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Delito de Opinião

O Agente Provocatório

jpt, 31.01.22

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O dr. Ba tem todo o direito de apelar a uma "luta sem quartel", mobilizando os apoiantes para acções extra-parlamentares. E só exagerados podem ver nesta proclamação um incentivo à violência. Pois decerto que o activista se refere a uma luta política. O dr. Ba também tem o direito de considerar os "vinte" eleitos (os da IL e do CHEGA) como "racistas", "fascistas" e "neoliberais", amalgamando-os via hífens. A única coisa que pode surpreender é saber que a Assembleia da República contrata o dr. Ba, o qual tem este entendimento do que é "racismo", como consultor exactamente sobre "racismo". Enfim, ainda agora isto recomeçou...

Vencidos

Sérgio de Almeida Correia, 31.01.22

image-2.jpg(Infografia JN)

1. Empresas de sondagens

Há cerca de quatro meses davam a vitória de Medina com toda a certeza e muitos pontos acima de Carlos Moedas. Desta vez chegaram a vaticinar a vitória do PSD. Foi o que se viu. No fim não se percebe se pretendiam dar resposta à campanha de alguns jornais e blogues na sua vontade de verem uma derrota de Costa e do PS a qualquer preço, ou se queriam apenas vender o direito à especulação. Admito que o efeito da sua acção haja sido contraproducente para muitos. O empate técnico vai na totalidade para elas. Isto é: tecnicamente empatadas na incompetência e no descalabro das previsões que efectuaram. Um desperdício em toda a linha.

 

Rui rio.jpg(créditos: EPA/Mário Cruz)

2. Rui Rio e o PSD

Se Rui Rio falhou não falhou sozinho. O partido falhou ainda mais. Falhou quando o escolheu para o liderar, falhou quando voltou a apostar nele contra Rangel, falhou quando não foi capaz de perceber que Portugal não é o Porto. Rio chegou sempre atrasado às discussões que importavam, desvalorizou os sinais de estagnação, rodeou-se de gente sem chama, currículo ou provas, segurou o seu eleitorado a custo e sem conseguir alargá-lo na área de influência do partido. Viu muitos potenciais eleitores fugirem para o IL, para o Chega e até para o PS, não beneficiando do destrambelhamento da liderança do CDS-PP e do esvaziamento eleitoral deste partido. Se a persistência dá muitas vezes frutos, já a teimosia tende a afastá-los. Rui Rio terá desde ontem tempo suficiente para se dedicar ao humor e fazer companhia ao bichano Albino. Esperemos para ver no futuro próximo qual o senhor que se segue num partido que é uma máquina de triturar líderes.

 

DSCF6159-2048x1365.jpg(créditos: João Carlos Silva/Expresso)

3. CDS-PP

Francisco Rodrigues dos Santos conseguiu um resultado histórico: deixar um dos partidos fundadores da democracia fora do parlamento ao fim de 47 anos. Não foi o primeiro a quem isso sucedeu, é verdade, mas era previsível que tal poderia acontecer. A partir do momento em que se começou a assistir à deserção das figuras de proa e a debandada de alguns históricos militantes progrediu, era quase certo que o partido, ao entregar-se “ao Chicão”, entregava a alma ao Criador. Era uma questão de tempo até o suicídio se consumar. A imagem do líder não se coadunava com a de uma direita séria, preparada e responsável. De quase tudo o que é mau nos partidos ele conseguiu dar exemplos. Multiplicou-se em chavões e na repetição de banalidades, mostrou-se um líder mal preparado, presunçoso e ávido de poder. Associou a barretina de uma instituição histórica e com muitas tradições ao triste espectáculo que deu enquanto esteve em cena. Mostrou não passar de um “Chiquinho” a quem de nada valeu o apoio do histórico José Ribeiro e Castro. Os portugueses e o eleitorado do que foi o partido de Amaro da Costa não lhe perdoaram. Um partido não é uma ganadaria, nem um clube de forcados. Destruiu o que restava do CDS-PP. Pode agora dedicar-se à pesca. Ou a espectáculos de stand-up comedy.

 

Catarina M CNN.jpg(créditos: CNN)

4. Bloco de Esquerda

O resultado do BE marca o fim, sem honra nem glória, do “louçanismo”. Catarina Martins nunca conseguiu ser a líder que o partido precisava. Mais do que um erro de casting constantemente disfarçado pela suas qualidades dramatúrgicas e capacidade de criar cenários apocalípticos, ao estilo de Francisco Louçã, jamais se conseguiu desligar da figura deste e dos seus tiques. Trocou o interesse nacional pela conveniência partidária, convenceu-se de que o país precisava do Bloco, que podia obrigar António Costa e o PS a cederem, talvez por ouvir demasiadas vezes Pedro Nuno Santos a vociferar. Fica com o irrealismo político como a sua imagem de marca, antevendo-se uma penosa legislatura para os deputados do BE. O final da sua campanha foi deprimente, oferecendo-se para dar uma ajuda ao PS num futuro executivo. O país dispensou a sua ajuda. Se os seus militantes conseguirem tirar o partido do atoleiro em que caiu farão um milagre. Que lhes sirva de lição.

