As pessoas vivem cada vez mais em cidades e há cada vez mais pessoas com automóveis, donde há cada vez mais dificuldades em circular e em estacionar. É assim em toda a parte e mesmo as cidades que perdem habitantes não os perdem para o campo, mas para outras cidades – aquelas onde há empregos.
Tudo boas notícias, em que pese aos trombeteiros de desgraças. Porque a vida no campo pode ser encantadora nos livros esquecidos de Trindade Coelho, em alguns lembrados de Júlio Dinis ou até n’A Cidade e as Serras, mas foi uma vida de miséria, doença, ignorância, morte prematura e brutalidade. Os aldeões começaram a dar à sola logo que puderam – para o Brasil, Lisboa, Porto, outras cidades e, aí pelos anos 50 e crescentemente, França, Alemanha e outros países do boom do pós-guerra.
Hoje, já quase não é a gente do campo que emigra porque o campo se mecanizou, e logo não tem gente; nem o manancial de braços para emigração é o mesmo porque as mulheres, desde a invenção da pílula nos anos 60, e a sua participação no mercado de trabalho, deram em não abraçar carreiras de produtoras de surtos populacionais.
O automóvel começou por ser um luxo acessível a uma insignificante minoria mas cedo apareceram industriais a oferecê-lo ao povo trabalhador pelo expediente da produção em massa, da qual o pioneiro foi o revolucionário Ford. Na Europa do pós-guerra o Carocha, o Joaninha, o 2 CV, o Fiat 600 chegaram à classe média num tempo de crescimento económico acelerado e dinamismo. E embora os automóveis pequenos e baratos tivessem como propósito motorizar a maior quantidade possível de pessoas no menor espaço de tempo, cedo se desenhou um padrão ainda hoje em vigor: soluções e luxos dos modelos mais caros iam com o tempo “descendo” na hierarquia dos modelos (uma boa lembrança, talvez, para os indignados hoje com o que há quem pague por certos automóveis: sosseguem que o que invejam há-de chegar ao vosso charêlo).
Automóvel próprio e capitalismo deram-se bem. E não é de estranhar que, desde sempre, a esquerda tivesse torcido o nariz ao transporte individual. A de hoje, depois da falência do comunismo, já não diz aquelas coisas redondas e confortáveis das certezas marxistas: propriedade colectiva dos meios de produção, distribuição equitativa dos bens materiais, economia planificada e a outra meia-dúzia de pérépépés.
Mas continua a comprar toda a sorte de engenharias sociais nas quais o colectivo aparece à frente do individual. E que melhor lugar do que as cidades, onde os automóveis criam problemas difíceis de resolver, para, em nome de coisas preocupantes como a poluição, a sustentabilidade (que ninguém sabe bem o que é, mas tanto melhor), os cheiros, a saúde e ainda um par de botas, para combater esse símbolo da liberdade individual, do sucesso material, e da diferença entre as pessoas, que é o maldito veículo?
A propósito da recente eleição de Moedas o assunto veio à baila. Parece que o novo presidente não é adepto de ciclovias, pelo menos algumas, e deseja promover a construção de parques de estacionamento, ó que loucura.
Diz Fernanda Câncio, com argúcia: “É que tal medida não se limita a tornar mais atrativo o uso de carro; faz mais penoso o dos transportes públicos de superfície - a Carris - pois quanto mais carros houver a circular menos os transportes públicos são eficazes”.
Não se pode negar que se houver mais carros a circular etc. Porém, se admitirmos que a construção de parques retira carros do estacionamento na via pública, detalhe que a Fernanda escapou, não é um salto ilógico pensar que pode compensar na fluidez da circulação, assim como passagens desniveladas também contribuem para esse resultado… ou não? E a preclara que me desculpe mas, já que fala em transportes de superfície, poderia porventura encarar a hipótese da sombra de uma suspeita de que talvez fosse avisado falar de transportes debaixo do chão, isto é, do metro. E isto porque o metro pode concorrer com vantagem com o transporte de superfície, visto que, ao contrário do que julgam as Fernandas deste mundo, o cidadão, se tiver uma boa alternativa ao automóvel, usa-a. Não talvez o cidadão que tenha muitos recursos, mas sem dúvida a maioria. Ora, o metro é tipicamente investimento público (poderia não ser, mas isso são outros quinhentos), de modo que é ouro sobre azul: colectivo, investimento, grande infraestrutura que os sindicatos podem paralisar, alavancando portanto a influência social do povo trabalhador, boas credenciais ecológicas e assim… que tal? Até se podem pintar as carruagens de um vermelho inspirador, no intervalo de uns moços com acne as picharem com grafiti intensamente artísticos, comunicando ao burguês ensimesmado as mundividências da juventude revoltada.
