimentos de agora, propondo-se mimetizar o comportamento do COI ao patrocinar a pantomina de uma representação russa desprovida dos seus símbolos, é o típico "nem sim, nem sopas". É inaceitável. Muito bem vão as federações da Polónia, República Checa e Suécia, que já anunciaram a sua indisponibilidade para jogarem com a selecção do país que fere deste modo a segurança mundial e que aventa, a níveis retóricos que desconhecíamos nas largas últimas décadas, a utilização de arsenal nuclear.

Face a esta mercenária atitude da direcção da FIFA será de exigir à nossa Federação que se demarque de imediato dessa via, defendendo publicamente a exclusão russa. E, se tal não acontecer, será de exigir ao nosso governo que execute todo o tipo de represálias legalmente disponíveis sobre a FPF e seus associados. Entre as quais, se tal for possível, uma simbólica: retirar-lhe a possibilidade de utilizar os símbolos nacionais.

Eficácia russa

Sérgio de Almeida Correia, 28.02.22

22254064_3KWAu.jpeg(Anadolu Agency/Getty Images)

"On February 21, Russian President Vladimir Putin announced the recognition of the Donetsk and Lugansk People’s Republics. The treaties on friendship, cooperation and mutual assistance were signed with their leaders. On Thursday morning, Russian President Vladimir Putin announced a special military operation based on a request from the heads of the Donbass republics. Russia’s Defense Ministry reported later that the Russian Armed Forces were not delivering strikes against Ukrainian cities. The ministry emphasized that the Ukrainian military infrastructure was being destroyed by precision weapons and there was no threat to civilians." (TASS, Russian News Agency)

Na imagem, a confirmar a notícia e as palavras do ministro da Defesa russo, vê-se uma infra-estrutura militar ucraniana destruída por uma arma de precisão que poupou a população civil. 

Um sucesso notável face ao que se passou na Síria com as acções militares dos norte-americanos.

Memórias eslavas

Paulo Sousa, 28.02.22
Desencadeei em 2017 um projecto de uma viagem que em determinado momento me levou a conhecer a Ucrânia.
A ideia original não foi minha pois apanhei-a numa conversa no bazar de Teerão. Um holandês andava a circular de moto pela Eurásia por etapas. Após cada troço de cerca de uma semana ou duas, deixava a moto estacionada e regressava a casa para mais um período de trabalho. Logo que tinha oportunidade regressava de avião para onde a tinha deixado e continuava rumo a este.
Dentro desta linha, juntamente com o meu irmão e mais dois amigos compramos um já idoso Mercedes a gasolina, cujo bloco do motor poderia ter equipado um tanque militar. Adquirimo-lo a preço de revenda, sem garantia e com vários maduros na chapa, o que ajudou a que não ficasse muito caro. As letras da matrícula da nossa querida máquina (JR) inspiraram a alcunha que acabamos por lhe atribuir, Jairzinho. Não era muito criativo, mas nessa altura o Jair Bolsonaro não era mais do que um desconhecido em ascensão, e o nome assim era simplesmente improvável.
Sem saber onde ia terminar a viagem, achamos que fazia sentido começar todo o projecto no Cabo da Roca. Assim, debaixo do sol domingueiro nos idos de Maio de 2017, almoçamos na Tasca da Boa Viagem na Ericeira. Fomos ao ponto mais ocidental da Europa continental e regressamos a casa. O nome da tasca era, e foi, um bom augúrio e tudo correu pelo melhor.
A maior dificuldade era sair de casa tendo um local alinhavado para estacionar, de forma a que quando chegássemos ao destino não perdêssemos muito tempo à procura de onde deixar o carro.
Muitos telefonemas e alguns emails mais tarde, tudo ficou combinado. Havia um sérvio, amigo de um outro tipo que tinha um avaliação positiva numa plataforma de internet que alinhava na coisa. Por 20 euros por mês guardaria o carro numa povoação na margem norte do Danúbio, bem próximo de Belgrado. Com este local e a data de regresso a fazer de baliza, idealizamos um trajecto pelos Balcãs, que apenas um de nós tinha parcialmente visitado.
Quando o grande dia chegou, seguimos sem interrupção quase até Verona. Depois de uma merecida noite de descanso, entramos na Eslovénia, seguimos pela costa de Croácia, Bósnia, Montenegro, Albânia, Kosovo, Macedónia (agora “do Norte”, à época apenas “ex-República da Jugoslávia”) e Sérvia. Foi uma memorável semana, carregada de descobertas, excelentes memórias, que já alimentaram vários postais aqui no DO.
Pouco mais de um ano depois, regressamos para junto do nosso Jairzinho, que, entretanto, necessitara de uma nova bateria, e seguimos para a Roménia, Moldávia (com uma passagem pela Transnístria) até à Ucrânia.
A paragem na Ucrânia foi condicionada ao facto de um nosso vizinho ucraniano nos ter assegurado que a sua família tinha onde guardar o nosso veículo durante o tempo que entendêssemos necessário. Este nosso amigo, a sua esposa e mais tarde os filhos, adoptaram Portugal como país para residir e trabalhar. Como tivemos mais tarde oportunidade de expor aos seus pais e restantes familiares que nos aceitaram à mesa num memorável jantar, este casal e os seus filhos eram considerados pelos que os tinham recebido como estrangeiros, como uns notáveis embaixadores da Ucrânia. Trabalhadores exemplares, cumpridores das suas obrigações, facilmente sorridentes e cordiais, esforçados e competentes aprendizes da língua de Camões, fizeram-nos a todos ter a consciência da sorte que tínhamos nos emigrantes que nos tinham tocado.
Soube anteontem que o seu filho mais novo, contra todas as recomendações, insistiu há duas semanas em regressar à Ucrânia para o aniversário da namorada. Está agora na pequena povoação onde vivem os seus avós e demais família, impossibilitado pela lei marcial de atravessar legalmente a fronteira.
Não me esqueço da conversa que tive com o pai dele pelo telefone na qual me disse: “Se alguém nos ajudar, é a terceira guerra mundial”. Voltámos a falar hoje. Estava numa manifestação de apoio ao seu país, e por sugestão da organização tinha levado alguns bens que serão enviados para apoiar as forças armadas ucranianas.
Nesta sequência ainda fomos à Bielorrússia, mas isso fica para outro postal.
 