 

image-3.jpg(créditos:António Cotrim/LUSA)

5. PCP e Verdes

Não foi por Jerónimo de Sousa, figura simpática, genuína e afável, que a CDU sai em fanicos desta peleja eleitoral. O imobilismo, o atavismo organizativo, a incapacidade de se renovar, a exaustão do discurso político, o precoce envelhecimento dos quadros mais jovens, a falta de massa crítica, o complexo ideológico e o medo de ficar atrás do Bloco de Esquerda condicionaram sempre o PCP e a sua direcção, levando-o a contribuir para a queda do anterior governo. Para os comunistas, a culpa nunca é deles, embora só de si se possam queixar. Perderam bastiões históricos do partido, viram os seus eleitores fugirem para o Chega em zonas de influência comunista, esqueceram-se de que o país já não vive em 1975 e que o papão da direita não assusta ninguém. O PCP caminha a passos acelerados para ser apenas mais um espaço de reflexão marginal para os seus paroquianos. Uma espécie de clube de bairro dedicado nas horas vagas dos seus militantes à organização de arruadas, de marchas folclóricas e à preparação da Festa do Avante. As feridas levarão muito tempo a sarar. O partido não voltará a ser o mesmo.

De caminho levarão os Verdes consigo. Uma perfeita inutilidade, um partido que é desde a fundação um anacronismo. Os portugueses podem finalmente ver-se livres de uma agremiação que durante anos e anos se manteve representada no parlamento sem nunca ir a votos. Uma aberração democrática que urge rever numa futura alteração à lei dos partidos. Os portugueses resolveram, finalmente, acabar com essa fraude que se arrastava de legislatura em legislatura à sombra do PCP.

 

PAN RR.jpg(créditos: RR)

6. PAN, Livre e pequenos partidos

Cada um à sua medida também perdeu. Inês Sousa Real conseguiu ser eleita ao soar do gongo. Poderá começar a pensar em dedicar-se a outras actividades onde melhor possa defender as suas causas, algumas bastante meritórias. O que perdeu dificilmente recuperará em próximas eleições. Contribuiu para muito pouco na legislatura que findou, e para a que começa hoje contará ainda menos num cenário de maioria absoluta. O Livre manteve o deputado que elegera na anterior legislatura e que “perdeu” logo a seguir, prova de que Joacine não contou para nada, não fazia falta e cuja escolha foi um erro crasso. Os demais pequenos partidos, agora liderados pelo CDS-PP, podem voltar aos seus lugares. Acabou a hora do recreio.  

 

PR Rodrigo Antunes:LUSA.jpg(créditos: Rodrigo Antunes/LUSA)

7. Marcelo Rebelo de Sousa

O Presidente da República é um dos derrotados. Não basta ser simpático e disponível. Errou na leitura que fez da situação política ao pensar que com uma contenda eleitoral veria o seu papel reforçado. Convenceu-se de que poderia influenciar o rumo dos acontecimentos e deixar a sua marca. Não será mais o árbitro. Está-lhe reservado o papel de fiscal do Governo. Convirá que esteja atento à legislação que for sendo produzida, esperando-se dele que agora se acalme, que ajude à criação de um ambiente propício às reformas que todos exigem, mas também que se deixe de "selfies" e de ir à noite pagar contas ao Multibanco, mantendo-se vigilante e tranquilo, exercendo, se possível, a “magistratura de influência” de um seu antecessor. Sem ondas, se quiser ficar bem na foto. O país saberá agradecer-lhe.

Os partidos também morrem

Pedro Correia, 31.01.22

Dos quatro partidos históricos da democracia portuguesa, três naufragaram nesta eleição que pintou de cor-de-rosa o mapa político do País. CDS (com 1,6%) e PCP (com 4,4%) obtiveram os piores resultados de sempre. O PSD esforçou-se e conseguiu: tem o seu terceiro pior resultado deste meio século. A renovação de gerações no eleitorado provoca este fenómeno de erosão dos partidos políticos. Os que têm maiores pergaminhos históricos só levam mais tempo a morrer. Os que surgiram já com a democracia consolidada - e o PRD ou o PSN, de que quase já ninguém se lembra, são exemplos disso - podem extinguir-se quase tão depressa como nasceram. Fica o aviso, aos que andam mais distraídos. Ou demasiado eufóricos.

Vencedores

Sérgio de Almeida Correia, 31.01.22

miguel a lopes lusa.jpg(créditos: Miguel A. Lopes/LUSA)

1. António Costa e o Partido Socialista

Ninguém terá a ousadia de retirar o mérito desta vitória ao líder socialista. Venceu em todos os distritos do continente. Obrigou a abstenção a baixar. Passou de 1.908.036 de votos para 2.246.483 (ainda faltam os votos da emigração). Desde 2009 que o PS não chegava aos 2 milhões de votos. Foi ele quem antes recusou maiores cedências ao Bloco de Esquerda e ao PCP. Foi ele quem percebeu e avaliou correctamente o estado de espírito dos portugueses. Foi ele quem quis pedir, ainda que a medo, tendo-se depois arrependido, talvez influenciado pelas sondagens, uma maioria absoluta aos portugueses. É verdade que nalguns momentos ziguezagueou, que foi pouco afirmativo sem, todavia, nunca deixar de ser combativo. Mas acreditou sempre que seria possível fazer mais e melhor sem o BE e os comunistas. E que não poderia continuar eternamente a ceder à chantagem e oportunismo dos parceiros de “geringonça”. Muitas vezes não teve a colaboração, também por culpa sua, pois foi ele quem os escolheu para o bem e para o mal, de alguns dos seus ministros. E podia ter corrido muito mal. Felizmente para si e para o PS correu bem. Esperemos que a partir de hoje também comece a correr melhor para os portugueses. Estes deram-lhe razão e confiança, e querem, mais do que promessas, mais do que nunca, resultados. E que faça esquecer depressa Cavaco, Sócrates e o pesadelo das maiorias absolutas. Orlando da Costa se fosse vivo estaria certamente comovido com este resultado que o filho alcançou.

