Dia de não-feriado
Ontem foi dia de não-feriado. Compreende-se: os feriados cívicos celebram datas marcantes e comemorar duas datas de dois anos seguidos, 1974 e 1975, seria demasia: naquela madrugada inteira e limpa, no dizer inspirado da poetisa Sophia, grande para os que assim a acham, ou estava uma grande e pouco épica nevoeirada ou brilhou o sol do unanimismo.
Brilhou o sol do unanimismo: cada um viu no 25 de Abril o fim de um regime que não deixava ninguém manifestar as profundidades de que era depositário, e acreditou que no seu lugar ficaria a liberdade, o leite, o mel, o regresso dos soldados, a Europa rica, a democracia, o socialismo, a saúde, a explosão da criatividade artística reprimida e o consumo de coca-cola.
Como não podiam ficar essas coisas todas em simultâneo, o unanimismo desfez-se: uns queriam o modelo do Peru, de Cuba, de Moscovo ou de Pequim, e outros o da Suécia, ou da Dinamarca, ou de Bona ou do ami Mitterrand. Ou seja, o 25 de Abril celebra a unidade poética e ilusória, assente em equívocos, dos quais o primeiro era a negação do motivo verdadeiro do golpe, a recusa da guerra colonial; e o 25 de Novembro o senso e a poupança ao inferno cheio de boas intenções.
Doutro modo: uma data refere-se à unidade; e a outra à divisão.
Divisão entre vencedores, que foi a gente imperfeita e confusa da barafunda democrática, e vencidos, que foram comunistas e primos de vária pinta – a malta cujos descendentes ideológicos, quando não são os próprios cheios de colesterol, se alojam hoje no PCP e no Bloco.
A ter que celebrar alguma (e eu não celebraria nenhuma, por razões que abaixo explico), o 25 do quatro é que é.
O quê, associamo-nos então à comunistada e à bloqueirice, no primeiro caso correndo o risco de contrair dementarite totalitária e no segundo acne mental?
Sim. Quem não tem muita confiança no seu sistema imunitário é que tem receio de contágios. E depois:
Aqui há uns anos o meu amigo Hélder Ferreira envolveu-se numa discussão em torno do interessante problema de saber se se pode ser amigo de comunistas. Ele (e eu também, embora não tivesse molhado a sopa) achava que sim, uma turba de outros reaccionários que não. Porque aquela gente, se pudesse, roubava a muitos de nós – os que não fossem trabalhadores por conta de outrem – o modo de vida, e porque em nome da nossa liberdade fazia o que podia para a substituir pela deles, na qual não cabem vozes dissonantes, e portanto não caberíamos nós. Donde, como se pode ser amigo de quem defende um estado de coisas que nos anula, e a muitos meteria na cadeia? Não são adversários, são inimigos.
Raio de problema. Que encontra solução na contradição inerente ao respeito pelas liberdades, das quais o melhor exemplo é o da de opinião: ou abrange quem diz coisas completamente opostas às nossas convicções ou não é liberdade. E também no facto de um amigo comunista o poder ser (amigo) por acreditar sinceramente que nós não correríamos qualquer risco sério no caso de vingar a sua deles distopia – já que juram por fantasias irrealizáveis não há razão para duvidar da boa-fé em acrescentar essa ao lote.
Celebramos então aquele momento em que julgávamos que não havia desfiladeiros, crateras e vulcões entre nós, e esquecemos o outro em que nos livramos do perigo de o 25 de Abril de 1974 desembocar, afinal, num 1917 moscovita?
Não é preciso esquecer nenhuma das datas. Mas como, dos três dês que não sei quem inventou retroactivamente para o 25 de Abril – democratizar, descolonizar e desenvolver – o primeiro foi conseguido apenas pelo 25 de Novembro, o segundo abriu feridas com as quais a História ainda não acertou contas e o terceiro empalidece em comparação com o Estado Novo (mesmo que a maioria das pessoas, por ignorância condicionada, assim não o entenda), talvez fosse um óptimo terreno de entendimento acabar com um feriado, e não o substituir pelo outro.
Precisamos de datas pela mesma razão que todos os países que não estão cansados de o ser as têm? Precisamos sim. Mas como estamos afogados em dívida e a trabalhar menos é que, certamente, não a vamos pagar, podíamos acabar com o feriado do 25 de Abril sem o substituir pelo 25 de Novembro.
E então, de feriados cívicos, nicles? Estamos servidos: ele há o 1º de Maio, que os comunistas julgam que é um dia deles mas se tornou um feriado mundial que celebra o trabalho, e o 10 de Junho, dedicado a Portugal por razões oscilantes. E há o 5 de Outubro, que comemora um regime celerado fundado no assassinato de um homem bom, mas está ungido pela tradição. A qual santifica as coisas, se durar tempo suficiente, mas bem poderia neste caso ser corrigida nos discursos.
Não para celebrar o regime republicano, que nunca o mereceu, mas o Tratado de Zamora, que teve lugar no mesmo dia, e tem a vantagem de ser uma data plausível para o nascimento do nosso a tantos títulos detestável país, mas que é o único em que todos – comunistas, bloquistas, pessoas normais – não somos estrangeiros.