Não posso terminar este texto sem que aqui registe uma outra memória, mais antiga, de 1997, quando estive em Moscovo e São Petersburgo. Durante duas semanas que por ali andei juntamente com um outro amigo, fui exemplarmente recebido pela família de uma amiga desse amigo, e onde celebrei o meu aniversário. Ouvi os parabéns cantados em russo, recebi uma prenda que guardo com saudade e brindámos com vinho e vodka em repetidos nasdrovie, que garantiram uma avaliação bem positiva dos fígados tugas.
Dentro da Rússia pós-soviética, esses eram tempos bem diferentes dos actuais. O pai e a babuska babulinka da nossa amiga eram sobreviventes do cerco de Leninegrado. O pai dela, então patriarca da família, além de sobrevivente do cerco, era também um cientista graduado e reformado das forças armadas, cuja última missão tinha sido selar a central de Chernobyl. Para nós, jovens oriundos de uma aldeia do oeste de Portugal, foi uma experiência que nos proporcionou um misto de geopolítica e de história contada na primeira pessoa. Para eles, não deixou de ser uma oportunidade de ter contacto com alguém do outro lado. A recepção foi muito calorosa. Recordo-me da babuska babulinka ouvir-nos na apresentação do nosso país, enquanto folheava o guia turístico em alfabeto cirílico que tínhamos levado. O que para nós era é o banal mar oceano da Nazaré, para ela foi motivo para longas carícias às fotografias do livro. Nesse momento terei tido pela primeira vez a noção do meu espaço, da praia onde tinha passado as férias da minha infância, do tempo e espaço no nosso globo.
Um tio meu, de quem já aqui falei e que já lá está, quando soube que íamos à Rússia disse-nos: “Vão para a Rússia? Aquilo é um sítio cinzento e frio. Vão para lá fazer o quê?” Essa era a ideia corrente que se tinha na altura da ex-União Soviética.
 

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Não é muito visível, mas naquele tempo trocavam-se na Praça Vermelha as estrelas soviéticas dos topos dos edifícios, pela águia das duas cabeças. A torre à esquerda ainda está na versão soviética, e nas duas da direita procede-se à sua substituição.  