 

ventura.jpg(créditos: Miguel A. Lopes/LUSA)

2. André Ventura e o Chega

Ventura e o Chega conseguiram chegar a terceira força política no parlamento. É um resultado notável, só possível pelos sucessivos erros que a direita portuguesa cometeu, ano após ano, minando a confiança dos seus crentes, enredada num permanente tacticismo, num discurso inconsequente, mole e pouco claro. Ventura quis aproveitar a desgraça alheia e num curto espaço de tempo transmutou-se de social-democrata “passista” em líder da direita radical, populista e demagoga, cavalgando a onda até à exaustão, penetrando nas franjas mais descontentes, cansadas e ignoradas do sistema que nele encontraram a voz da redenção e o caminho para a salvação. Não será por acaso que, por exemplo, em Portalegre, uma região esquecida do interior e com bolsas de pobreza, desemprego e inúmeros problemas sociais, conseguiram que o seu crescimento eleitoral fosse feito à custa de bloquistas e comunistas. Resta saber até onde, apesar de todas as suas contradições, conseguirá chegar. Mas isso irá depender em muito da forma como o seu grupo parlamentar se comportar na AR. Tem tudo a ganhar e tudo a perder. Tudo para que corra bem. Tudo para que corra mal. E poderá estar certo de que o escrutínio não deixará de ser severo.

 

J Cotrim Negrao Global Imagens.jpg(créditos: Leonardo Negrão/Global Imagens)

3. João Cotrim de Figueiredo e o Iniciativa Liberal

Obtiveram um bom resultado; porventura, ainda assim, inferior ao que poderiam aspirar. Mas aí a culpa será também do ruído de André Ventura e do Chega. Apresentaram uma mensagem clara, não andaram a fazer contorcionismo político no mercado eleitoral, não promoveram saldos nem rebaixas. Mostraram-se preparados nos debates, foram sérios e coerentes na defesa das suas posições, fizeram o trabalho de casa, demonstraram ser civilizados na discussão e posicionam-se para continuarem a crescer nos próximos quatro anos. Terão um grupo parlamentar que poderá contribuir, em muito, para a elevação do trabalho parlamentar e a melhoria da sua imagem, o que será importante quando se sabe que o Chega também terá uma banda moldada à imagem do seu chefe e que se tiver oportunidade transformará o hemiciclo numa extensão da Feira do Relógio. Numa choldra.

Keep Walking

jpt, 31.01.22

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Keep Walking, disse o eleitorado, que é soberano. Assim seja.
 
E em assim sendo agora todos dizem de sua justiça. Também eu o faço ainda que com esta ressalva (o "disclaimer" como os ignorantes dizem): quando esta legislatura acabar eu já serei sexagenário - se o cancro ou o cardíaco deixarem -, pelo que esta minha "justiça" é mesmo pouco relevante para o futuro. Mas em botando alivio-me:
 
1. Grande votação, é bom. Uma grande maioria dos eleitores votou em partidos sociais-democratas, e bem mais do que em eleições anteriores. É bom, pois afunda o estribilho do perigo dos extremismos. Este terá servido para "animar a malta" mas não tem qualquer outra utilidade.
 
2. O PS com maioria absoluta. Parece que é bom, pois assim "não tem desculpas" ouvi de vários "comentadores" (ou seja, jornalistas e políticos). É estúpido crer nisso: vem aí (já aí está) uma grande mudança no contexto económico-financeiro europeu (e mundial). Esse não será apresentado pelos "comentadores" e pelos "opinadores" como o contexto esperado de governação mas sim como a tal "desculpa" para o que acontecer. Ganham com isso "Passos Coelho" e também a "troika", pois agora o bode expiatório será outro.
 
3. O PS com maioria absoluta. Parece que é bom, ouvi de vários "comentadores" (ou seja, jornalistas e políticos). Mas o PS tem características que lhe são intrínsecas, essência. Enquanto partido do poder funciona sobre o constrangimento das instituições, avesso à separação de poderes e à liberdade de informação, e é uma macro-organização clientelar. Costa não é Sócrates, em termos de objectivos pessoais. Mas não é essa a questão. Isto vai ser mau - e haverá imensa gente a impingir-nos o quão bom está a ser. Um desperdício de vida.
 
4. O PSD terá de aprender, de vez, que nada ganha em sonhar ser uma contrafacção do PS. Não sei como poderão mudar (se soubesse fazia um relatório e vendia-o). Mas se não o fizer definhará, tal como está a acontecer a outros partidos históricos.
 
5. A IL, na qual voltei a votar, subiu bastante e isso é bom. Na esquerda ouve-se uma gritaria (esperada) contra os "(neo)liberais" que nos querem desgraçar. Enquanto essa "esquerda" rústica os diz quais Pinochet eles respondem, com alguma placidez, que apresentam ideias que vigoram em países que nos são aliados e congéneres. E nisso têm imensa razão, mas a muita da rapaziada daqui isso pouco importa, pois o que lhes é relevante é que nada lhes chamusque as "boas consciências". Talvez à IL falte (ainda) um discurso "social", que mais traduza as derivas das suas propostas. E falta um discurso ecológico mais acurado - falei há tempos com uma jovem eleitora, cosmopolita e muitíssimo informada, simpática ao partido, que me dizia "em relação à agenda ecológica dos liberais europeus estão muito atrasados", culminando num até letal "são um bocadinho provincianos...". "Portugueses", respondi-lhe eu. Têm agora uma legislatura para se actualizarem na matéria - até porque esta "transição energética" (o jargão) é uma monumental oportunidade para a economia de mercado (aka capitalismo); e também porque só os mais boçais dos boçais poderão continuar a clamar que as preocupações ecológicas são um redil do "marxismo estrutural".
 
6. O CDS está nos cuidados intensivos, como fora anunciado desde finais de 2020. E o PPM, que há anos é um estúpido partido miguelista, teve 260 votos. A mera utilização de siglas históricas conduz a esta implosão.
 
