Quem desconfiar dessa treta de que a direita e a esquerda estão ultrapassadas, por isso ser uma querela do passado, tese recorrente de intelectuais profundos, pode fazer pior do que ler um livrinho de Jaime Nogueira Pinto, A Direita e as Direitas.
Da obra disse VPV: “… o problema de responder à pergunta ‘O que é a Direita?’ está na impossibilidade de atribuir às direitas características comuns e absolutamente distintas das esquerdas (…) fora da história. Felizmente, o livro dele não se propõe cortar esses ‘nós’. Pretende, com mais modéstia, fazer pensar. E faz.”
Disse bem, claro: Vasco Pulido Valente não sabia dizer, nem pensar, mal.
Jaime Nogueira Pinto é um ensaísta respeitável que só não é credor de mais estima pública por ser notoriamente de direita, portanto suspeito, e VPV foi um historiador pioneiro, além do comentador cáustico e diabolicamente certeiro da nossa contemporaneidade que duas gerações tomaram para objecto da sua adoração ou do seu ódio.
Isto são eles. Já eu sou um básico. E gente como eu precisa de uma maneira prática de arrumar pessoas e doutrinas que andam aí no ar da opinião num lado ou noutro. Tenho um expediente, e esse é o de avaliar a importância que o camarada, ou o escrito, atribuem à igualdade económica: quanto mais relevante mais à esquerda. Bem sei que o critério é sumário, e não funciona para certas franjas da extrema-direita, ou algumas capelas liberais, mas no geral serve muito bem.
Susana Peralta tem vindo a ganhar audiência por estar albardada de prestigiadas credenciais académicas, escrever com simplicidade sobre assuntos complexos, alicerçar os raciocínios em abundância de estudos e números (uma pecha da tribo a que pertence, que Nosso Senhor assim os conserve) e lisonjear o sentir das massas – há pobres porque há ricos, e em tirando a estes ficam todos remediados.
O artigo de há dias no Público ilustra isto. Que diz então a preclara? Começa por se basear num estudo do World Inequality Lab, uma organização ominosa subsidiada por um misterioso European Research Council, que a financia em quase um terço, uma nebulosa de universidades, fundos públicos e umas quantas fundações privadas. Emprega um painel de investigadores, entre os quais – estava-se a ver – o bom do neo-marxista Thomas Piketty. Tem por objecto o estudo da desigualdade em todo o mundo. É, em suma, uma organização multinacional destinada a projectar académicos de esquerda (que, suponho, se fazem pagar pelas suas ruminações), a alimentar a fogueira do internacionalismo e da generalização das boas práticas fiscais, entendidas como o aprofundamento da pilhagem estatista, além do combate ao monstro da desigualdade.
E afirma: Os 10% mais ricos do mundo ficam com 52% do rendimento mundial antes de impostos; e a metade mais pobre tem apenas 8,5%. De modo que traduzindo esta triste realidade em bananas, diz Susana, uns se entopem até aos gorgomilos e outros nem para a cova de um dente; ou seja, uns sofrem de indigestão e outros de sérias avitaminoses A e C, digo eu.
Isto no mundo. Que no nosso continente as 50 pessoas mais pobres comem quase 20 bananas e as 10 mais ricas 35 (são 9 vezes mais bananas para cada um dos 10 mais ricos, umas contas que, perdido no bananal, não percebi muito bem, mas devem estar certas).
E continua: Os 50% mais pobres do mundo têm apenas 2% da riqueza; os 10% mais ricos têm 76% da riqueza, o que tudo provoca uma chocante assimetria bananética, a tal ponto que com uns a fruta apodrece (isto Susana não diz, sou eu que imagino) e outros consomem até mesmo o bocadinho de casca que lhes tocou.
Entramos a seguir numa informação que deveria fazer soar campainhas: Entre 2019 e 2021, a riqueza dos 0,0021% mais ricos do mundo aumentou 14% para um crescimento global que foi de apenas 1%.
A escolha desta percentagem leva água no bico (porquê 0,0021% e não 1%?) e essa é a de produzir um resultado chocante. E chocante é porque o significado, qualquer que seja a percentagem, é que as medidas governamentais para lidar com a pandemia penalizaram mais os pobres, o que se deve acrescentar aos custos ocultos e indirectos dessas medidas que os poderes deveriam ter ponderado, um aspecto ausente das notícias. Das notícias e do artigo porque o que retira Susana daqui? Que se deve perguntar se pessoas assim tão ricas pagam a sua justa parte de impostos. É mais uma declinação da velha máxima “os ricos que paguem a crise”, agora sob a veste “os ricos que paguem a histeria pandémica”.