 
Trouxe para aqui estas minhas memórias da Rússia do final do século passado apenas para salientar algo que não será surpresa para ninguém, mas que deve ser lembrado e que tem a ver com a diferença entre um povo e os seus dirigentes. Na mesma medida em que Salazar não era Portugal, os Aiatolas não são o Irão, Putin não é a Rússia e o meu amigo Sergey e a sua calorosa família não são a Ucrânia. É muito mais fácil embarcar numa vaga de entusiasmo do que ficar sozinho no cais a fazer perguntas. Ao dizer isto não pretendo minimamente reduzir os crimes de Putin, mas apenas lembrar que há coisas que são totalmente diferentes quando observadas de perto ou de longe. As inúmeras manifs a que temos assistido, são contra os crimes de Putin e não contra a Rússia e o seu povo. Digo isto do alto de quem já privou com ambos os lados. O que se está a passar no leste europeu, mais do que qualquer outra coisa, é a confirmação de uma deformação de carácter do líder russo, assim como dos maluquinhos que preenchem a sua primeira linha de comandantes. São eles os nossos inimigos, não os russos.

A Europa sairá mais coesa desta crise

Pedro Correia, 28.02.22

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A brutal agressão à Ucrânia, o mais grave ataque de um Estado soberano a outro desde a II Guerra Mundial na Europa, acaba por ser um serviço que Vladimir Putin presta aos EUA. Porque esta grosseira violação do Direito internacional, paradoxalmente, beneficia os interesses estratégicos de Washington.

A partir de agora a Rússia deixa de surgir como inimigo abstracto ou difuso: torna-se numa ameaça concreta a toda a Europa Ocidental e Central.

A Aliança Atlântica une-se como há décadas não acontecia. Países como a Finlândia e a Suécia aproximam-se da NATO, tendo até já comparecido na cimeira da organização, realizada sexta-feira por video-conferência. A Europa comunitária revê o seu conceito estratégico de defesa: vai passar a investir mais em material bélico, correspondendo a uma antiga reivindicação dos EUA.

Naturalmente, todo o flanco leste da NATO vai reforçar-se, como medida preventiva contra futuras investidas russas - do Mar Báltico ao Mar Negro.

 

A Europa sairá mais coesa desta crise. O eixo euro-atlântico também. Graças à criminosa ofensiva bélica do Kremlin. «Esta é a guerra de Putin, não é a guerra dos russos», como acentuou ontem o chanceler Olaf Scholz numa reunião extraordinária do parlamento em Berlim. Acentuando que a Alemanha passará a aplicar mais de 2% do seu orçamento anual em investimento militar, duplicando-o.

O mesmo irá acontecer no abastecimento de combustíveis e no reforço da autonomia industrial. Toda a prioridade será atribuída, a partir de agora, à soberania estratégica da UE face a fornecedores extra-comunitários. Para pôr Moscovo à distância.

Qualquer vitória que o ditador russo possa reclamar, nesta tentativa de impor um direito de pernada à Ucrânia, será sempre pírrica. Acabará julgado por crimes de guerra. E verá o Ocidente emergir deste pesadelo com um vigor que jamais imaginou.

Uma manifestação diante da embaixada russa

jpt, 28.02.22

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Ontem houve uma manifestação em Lisboa diante da embaixada russa, convocada por seis partidos e que congregou gente variada - nisso incluindo ucranianos (e não só) residentes, que haviam estado numa outra manifestação no Terreiro do Paço.
 
Lá fui, acompanhando alguns velhos amigos - todos nós com parco historial nestas demonstrações. Ao fim de umas duas horas retirei-me, já algo exaurido com tamanha actividade física. E nessa via, ali à Rovisco Pais, na rectaguarda dos manifestantes, deparei-me com este núcleo do BE (que recordo através de foto encontrada em mural alheio), uma rapaziada de aspecto juvenil-rebelde polvilhada de um punhado de velhotes barbudos e vestes descuidadas, tal e qual eu (só que mais carecas).
 
Ao vê-los sorri, num murmurado "olha, estes afinal vieram!" - pois o BE não se associara à manifestação, porventura porque uma Mortágua já sumarizara a posição do partido: é duvidoso que o governo ucraniano tenha apoio popular, está cheio de neonazis e é corrupto, deixando assim implícito que será descabido o suporte a uma autonomia soberana que o sustente. Mas ainda assim, e pelos vistos in extremis, os activistas do BE lá avançaram, pintalgaram um pano com um símbolo do partido com as cores da bandeira dos tais neonazis, e uns dizeres alusivos.
 