7. O PCP continua a sua natural decadência. Decerto que dolorosa para os irredentistas e para muitos dos que preferiram o tardio aggiornamento pós-queda do Muro mas que mantêm vínculo afectivo ao ideário. Ainda assim elege mais do que o arrivista e insuportável "Bloco". Brindei a isso e lembrei o velho "Assim se vê a força do PC".
 
8. 385 mil compatriotas votaram no CHEGA. Na televisão vi imensos a desprezarem-nos e leio imensos insultos (no Twitter é um fartote). Eu detesto aquilo (a tal sempre necessária ressalva quando se fala do assunto...), vejo o prof. Ventura como uma criatura do capitalista apoiante da CDU, senhor Vieira, a quem infelizmente o dr. Passos Coelho deu palco quando ele ainda seguia manso. Mas a demonização desta "comunidade" eleitora é uma operação intelectual exactamente igual à que o dito prof. Ventura usa face a algumas outras "comunidades" (termo que os imbecis gostam de usar para falar da sociedade, porque lhes falta o português, as ideias e, acima de tudo, as leituras necessárias para pensarem).
 
Já agora, uma adenda pessoal sobre os eleitores do CHEGA. Nas últimas semanas jantei com dois amigos distantes, meus respeitados mais-velhos, ambos com percursos profissionais de grande quilate, e um deles com vasta actividade político-administrativa. Para meu espanto nessas ocasiões ambos me disseram que votariam no CHEGA. Não são racistas, não são fascistas, não são incultos. Nem sequer têm apreço pelas genuflexões do prof. Ventura. Ambos, cada um à sua maneira, são conservadores e fortemente anti-socialistas, eu diria que até moralmente exauridos após este quarto de século PS. Não serão "o" eleitorado do CHEGA mas podem implicar algum recuo nesta patética deriva de reduzir quem votou Ventura a uma amálgama de truculentos neo-fascistas e descamisados irados.
 
E neste sentido junto ainda: só conheço uma pessoa do CHEGA. Trata-se do deputado eleito por Leiria, Gabriel Mithá Ribeiro. Conheço-o de o ler e de um breve contacto pessoal - ele teve a gentileza de me convidar para lhe apresentar um livro em Maputo, sabendo de antemão que eu muito discordo dele na sua interpretação sobre a colonização portuguesa em África. Não só isso demontra alguma democraticidade (e garanto que apanhar um intelectual disponível para dar palco a quem discorde do seu trabalho é trejeito democrático muito raro). Mas é relevante lembrar que o homem é um intelectual muito trabalhador, culto, lido, sistematizado e sério. Em suma, posso discordar (e muito) de como ele interpreta a história colonial portuguesa, posso até dizê-la conservadora, e até me posso arrogar ao direito de lhe debater os pormenores (apesar de ele ser mais graduado do que eu, isso não me impede de discordar). Mas não o posso rebaixar intelectualmente. E a partir deste caso retiro o fundamental: não se fará oposição ao alargamento do CHEGA assente numa redução absurda (digo-o sem latim) dos seus dirigentes e do seu eleitorado a uma mole de coirões. Faça-se isso, repita-se a preguiça de os classificar como "o inimigo principal" do regime, e eles dobrarão de votação nas próximas eleições.
 
9. A anterior legislatura produziu uma lei sobre o controlo da comunicação na internet que tem um artigo que abre portas à censura. Eu esperava que estas eleições tivessem tido outro resultado, mais benéfico para o país (em minha opinião, claro). Não aconteceu assim. Mas isso não impede que a nova assembleia possa aprimorar essa lei, expurgando-a dessa malevolência.
 
10. O presidente Sousa teve o que queria? Enfim, que siga para bingo.

Novo ciclo

Sérgio de Almeida Correia, 31.01.22

img_900x560$2014_04_16_19_42_00_220650.jpg(créditos: Bruno Simão/Negócios)

 

As eleições legislativas de ontem, 30 de Janeiro, assinalam o regresso à estabilidade governativa, o fim do diletantismo parlamentar de alguns sujeitos e, ainda, o regresso à terra do Presidente Marcelo e dos seus sonhos de se tornar imprescindível para qualquer solução de governo.

Se, por um lado, até há duas semanas, a maioria absoluta de um só partido era um cenário tão distante quanto a hipótese de uma solução governativa estável para toda a legislatura, não será hoje menos verdade a confirmação de que em democracia os resultados só surgem mesmo depois de fechadas as urnas. E isso continua a ser bom porque é pelo voto que os cidadãos têm de continuar a manifestar-se, e é a eles que tem de estar reservada a última palavra. não às sondagens. Votem "útil" ou "inútil". Ainda bem.

Neste momento, com a certeza de uma maioria absoluta do PS, aquilo que todos os portugueses temem é uma reedição, ainda que mais benigna, de um socratismo de muito má memória e com feridas ainda abertas dada a ineficiência, e não apenas por falta de meios, do Ministério Público, dos tribunais e do aparelho judiciário para contribuírem para a realização da justiça em tempo útil.

O comedido discurso de vitória de António Costa, traduzido na frase “uma maioria absoluta não é o poder absoluto, não é governar sozinho, é uma responsabilidade acrescida” pode dar alguma esperança aos portugueses e a todos os que votaram no partido vencedor, que são muitos mais do que os militantes e simpatizantes, de que não vamos assistir a partir de agora a um novo ciclo de desvario, despesismo e desresponsabilização.

