Chamar alguém de fascista é um insulto que infelizmente os comunistas degradaram pelo excesso de uso.
Tudo pela Nação, nada contra a Nação, era o mote da seita, que oferecia um modelo completo de governação. Tão completo que, tecnicamente, ninguém é fascista salvo os apaniguados de Mussolini, todos os outros defensores de regimes estatistas subscrevendo diferenças em relação ao modelo original, com características próprias que, nuns casos mais e noutros menos, dele se afastavam.
É o que dizem os entendidos de respeito, que se recusam a classificar o regime salazarista, por exemplo, de fascista. E não dizem os comunistas porque, como o fascismo histórico foi derrotado, e o seu principal estadista pendurado de cabeça para baixo numa praça em Milão, tachar alguém de fascista já implica que defende ideias derrotadas, para além de odiosas.
As palavras, porém, ganham vida própria, e que se danem os rigores históricos e os tecnicismos. E na verdade, se reduzíssemos o fascismo a uma doutrina que faz prevalecer os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais e que é representado por um governo autocrático, centralizado na figura de um ditador, quase nenhum regime seria hoje fascista, salvo talvez o chinês; mas se substituirmos nação por humanidade, raça por género, e governo por centrão rotativista, então fascistas há por aí avonde.
Fascista, para um comunista, é todo aquele que defende a liberdade económica e portanto aceita a desigualdade material que daí resulta; e para mim, que não sou menos do que um comunista e tenho igual direito de me borrifar para o rigor dos conceitos, fascista é todo aquele que vê com bons olhos o atropelo de direitos individuais em nome de um bem maior que arbitrariamente define. Dantes era a nação e agora é o que se queira: podem ser os direitos das mulheres e por isso se pretendem estabelecer regras processuais penais diferentes para os crimes contra elas; podem ser os “direitos” dos animais sencientes (senciência que exclui desde logo, abençoadamente, as lombrigas, mas não, incompreensivelmente, os ratos), e por isso se pretende acabar com as touradas; e pode ser o SNS e por isso há quem entenda que todo o vício (exagero: não é todo, é apenas aquele que possa originar doenças ou achaques e que o portador de tais opiniões não tenha) deve ser activamente combatido pelo Estado a golpes de proibições e sanções, em nome da sustentabilidade do SNS, que deve começar “a ser encarada como obrigação de cada um de nós”.
O truque consiste em defender um valor qualquer que seja consensual, neste caso a “sustentabilidade” do SNS, e absolutizá-lo. Isso faz com que a voz ou o comportamento dissonante sejam antissociais, e fica aberta a porta para a repressão. Que se danem os direitos individuais, sem cuja compressão valores colectivos imaginariamente superiores podem ser ofendidos, desde logo pela livre expressão da opinião.
É daqui que vem o combate às notícias falsas e o labéu do negacionismo: para que as notícias sejam falsas alguém assim as define, muito mais do que alguém assim as demonstra, e o negacionismo considerado perigoso é o que belisca a verdade oficial, não o que, no mercado das ideias, se cobre de ridículo. Que haja uns cómicos a acreditar que a terra é plana, ou que a humanidade nasceu exactamente há oito mil anos, duzentos e trinta e um dias, não são notícias que valha a pena censurar; mas que no imenso catálogo das medidas da “luta” anticovid, se considerem inúteis muitas, abusivas outras, contraproducentes bastantes, indutoras de males maiores do que os pressupostamentes evitados a maior parte – isso é que não pode ser. E não pode porque que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar, é o que o Poder deseja, a bem da grei. E como, dada a urgência, por causa do progresso das infecções e da intranquilidade pública que a comunicação social alimenta, a opinião exige medidas: do que se precisa é de obediência porque a altura de mandar já era ontem.
Temos então que há uns depositários de uma acendrada noção do que é o bem público que sabem, o que sabem calha coincidir com o que julga saber a maior parte do eleitorado e neste quadro os que discordam podem até às vezes, em nome da liberdade, dizer o que lhes vai na alma, desde que obedeçam. E, se não obedecerem, são completamente livres de o fazerem desde que não tenham os mesmos direitos que os bons cidadãos: podem perfeitamente achar que não se devem vacinar, mas não podem entrar num restaurante aos fins de semana sem exibir um certificado, nem viajar de avião, nem, nem. Hoje. E amanhã ou vivem da forma que os savonarolas da saúde acham indicada ou terão o direito de ir ao privado, porque ao público não, que está reservado a quem exiba certificados vários de bom comportamento.
Fernando Leal da Costa é um destes iluminados. Às tolices arrogantes que defende no Observador Henrique Pereira dos Santos responde cordata e certeiramente: recomendo a leitura para se entender a maneira insidiosa como o fascismo higiénico faz o seu caminho e quais são os argumentos ao dispor das pessoas de senso.
Este conflito é novo: de um lado estão os amantes da liberdade e do outro os fascistas, enquanto dantes de um lado estavam fascistas de esquerda e do outro fascistas de direita.
Fernando Leal da Costa, que foi governante no tempo da troica, é um fascista. E antes que venha por aí uma horda de comunistas abrir-me os braços e declarar, os olhos húmidos de emoção camaradesca, que vi finalmente a luz, declaro:
Fernando é tão fascista como os comunistas, mas mais perigoso do que estes, que estão acantonados na sua aldeia de cro-magnons, porque parece muito civilizado.