Nas cercanias do tal destacamento encontrei uma queridíssima amiga, a qual não via há alguns meses (vale a pena ir às manifestações, comprovei isso). Logo ficámos de conversa, projectando o nosso futuro comum. E nesse sorridente entretanto melhor atentei nos tais dizeres bloquísticos, ali nada ondulantes na calmaria.
 
E logo me ocorreu que quando daqui a algum tempo, mais ano ou menos ano, os EUA voltarem a pôr a tropa na poça, estes hipócritas comunistóides sairão à rua, convocando eles próprias as manifestações e abancarão na primeira fila com dísticos de "abaixo o imperalismo". Sem sentirem a urgência de a este pluralizar nem de aludir a outras malevolências...

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.02.22

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Adolfo Mesquita Nunes: «Uma grande decisão é sempre precedida, e detesto rimas mas tem de ser, de uma enorme solidão. Podemos partilhá-la, pedir ajuda para sobreviver-lhe ou até esconder-nos em quem mais nos protege. Mas a solidão está lá, naqueles instantes em que nos decidimos, a lembrar que somos quem, não o quê

 

Ana Vidal: «Casaram e foram muito felizes. Ele, a babar-se com as empregadinhas do shopping. Ela, a fazer plásticas até parecer-se com uma empregadinha do shopping.»

 

João Carvalho: «Nunca como no passado recente de tais ex-responsáveis se falou tão mal português na vida pública.»

 

José António Abreu: «Obrigar a que os contribuintes abrangidos pelo regime do IVA tenham uma caixa de correio electrónico nos CTT é uma medida ridícula e inaceitável para um governo que clama defender a liberdade individual.»

 

José Navarro de Andrade: «A realidade é complicada, o retrato por exemplo. Uma pessoa vê a máquina fotográfica e põe-se logo em pose; o que fica dela acaba por ser um híbrido entre o que quis mostrar e o que dela se conseguiu ver. Como fazer com que alguém que esteja em pose deixe de posar?»

 

Luís Menezes Leitão: «Não era possível haver nada mais espantoso neste quadro de subjugação total dos países da União Europeia aos ditames do eixo franco-alemão que a apresentação por estes de um tratado orçamental que todos os outros Estados deveriam assinar. O tratado orçamental, ao reforçar a componente intergovernamental, viola claramente os tratados da União Europeia, tirando completamente o tapete à comissão, enquanto guardiã desses mesmos tratados, assumindo o cariz de um Diktat alemão

 

Patrícia Reis: «A Scotex teve um registo diferente para o nosso país, mas gosto de ver este homenzinho na sanita a levar um baile de um cão mínimo. Como todas as coisas pequenas, o cão é adorável. O homem nem por isso. Este anúncio parte de uma base tão simples que é realmente eficz: o que começa por ser divertido pode terminar num sarilho. Coisas que a vida - ou a publicidade - tecem

 

Rui Rocha: «Schauble foi apanhado a fazer sudokus enquanto o parlamento discutia a ajuda à Grécia

 

Eu: «Mais duas vozes se somam a tantas outras na rejeição liminar do impropriamente chamado "acordo ortográfico" que quer pôr os portugueses a escrever várias palavras do nosso idioma de modo diferente do que escrevem brasileiros (em palavras como 'recepção' e 'percepção'), angolanos e moçambicanos. Refiro-me a dois conselheiros de Estado: António Bagão Félix e Manuel Alegre

Leituras

Pedro Correia, 27.02.22

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«Foi nessa altura que nasci, ao compreender que dentro de um corpo - rebelde, aventureiro, fogoso, benévolo, apaixonado e generoso - um outro ser de rosto desconhecido ampara e acompanha a nossa pobre carne mortal, um ser que se pode, talvez, deixar maltratar sem que ouçamos o seu lamento, um ser sobre tudo e todos vitorioso e liberto.»

Natércia Freire, Infância de que Nasci (1955), pp. 125/126

Quasi, Famalicão, 2005 (2.ª ed)

I want my cut

Paulo Sousa, 27.02.22

A confirmar-se a expulsão da Rússia do sistema swift, sem que o mesmo seja aplicado à Bielorrússia e a outros países apoiantes de Putin, irá levar a que os pagamentos destinados a contas bancárias russas façam primeiro tabela num desses países.

Esta nova rota de pagamentos deixará atrás de si um rasto de comissionistas sorridentes.