Parece que Moedas defende que “os 20 primeiros minutos de estacionamento sejam gratuitos em toda a cidade e paguem menos [os residentes] 50% em todos os parquímetros”. Como o espaço público é escasso, e só por o ser é que se justifica que a sua ocupação com automóveis seja paga; e como a medida é discriminatória em relação a quem, provavelmente por não ter escolha, vive longe: sinto-me tentado a concordar com Fernanda (o que teria ainda a vantagem suplementar de lhe ser agradável, dado que, sem a conhecer pessoalmente, simpatizo com ela). Sucede porém que mesmo aqui talvez a ideia de Moedas seja somente a de ajudar a facilitar a fixação de residentes, um objectivo meritório. Não sei, não conheço verdadeiramente Lisboa nem os seus problemas, e ainda menos tenho dados que fundamentem ou contrariem uma opção deste tipo.
“… não há ‘cidade sustentável’ ou sequer mundo sustentável assim, e sabemo-lo há décadas. Só falta usar esse saber para salvar o que é possível - coisa que andamos coletivamente, cidade, país e mundo, a adiar ad aeternum.”
Ahem, eu conto mais décadas de vida do que a autora e não sei nada disso. E ficaria muito surpreendido se cidades muito grandes, médias ou pequenas, planas ou às subidas e descidas, com ou sem zonas de expansão fácil, novas em países novos, de traça medieval ou dos séculos XVIII ou XIX, cidades que crescem e cidades que estagnam, em que as políticas habitacionais e urbanísticas foram numas assim e noutras assado, devessem todas ter as mesmas soluções para os mesmos problemas. E, por singular coincidência, em todas a solução fosse a proibição, a bicicleta, os Medinas, a trotinete e a Carris.
A verdade é que, a acreditar nisto (e é legítimo duvidar porque a afirmação provém de quem tem interesse em engordar os números para fundamentar políticas anti automóvel), entram em Lisboa todos os dias 400.000 carros, que se somam aos 200.000 dos residentes.
O número é impressionante (mais automóveis do que habitantes!), mas conviria saber quanto tempo, em média, ficam dentro da cidade, e onde, para saber que espaço é realmente necessário. A área de Lisboa é ligeiramente maior do que 100 quilómetros quadrados, e destes também não sei quantos são de arruamentos e praças, mas convém ter noção das proporções: A 10 metros quadrados por cada automóvel o espaço ocupado seria de 6% do total se todos os automóveis estivessem ao mesmo tempo dentro de portas e se não se pudessem empilhar. Um trabalho paciente deveria poder habilitar a chegar a conclusões, incluindo a de apurar o que, ao certo, vai tanta gente fazer à cidade, e o que se poderia fazer para diminuir esse fluxo sem tocar na liberdade das pessoas.
Depois, conviria fomentar a construção de silos nos pontos de maior pressão, ou nas cercanias (respeitando minimamente a envolvência, não se trata de silos como se fosse em Nairobi, que nem toda a Lisboa é a calçada de Carriche). Fomentar quer dizer, por exemplo, isentar de taxas de licenciamento de obra e acelerar o respectivo processo. Naqueles locais ou zonas onde a circulação seja particularmente difícil, o parqueamento, DEPOIS de disponibilizado em garagens, deve ser simplesmente proibido na via pública, ao menos nas horas úteis. E poder-se-ia inclusive, para contentar estatistas e em homenagem à maioria de esquerda que existe em Lisboa, mesmo fora dos jornais e televisões, negociar o preço do estacionamento nos parques privados, em troca da isenção do custo do licenciamento e da proibição do estacionamento. Salazar controlava o preço do pão e não consta que as padarias fossem à falência.
“… agora que vamos finalmente poder andar na rua sem as máscaras pandémicas teremos de trocá-las pelas antipoluição. Novos tão velhos tempos”.
Estou muito feliz neste passo por poder sossegar Fernanda, dado provavelmente estar mais ao corrente da evolução do automóvel, pretérita e prevista, do que ela: os motores actuais são muito menos poluentes do que no passado (gasolina sem chumbo, escapes catalíticos, gestão da combustão computadorizada, etc.); e a tendência crescente do uso de automóveis eléctricos, cuja poluição fica a montante, nas minas e centrais de produção de energia, e a jusante, nos resíduos, portanto não em Lisboa, graças a Deus, poupa a cidade. Donde a máscara (que já no caso da Covid era de duvidosa utilidade) pode definitivamente regressar unicamente aos dias do Carnaval propriamente dito.
Em suma: Tenho a solução? Desconfio: problemas difíceis não se costumam resolver com soluções fáceis, e nesta equação faltam muitos factores.
Mas também quem parte de princípios errados não pode chegar a conclusões certas: Cercear uma verdadeira conquista dos trabalhadores em nome do colectivo e das ideias da moda de esquerda, a mim, parece-me uma coisa dos velhos tempos.