Ao Presidente da República exige-se que sem deixar de exercer a devida fiscalização sobre a acção do Governo, que também está cometida com redobrada responsabilidade a todos os partidos da oposição, reduza o seu protagonismo, seja mais contido nas suas “aparições” e contribua quer para a estabilidade política e governativa, quer, igualmente, para uma redução do clima de guerrilha de sacristia em que se especializou ao longo dos anos, motivando o necessário apaziguamento social e político. Dentro de quatro anos será aos portugueses que caberá, e não a ele Presidente da República, julgar a acção do futuro Governo, os seus êxitos e insucessos.

Para já vamos aguardar os resultados dos círculos da emigração, enquanto não chegam os nomes para o novo governo. Que se esperam ser outros, sem erros de casting e com a participação de independentes qualificados, não se cingindo à "tralha do aparelho" e a um ou outro apóstolo reciclado. Qualificações, competência, bom senso e uma ética à prova de bala é o que se precisa. Para não se estatelar na rua, nem na lama.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 31.01.22

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Helena Sacadura Cabral: «"Take care of each other. It’s your only chance of survival. All the rest is vanity.” Este é o testamento do realizador Nicholas Ray, um dos últimos românticos de Hollywood e que eu adoro.»

 

João Carvalho: «O transporte certo é o que consegue levar todos os nossos amigos e os seus respectivos pertences...»

 

Luís M. Jorge: «Correndo o risco de maçar a poetisa Elisabete, o doutor Amorim e outros vultos tormentosos do liberalismo e da moral, aqui deixo o envio para um artigo recente de Paul Krugman no New York Times. Chama-se “O Fiasco da Austeridade

A razão em questão

beatriz j a, 30.01.22

A não que se desista da comunicação e entendimento entre os seres humanos e nos reduzamos ao silêncio mútuo ou à guerra, a razão -a racionalidade-, continua a ser o único caminho capaz de conhecimento não-relativo, portanto, universal. Mesmo que no domínio da razão uns sistemas não aceitem as razões de outros como válidas ou rejeitem o próprio critério da racionalidade como garantia de validade das ideias, ainda assim é com razões que refutam esse sistema racional. Logo, mesmo ao criticar ou tentar negar o critério da racionalidade e a sua aspiração à universalidade, fazem-no afirmando a própria racionalidade, pois ao argumentar contra essa racionalidade universalizante, aspiram eles mesmos a que as suas razões sejam universalmente válidas. 

Não se segue daí que todo o conhecimento ou comunicação tenham que ser racionais ou universais, ou sequer que devam ser obliterados ou reduzidos a ordens racionais ou científicas, mas no domínio do conhecimento e da comunicação dos sistemas [culturas] uns com os outros, temos de aceitar como prioridade a ordem das razões. A não ser que se desista da comunicação e entendimento entre os seres humanos e nos reduzamos ao silêncio mútuo ou à guerra.

A ordem das razões não  é meramente normativa, pois se o fosse não seria possível explicar a eficácia do conhecimento científico no avanço das explicações sobre a natureza e no domínio dos sistemas naturais. [não estou aqui a referir-me a questões de ordem moral sobre se a ciência é usada para fazer mal - essa é outra discussão] 

Dois exemplos: 

1º - podemos ser a favor de fazer equivaler os direitos dos pais biológicos aos dos pais adoptivos, mas daí não se segue que se anule a diferença entre uns e outros, pois até do ponto de vista da saúde, quando é necessário saber da herança genética da criança para tratar uma doença, é aos pais biológicos que tem que ir buscar-se a resposta. Isso não representa uma diminuição dos direitos dos pais adoptivos, mas apenas o reconhecimento de que não é possível anular os processos naturais através de normas legais. São coisas diferentes, a aceitação e normalização da diversidade, da asserção de não haver diferença entre uma coisa e outra e ser tudo mesmidade. Parece-me que essas confusões são filhas do relativismo actual do conhecimento que pretende estar a lutar contra o que chamam, 'a tirania da razão': 

2º - não podemos aceitar a ideia de certas culturas condenarem as raparigas e as mulheres a uma não-vida proibindo-lhes a educação, a liberdade, o trabalho, etc., com o argumento de que é a sua cultura, pois ao argumentarem desse modo estão a querer universalizar esse princípio de não se universalizar a cultura local, ou seja, estão a adoptar o critério da racionalidade universal, que criticam, como fundamento da validade das suas ideias. A partir do momento em que o fazem, têm que aceitar ouvir os argumentos, as razões, contrárias.

 

(publicado também no blog azul)

O elefante plantado no meio da sala

José Sócrates

Pedro Correia, 30.01.22

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Numa campanha marcada pelo contínuo desfile de animais, talvez devido à acção pedagógica do PAN, aquele que mais deu nas vistas acabou por ser um elefante. Plantado num local nada cómodo para António Costa: a sala de visitas do PS. Roubando espaço de manobra ao líder socialista e lembrando-lhe um passado que ele queria varrer para debaixo da alcatifa.

José Sócrates ressurgiu faz hoje oito dias, em longa entrevista nocturna à CNN Portugal. Quando Costa ainda batia no peito a pedir maioria absoluta. O conselheiro que o persuadiu a adoptar tal estratégia não podia estar mais equivocado.

Exibindo aquele ar de quem anda sempre de mal com o mundo e sente um desprezo sem fim por quantos não lhe alimentam o ego, o autoproclamado «animal feroz» deu um ralhete público ao seu antigo ministro da Administração Interna, que com ele trabalhou entre 2005 e 2007.

«O único conselho que eu daria a quem quer uma maioria absoluta: talvez devesse começar por não desmerecer a única que o PS teve na sua história, aquela que eu tive em 2005.» Eis Sócrates igual a si próprio: não esquece um agravo, considera-se traído por Costa e consegue usar o pronome “eu” duas vezes na mesma frase.

Como se não bastasse, insistiu: «Talvez fosse melhor começar por não pôr em causa a história do PS, que teve um momento muito importante em 2005.»