Acrânio

jpt, 27.02.22

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Há alguns meses, em pleno período intra-pandémico, fui surpreendido ao tomar conhecimento de me ter sido instaurado um processo por difamação. Um antigo governante considerou-se ofendido pelo teor de um texto de blog e pelos epítetos que eu lhe dedicara. Os quais eu julgara não só fundamentados por uma cuidadosa descrição etnográfica da sua acção política como aceitáveis face à moral e jurisprudência correntes - entre tantos outros casos, que nem sequer são juridicamente invocados, recordo que o renomado Miguel Sousa Tavares chamou "palhaço" ao próprio Presidente da República em plena televisão, tendo sido inocentado, sendo que eu dissera algo menos em mero blog sobre alguém sem esse peso simbólico constitucionalmente consignado. Desprovido que estou de recursos financeiros e de arcaboiço moral para suportar uma longa batalha jurídica, e os presumíveis sucessivos recursos até Haia, remeti para as malvas os sacrossantos princípios e preferi aceitar a acusação. Tendo assim sido condenado a uma punção pecuniária, que me é pesada. E ainda a um período probatório que ainda decorre, e durante o qual se me torna particularmente periclitante não só a adjectivação pública como, implicitamente, a abrangência temática das reflexões. Escrevo assim, neste hóbi blogal, não só com os limites da minha ética e aquilo que presumo ser a (fluida) moral pública, mais ou menos balizada pela lei. Pois escrevo também para que não me lixem... 

Este longo preâmbulo, de teor pessoal, prende-se com a relativa homofonia que se me impôs ao ler as declarações de Rui Rio sobre as sanções europeias à Rússia. Este "acrânio" imediato que se me surgiu. Não quero ser processado, não quero ser chamado à liça em período probatório por de novo violentar o "bom nome" de político. Ou seja, não estou a dizer que o dr. Rui Rio nasceu sem crânio. Ou a apoucar a sua família, ascencente e descendente. Sua vizinhança. Seus colegas e correligionários. Ou a insinuar que o cidadão Rui Rio ou os seus próximos têm alguma deficiência, física ou mental. Estou apenas a explicitar - usando uma metáfora, convém sublinhar - que estas declarações são uma total acefalia política. 

Diante desta proclamação de Rio, convocando um extremo cuidado nas sanções europeias à Rússia, posso ainda perguntar - fundamentando a tal atrevida metáfora - o que é que o dr. Rui Rio propôs enquanto presidente do segundo partido português, dotado de forte representação no Parlamento Europeu, para fortalecer a política externa com instrumentos económicos? O que disse, o que induziu, o que promoveu? Que nós saibamos, nada. Limitou-se, decerto que impante, a navegar à vista. E agora, neste momento de enorme crise política, vem com este discurso disfarçado de "bom senso". Perfeitamente absurdo. Minando, e não só simbolicamente, uma desejável concertação interna e internacional face ao Estado e à sociedade russa.

Ao ler esta tropelia, proferida em tom seráfico, perguntei-me também como é possível estar este homem na presidência do PSD. Já nem questiono o ter lá estado, mas a sua continuidade neste presente. Em que estado cataléptico está o segundo partido do país para ter este medíocre presidente - o qual já reconheceu "não estar ali a fazer nada". A democracia multipartidária faz-se de partidos, e torna-se necessário - goste-se ou não de cada um deles - que haja qualidade, intelectual e ética, nos seus dirigentes. E esta visão acrânica sobre a guerra na Ucrânia é uma vergonha para o PSD e uma desgraça para o país. Por menos relevante, em termos mundiais, que seja a opinião do dirigente do segundo partido de Portugal. 

O PSD que se cuide e afaste, quanto antes, este seu presidente. Vácuo, de pomposo auto-convencimento.

(Até porque há mais mundo do que o manjar da regionalização).

Pensamento da Semana

José Meireles Graça, 27.02.22

Quiseram as autoridades portuguesas ofender um chefe de Estado estrangeiro de visita? Não quiseram. E quiseram que no mesmo local fosse assassinado um imigrante por um funcionário em representação do Estado? Ainda menos. Estas coisas são impossíveis de acontecer? Eram. Mas são sintomas do Estado em que estamos. E a tragédia é menos que aqui tenhamos chegado e mais que quem aqui nos trouxe esteja coberto por um manto de legitimidade e de inimputabilidade.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.

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