Uma outra organização internacional (não, não vou respigar quem são, adivinho que é a mesma mistura suspeita de gente que se dedica a ilustrar preconceitos ideológicos esquerdosos com números que lhes dão um verniz científico) lembrou-se de uma boa: ir pescar nos números da OCDE as diferenças de impostos sobre lucros que pagam as multinacionais em cada país (por privilegiarem os de fiscalidades mais amigas) e deduzir daí o que os Estados perdem. Isto é extraordinário, porque todo o raciocínio assenta no pressuposto de que há Estados que, por terem fiscalidades competitivas, não sabem o que andam a fazer ou prejudicam a humanidade que, já se vê, deve ser governada sem competições espúrias que as Susanas não sufragam.
Com estas artistices e outras, que incluem o recurso a offshores por parte não apenas das multinacionais mas também de indivíduos que, por serem absurdamente ricos, têm um inadmissível receio de que os pilhem, estima-se que, só no último ano, se perderam 312 mil milhões de dólares, a que se somam 171 mil milhões de “riqueza financeira” escondida. E a maior parte do bolo – ó escândalo – não vai sequer para ilhas paradisíacas: fica, em 80%, nos países da OCDE. Eu não sou de ditos mas desconfio que alguns destes evasores ajudam a financiar estes think tanks justiceiros: sempre foi judicioso atirar um osso aos inimigos.
E chegamos a Portugal, onde também há problemas no bananal: as 10 pessoas mais ricas comem quase 40 bananas e são proprietárias de 60 bananeiras. Na EU, apenas a Estónia tem maior desigualdade de rendimento (medido antes de impostos, um abuso metodológico que fica por explicar) e a desigualdade da riqueza só é superior à nossa em 6 países. Os ricos locais, por umas contas sábias, põem-se ao fresco com nada menos que 470 milhões e as multinacionais 420. O que com esse dinheiro o Estado não faria, credo. Susana não dá exemplos para o mundo, em relação aos 483 mil milhões, mas para Portugal dá – a coisa dava para mais do que duplicar o abono de família. Um exemplo que, fosse eu uma pessoa saudavelmente de esquerda, e com o coração generoso sangrando de amor pelas crianças e seus pobres pais, me traria lágrimas aos olhos que tenho azulados metaforicamente pelo brilho cruel do egoísmo.
Sucede que na hierarquia das nações, medida pelo produto por cabeça, há umas que trepam e outras que decaem relativa ou absolutamente. Uma grande multiplicidade de factores explica a evolução e para encontrar os comuns às histórias de sucesso, ou às de insucesso, têm-se escrito bibliotecas. Se o problema fosse estritamente de índole económica a respectiva “ciência” já teria, talvez, coalescido numa receita. Mas, infelizmente, factores geoestratégicos, históricos, culturais e muitos outros fazem parte do problema; e mesmo no que toca aos que a pobre Academia económica relativamente conhece não há entendimento: há economistas comunistas, que Nosso Senhor lhes perdoe, e de todas as outras doutrinas, com graus diferentes de valoração da liberdade económica, propriedade privada, e funções e dimensão do Estado.
Há países relativamente igualitaristas com bom desempenho, mas também desigualistas (aos comentadores: sei que a palavra não existe); há países com grandes punções fiscais que não têm mau desempenho, mas outros contidos que fazem ainda melhor; e com excepção dos países comunistas, que produzem invariavelmente sociedades pobretas e opressivas, encontram-se exemplos, com ou sem democracia, com mais ou menos liberdade económica, com fiscalidades altas ou nem por isso, para ilustrar todas as teses e o seu contrário.
Por mim, os casos relevantes de estudo, e que nos deveriam interessar, não são os daqueles países que estão mais adiantados (e que têm com frequência crescimentos anémicos), são os dos que, agora ou no passado, subiram aceleradamente a ladeira do desenvolvimento, e os daqueles que, pelo contrário, escorregaram pela encosta abaixo.
Dito de outro modo: não é a Alemanha que nos deve inspirar, é a Estónia e a Venezuela. E se quisermos imitar os míticos países nórdicos (coisa que acho impossível porque o fundo cultural, a ética do trabalho, a tradição do serviço público não são os mesmos), o momento actual interessa pouco, o que releva é o conjunto de acções que arrancaram in illo tempore aqueles países ao subdesenvolvimento.
Hoje por hoje, do que precisamos não é de impostos altos nem de obsessões com a igualdade, cujo mérito, aliás, os seus cultores acham dispensável explicar, como se estivessem a enunciar uma verdade axiomática. E pelo contrário os impostos devem baixar, o Estado encolher e a liberdade crescer.
Porque eu quero que o país cresça como os antigos países europeus da cortina. A Susana Peralta também, mas norteada pelos princípios económicos da escola Nicolás Maduro porque acredita, como ele, que a melhor maneira de a riqueza crescer é começar por a dividir. A própria achará decerto que exagero, e tem razão. É o papel da retórica: exagerar os contornos de uma verdade para que o seu núcleo ressalte.
* Publicado no Observador