José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, 64 anos, conseguiu irritar o secretário-geral socialista ao romper o silêncio em plena campanha eleitoral. Na manhã seguinte, confrontado pelos jornalistas que lhe pediam uma reacção à entrevista, Costa não escondia o desagrado. «Não tive oportunidade de ver», reagiu secamente. E seguiu adiante. Tinha o dia estragado. Nada lhe podia agradar menos, nesta romagem às urnas em que disputa cada voto, do que surgir associado à era socrática.

Felizmente para ele, Sócrates deixou claro não ter hoje «nenhuma relação com a direcção do PS» e lembrou que já devolveu o cartão de militante: «Decidi abandonar o partido para preservar a minha dignidade.» Mas revelou que ainda se sente integrado na família socialista, mantém muita gente amiga nas listas eleitorais e continuará fiel ao emblema quando assinalar a cruz no boletim de voto. E rematou, com um esgar de desdém: «O PS não é António Costa.»

A aparição de Sócrates na campanha, entrando como fantasma hamletiano pela porta das traseiras, não podia ter ocorrido em pior momento para alguém que promete confiança e credibilidade aos portugueses. Costa, político com instinto apurado, percebeu de imediato que devia abandonar a reivindicação da maioria absoluta – associada pelos eleitores àqueles anos em que ele se sentava no Conselho de Ministros presidido pelo mais mediático arguido da Operação Marquês. Assim fez: não voltou a aludir ao tema.

A partir daí apenas Pedro Nuno Santos, integrado na caravana socialista em Espinho, insistiu na tecla reivindicando «a maior maioria absoluta que pudermos». Parecia falar com entoação irónica, mas só ele poderá esclarecer.

 

Texto publicado no semanário Novo

Os minutos de fama dos micropartidos

Pedro Correia, 30.01.22

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É de bom-tom criticar os principais partidos com representação parlamentar, como se a pureza doutrinária e a bondade cívica morassem algures, noutras forças políticas, sem acesso aos circuitos do poder.

Nada como espreitar uma campanha eleitoral na televisão para averiguar se isso é verdade. Sobretudo os tempos de antena, confiados à responsabilidade destas agremiações partidárias sem assento na Assembleia da República. É pedagógico, a vários títulos. Desde logo para desfazer ilusões sobre o suposto mérito de quase todas.

Dez dias a acompanhar estes espaços de propaganda elucidaram-nos sobre tais grupos alternativos, que vão da extrema-esquerda à extrema-direita. Valeu a pena o esforço.

 

Os anos passam, as décadas sucedem-se, mas há coisas que não mudam nos tempos de antena. Ao som da “Internacional”, reencontrámos o vetusto PCTP-MRPP envolto em naftalina exibindo a foice num país sem agricultores e o martelo numa nação desprovida de carpinteiros. Nem um bom canalizador se arranja por estes dias, quanto mais um ceifeiro…

Outro micropartido já repetente é o MPT, fundado pelo saudoso arquitecto Ribeiro Telles em melhores tempos. Mensagem actual pouco acima do zero: mera colagem de frases ao nível de turma liceal, do género «o planeta não pode esperar mais». Talvez a mais original tenha sido esta: «Todos gostamos da sombra das árvores mas poucos cuidam delas.»

Mais original, um partido caloiro chamado Volt sugere a criação de um novo ministério – o da Digitalização. Para «reduzir os processos burocráticos». Nas próximas eleições, pela mesma lógica, hão-de propor um Ministério da Verdade para extinguir as fake news. Fica a sugestão.

 

E que mais? O partido do Tino de Rans sempre a mostrar… o Tino de Rans. A distribuir beijinhos e abracinhos como se fosse concorrer a Miss Universo. Tem, pelo menos, o mérito de nada prometer. Ao contrário do Nós Cidadãos, que não faz a coisa por menos: reivindica uma «revolução da cidadania», seja lá o que isso for. Com direito a cantiguinha, para animar a malta. «É preciso dar as mãos para um país diferente», reza o refrão. Também a jovem Aliança debitou cantilena: «Aliança, Aliança! Votemos na Aliança!» Profundíssimo.

Outros partidos surgiram sem trolaró. Façanhudos, zangadíssimos, com vontade de nos bater. Um deles usa hífen: Ergue-te. Declara combate sem tréguas «contra este regime podre, maçónico-corrupto», e parece ansioso por «reverter os fluxos migratórios». Outro, sem hífen, diz chamar-se ADN: nega a pandemia e proclama-se inimigo dos certificados digitais. Enfrenta o coronavírus sem máscaras nem vacinas.

 

Quem se sente farto dos “partidos do sistema” devia prestar atenção a estes grupos pseudo-alternativos e extrair as devidas conclusões. Ao menos podiam ser diferentes na linguagem, mas nem isso: aliviam-se a soletrar lugares-comuns. Com palavrões como sustentabilidade, priorizar, implementar, descarbonizar, paradigma, janela de oportunidade. Em comparação, até o defunto “proletariado” do MRPP quase cheira a novidade.

 

Texto publicado no semanário Novo

Pensamento da semana

João Pedro Pimenta, 30.01.22

O tribunal absolveu Rui Moreira de todas acusações no caso Selminho, depois de o Ministério Público ter pedido pena de prisão suspensa e a perda do mandato. É um peso que sai de cima do Presidente da câmara municipal do Porto, mas que não deixa de recordar (como Moreira evidenciou) o claro aproveitamento político que houve da situação, nomeadamente do PSD, na figura do próprio líder, do PCP e em parte do BE. Também houve pressões, nomeadamente na imprensa, para que não se candidatasse.

 

Fica-se a pensar o que teria sucedido se Moreira tivesse desistido da sua candidatura. Provavelmente a sua lista independente, fortemente ancorada na figura do seu mentor, não teria aguentado a maioria, mesmo relativa, e outra formação, ou melhor dizendo, um partido, estaria agora à frente da edilidade. Moreira teria sempre recuperado a sua credibilidade, mas o mal estaria feito e este processo teria beneficiado outros. E em climas de suspeição e de revolta, muitas vezes genuína, que o cidadão comum nutre por todos os que quebram as regras sem pagar por isso, dá para reflectir como é que certos casos, por vezes no afã que alguns órgãos da justiça têm em mostrar trabalho, podem influenciar a política e sobretudo como é que alguns políticos podem beneficiar de alguma precipitação para colher frutos indevidos.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.01.22

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Ana Vidal: «A carta dizia apenas: "Vem. A vida é um arame sem rede". Ela sorriu e foi, porque sabia que a rede é um arame sem vida.»

 

João Carvalho: «Os livros mudam facilmente de mãos, o que só pode ser bom.»

 

Laura Ramos: «Conheço-a há quase tantos anos quanto a mim própria e sei que ela é a força de teimar na acção. A obra lúcida, em movimento, contra o mecanicismo económico, os oráculos da estatística, os que olham fixamente - e sem - um amanhã enganado.»

 

Luís M. Jorge: «A Deco informa que um terço dos jovens com mais de 18 e menos de 34 anos pensou em matar-se. Está mal. Numa altura destas, não me parece recomendável que as associações para a defesa dos consumidores andem por aí a dar ideias ao Governo.»

 

Rui Rocha: «Nome de Julian Assange falado para responsável das secretas. Fonte bem informada garante que o fundador da Wikileaks tem o perfil necessário para assegurar a continuidade do trabalho que tem sido feito.»

 

Teresa Ribeiro: «Será que tudo o que o génio artístico produz é arte? A pergunta é retórica. Por maior que seja o seu talento também os génios que nos alimentam a alma têm dias maus. Se além de génios forem mentes perturbadas, uma situação que, como se sabe, anda muitas vezes a par, o risco de sermos contemplados com excrescências artísticas aumenta. Sempre que sou confrontada com obras assinadas por loucos consagrados que me são apresentadas como sendo de génio, mas que por um motivo ou outro me inspiraram uma profunda rejeição, fico a meditar nestas coisas. Aconteceu-me há dias, quando vi Melancolia, o último filme de Lars Von Trier.»

 

Eu: «A CGTP é o mais poderoso instrumento de acção estratégica do Partido Comunista, que após ter perdido os seus bastiões operários e autárquicos recuou com a tenacidade de sempre -- um passo atrás, dois passos à frente, recomendava Lenine -- para o seu derradeiro reduto, o do sindicalismo nas áreas da administração pública e das empresas públicas, designadamente na área dos transportes. Quanto mais Estado, tanto mais a CGTP se robustece. E quem diz CGTP diz PCP. Não faz qualquer sentido a actual correlação de forças -- firmada durante os anos do "processo revolucionário" -- na cúpula da central sindical onde os comunistas estão em larga maioria, remetendo independentes, socialistas, católicos e bloquistas para posições minoritárias. Algo sem paralelo na sociedade portuguesa.»

Amor ao próximo

Cristina Torrão, 29.01.22

«Que em Hamburgo seja possível despedir alguém por amar uma pessoa do mesmo sexo é inaceitável. Mas onde vivemos nós? (…) O Direito do Trabalho tem de ser modificado, para que todos percebamos em que século vivemos.»

Hoje fui despertada, ao pequeno-almoço, por estas palavras de Daniel Kaiser*, comentador radiofónico do NDR, o canal regional do Norte do grupo estatal radio-televisivo ARD. Mas incluirá o Direito do Trabalho alemão alguma lei neste sentido? Não se respeitam os Direitos Humanos neste país?

Na verdade, Daniel Kaiser falava da Igreja Católica alemã, que acaba de viver uma das semanas mais duras da sua existência. Não foi só a publicação de um relatório* sobre abusos sexuais na arquidiocese de Munique/Freising, que acusa o actual arcebispo, cardeal Reinhard Marx, e o próprio papa emérito Bento XVI, arcebispo entre 1977 e 1982, de terem ocultado casos deste tipo, protegendo os prevaricadores. Foi também a semana em que cento e vinte e cinco pessoas - incluindo padres, trabalhadores a tempo inteiro ou voluntários na Igreja Católica nos países de língua alemã - fizeram história ao revelarem fazer parte da comunidade LGBTQIA+. Esta é a primeira vez, em todo o mundo, que um grupo de a(c)tuais e antigos colaboradores profissionais e voluntários da Igreja Católica Apostólica Romana se assume em massa e publicamente.

“Nós, como pessoas LGBTIQA+, queremos viver e trabalhar na Igreja sem ter de sentir medo”, começa o manifesto, que inclui pessoas que trabalham nos campos da educação e ensino, cuidados, trabalho social, música litúrgica e animação pastoral, entre padres, assistentes pastorais, professores de educação religiosa e pessoal administrativo e que se identificam como “homossexuais, bissexuais, trans, intersexuais, queer e/ou não-binários”.

“A Igreja deve finalmente assumir a sua responsabilidade na luta pelos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+ em todo o mundo”, já que a maioria dos signatários “sofreu numerosas experiências de discriminação e exclusão, também na e pela Igreja institucional”.

Os signatários dizem já terem vivido situações em que foram obrigados “a manter em segredo” a sua orientação sexual ou identidade de género. “E só nesta condição nos foi permitido permanecer ao serviço da Igreja. Isto criou um sistema de ocultação, dois pesos e duas medidas e hipocrisia, um sistema tóxico, nocivo e vergonhoso, que até prejudica a nossa relação com Deus e a nossa espiritualidade”.

De facto, é de Direitos Humanos que se trata (e, para quem gosta de nos comparar com animais, acrescente-se que, na Natureza, também há homossexualidade e mudança de sexo, por exemplo). Além disso, recordemos que pessoas LGBTQIA+ sempre existiram, existem há milénios, não é uma “modernice” inventada nos nossos dias. É incrível que ainda se ande a esconder esta realidade; é incrível que haja discriminação, numa Igreja que faz do «amor ao próximo» um dos seus pilares de sustentação; é incrível que se continuem a condenar pessoas a viver na clandestinidade; é incrível que ainda haja gente que se recuse a incluir esta realidade na formação de jovens e crianças.

Vai sendo tempo de encararmos qualquer ser humano ao nosso nível, sem nos acharmos superiores, apenas por pertencermos à maioria heterossexual. E comentários do género “não ando a exibir aquilo que faço na privacidade” são profundamente injustos e desonestos, em relação a pessoas que revelam outras preferências sexuais. Caso contrário, também teríamos de acusar aqueles que afirmam com orgulho serem heterossexuais de estarem a exibir a sua intimidade.

A Igreja Católica alemã enfrenta uma grande crise, que tenta ultrapassar através do Caminho Sinodal, um movimento iniciado em 2019 e que prevê plenários regulares de discussão sobre temas como a moral sexual ou a ordenação de mulheres. Porém, e como seria de esperar, muitos obstáculos se apresentam neste Caminho. Não só a pandemia obrigou a adaptações, também os sectores alemães mais conservadores e o próprio Vaticano acusam os que exigem reformas de estarem a forçar uma divisão entre os crentes. E, no entanto, continuar a calar e a ignorar realidades e problemas seria continuar o caminho errado deste “clube de homens”, que tantos crimes já cometeu, e continua a cometer, em nome de Deus.

 

* links que conduzem a sites alemães, de onde traduzi algumas passagens.

Leituras

Pedro Correia, 29.01.22

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«À morte só se pode opor o amor, porque ambos são igualmente fortes, como diz o Cântico dos Cânticos.»

Miguel Ángel AsturiasO Senhor Presidente (1946), p. 249

Ed. Publicações Dom Quixote, 2.ª ed, 1974. Tradução de Pedro Lopes d' Azevedo. Colecção Prémio Nobel, n.º 5

Com Açúcar, Com Afecto

jpt, 29.01.22

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A minha geração foi abalroada pela heroína, e nem preciso de juntar grandes detalhes memorialistas para o comprovar. Não naquilo da implosão de muitos dos heróis (Coltrane, Hendrix, Joplin, Morrison e tantos outros). Mas no descalabro de amigos e vizinhos, desde os finais dos 1970s, muitos que por então se foram, alguns até de propósito, outros que se rearranjaram, "sabe Deus" com que esforços, e tantos destes para virem morrer no cabo dos seus cinquentas, dos fígados devastados. Para quem não se lembra, ou faz por isso, bastará lembrar a Lisboa dos 1990s, carregada de já velhos junkies penando pelas ruas, arrumando carros, perseguindo as carrinhas da metadona...
 
Entretanto, nós aqueles que havíamos seguido doutro modo, uns mesmo saudáveis, outros nos mares de álcool apropriados à nossa nação de marinheiros, ou nas multiculturais ganzas, quanto muito aqui e ali polvilhadas de uma chinesa "só para experimentar", e mesmo alguns já adult(erad)os como aburguesados encocaínados, fomos crescendo e procriando. Nisso deparando-nos com aquele "saber de experiência feito" do nosso Duarte Pacheco Pereira, e nisso a angústia do que viria a ser com os nossos queridos. A heroína perdera o prestígio social, ainda que resista no mercado, mas haviam surgido várias novidades, sintéticas, até legais.
 
 
(Lou Reed, David Bowie, I'm Waiting for the Man, Live, 1997)
 
Ora nesse longo - e preocupante - entretanto, por mais angústias que houvesse, ninguém se lembrou de exigir a Lou Reed que apagasse esta célebre "I'm Waiting for the [my] Man" (ou aquela "Heroin" ou tantas outras, como as que me são fundamentais "Caroline Says" I e II). Ninguém, com dois dedos de testa, quis que amputasse ele o seu percurso, a sua arte, a sua refracção poética do que vivia, em nome de qualquer "causa", justa ou espúria que fosse. E também por isso, para que não me digam que também então se "cancelavam" textos, aqui deixo uma versão feita em 1997, trinta anos depois dos Velvet Underground terem irrompido e rompido com quase tudo o que vigorava.  Não é uma das melhores, apesar de Bowie, e por isso para uma de píncaros deixo abaixo uma majestosa do John Cale, um pouco mais antiga.
 
Pois mesmo com a maldita heroína a rebentar à nossa volta o que se pedia e pede aos nossos é que a evitem - "por favor, não entres num carro onde haja gente com os copos, não uses químicos, por favor, só isso!". Mas também "ouve Lou Reed [e John Cale], e especialmente aquelas Caroline Says I e II, já agora". E não que se apaguem textos que não a denunciem. Porque os poetas não se amputam. E porque são tão mais importantes quando dizem aquilo que "não fica bem", para não estar eu aqui com prosápias ensaísticas.
 
Lembro-me disto ao ler que o magnífico Chico Buarque anunciou a "reforma" (o cancelamento, para ser explícito) da bela "Com Açúcar, Com Afecto", devido às pressões feministas. Encho-me de compaixão pelo ancião.
 
 

(John Cale, "I'm Waiting for the Man, Live, 1984)

(Postal para o meu Nenhures - e mais ao seu estilo)

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