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Delito de Opinião

Leituras

Pedro Correia, 28.08.21

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«O heroísmo começa onde a razão pára: na subvalorização da vida. Tem a ver com a loucura, o êxtase e o risco.»

Erich Maria Remarque, O Caminho do Regresso (1931), p. 35

Ed. Publicações Europa-América, 1978. Tradução de Maria Helena Rodrigues de Carvalho. Colecção Século XX, n.º 154

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.08.21

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Ivone Mendes da Silva: «Vi agora que a RTP 1 vai passar Ma nuit chez Maude às duas e meia da manhã.  Será um serviço público de acompanhamento aos insones ou, após alguns estudos, chegaram à conclusão de que os rohmerianos estão acordados a essa hora?»

 

João Campos: «Cavaco Silva defende imposto sobre heranças e doações. Como é bom de ver, faltava ainda esta ideia peregrina para alimentar o monstrengo do Estado. À partida, os bens e valores herdados ou doados já foram sujeitos a vários tipos de impostos - a herança ou a doação consiste apenas na passagens daqueles bens e valores de uma pessoa para outra. Como tal, cobrar impostos nestas matérias parece-me a mim ridículo, para não dizer (mais) um roubo. Claro, isto é só o PR a falar - e tem falado muito e mal, o PR. Falta ainda saber o que pensa o Governo disto. Mas os antecedentes não são nada promissores.»

 

José António Abreu: «No que me diz respeito, evito fazer longas descrições das minhas férias e quase não mostro fotografias. Explico que nem pensar em apresentá-las assim, por seleccionar. Seria demasiado penoso para quem as visse, acrescento. Não resulta. Ninguém parece ouvir-me. Ninguém percebe a mensagem implícita e toda a gente continua a mostrar-me cada uma das centenas de fotos que tirou nas férias e a repreender-me por não mostrar as minhas. Serei a única pessoa não-masoquista no raio do planeta? Decididamente, regressar de férias sucks. Mesmo quando são os outros a fazê-lo.»

 

Leonor Barros: «Em Moscovo não precisamos de subir aos céus para nos deixarmos surpreender. Ao contrário de muitos outros sítios, em Moscovo há que descer às profundezas e adentrar as entranhas da cidade. Lá onde o povo segue as suas vidinhas, iguais a todos as outras, longe da luz e do sol, onde todos podem usufruir da arte e do sublime. E contudo tão assombrosamente belo.»

 

Patrícia Reis: «Sou feliz a mais de setenta por cento. Às vezes vejo aquelas escanzeladas, cheias de coisas de marca, cursos superiores e filhos criados e pergunto-me se serão felizes. Não são de certeza. Pelo menos não são como eu sou. Posso apostar.»

 

Rui Rocha: «Há coisas que são evidjentes. Uma djefesa com o Colga e o Parriço é o melhor ataque. Dja equipa contrária. Cadja canto djos adjversários vale-lhes o mesmo que uma grande penalidjadje. E um ataque com o Djostiga e o Djaló é a melhor djefesa. Djos adjversários. Se o Djomingos, 15 contratações djepois, não tem outras soluções, sugiro-lhe que coloque o Colga e o Parriço no ataque e o Djostiga e o Djaló à djefesa. Pior djo que está agora não fica. Se resultar, é um dgénio. Se falhar, acaba djespedjidjo e a caminho djo Djragão. Nadja que não vá acontecer se insistir na solução actual.»

 

Eu«Há um sopro bíblico neste singular filme para adultos onde as crianças desempenham um papel central, numa espécie de celebração do triunfo da inocência. Com alusões ao Sermão da Montanha, talvez o mais belo texto de toda a Bíblia.»

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 27.08.21

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Livro quatro: Uma História da ETA, de Diogo Noivo

Edição E-primatur, 2020

398 páginas

 

Durante meio século, a ETA aterrorizou Espanha. A pretexto da luta pela independência das três províncias do País Basco, esta organização separatista declarou guerra ao Estado espanhol no final da década de 60. Rodeava-se de alguma aura romântica: em Madrid vigorava a ditadura de Franco. Mas o franquismo agonizou e morreu sem que a ETA guardasse as armas. Pelo contrário: mais de 90% dos seus crimes foram cometidos durante o regime democrático, que deu plena autonomia à região basca – incluindo o reconhecimento da língua própria. Ao invés do que sucedeu nas três províncias bascas em França, submetidas ao poder central em Paris sem gerar sobressaltos nacionalistas: todos os gatilhos estavam apontados para Espanha. No ano de maior terror, 1980, foram assassinadas 92 pessoas. Uma a cada quatro dias.

Diogo Noivo – analista de risco político, também autor do DELITO – investigou a fundo a questão basca, tornando-se num dos maiores especialistas portugueses do tema. O resultado encontra-se nesta obra, a mais minuciosa até hoje entre nós. Examina as raízes do movimento, assentes na crença da superioridade basca sobre os restantes povos da Península. Inventaria as cumplicidades da ETA em território português, que «não foram episódicas nem casuísticas». E descreve o cortejo de crimes cometidos pelo terrorismo etarra: 855 vítimas mortais (incluindo 579 assassínios no próprio País Basco); 2533 feridos em 3500 atentados; 15.649 pessoas ameaçadas de morte; um número indeterminado de habitantes movidos para longe da região. Pelo «medo de levar um tiro, o medo de perder amigos», como lembra o filósofo Fernando Savater, basco de San Sebastián. Também ele forçado a partir.

Página encerrada? Nunca se diga nunca. Os herdeiros do braço político da ETA, hoje dissolvida enquanto guerrilha urbana, estão bem vivos. Sentam-se no parlamento regional em Vitória e até no Congresso dos Deputados em Madrid. Enquanto «cerca de 300 homicídios da responsabilidade da ETA continuam sem autores materiais identificados», como assinala Diogo Noivo. Demasiadas famílias sofrem ainda a dor do luto.

 

Sugestão 4 de 2016:

Páginas de Melancolia e Contentamento, de António Sousa Homem (Bertrand)

Sugestão 4 de 2017:

Os Filipes, de António Borges Coelho (Caminho)

Sugestão 4 de 2018:

Não Respire, de Pedro Rolo Duarte (Manuscrito)

Sugestão 4 de 2019:

Dois Países, um Sistema, de Rui Ramos e outros (D. Quixote)

Sugestão 4 de 2020:

Que Nós Estamos Aqui, de João Tordo (Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Voltar ao metro

Teresa Ribeiro, 27.08.21

Não guio. Como sempre estive convicta de que um dos principais focos de contágio da Covid é nos transportes públicos, defendi-me durante bastante tempo com um esquema de boleias que me resolveu o problema. Mas a dependência cansa e às tantas entendi que já era tempo de regressar à normalidade, até porque tenho um horário flexível, que me permite evitar as horas de ponta.

Quando voltei ao metro, a minha curiosidade concentrou-se no comportamento dos utentes. E constatei mais uma vez que somos um povo obediente e ordeiro. A maioria, quando há espaço que chegue, preocupa-se com o afastamento e usa máscara. Mas claro que há excepções. Em poucas semanas vi gente ao molho, sem necessidade. Magotes a concentrarem-se escusadamente junto às portas, muito antes de o metro entrar nas estações, pessoas sem máscara por estarem a beber, ou a comer, ou porque sim. Tanto que se fala na importância do distanciamento social e muitos, sem pensarem duas vezes, sentam-se nos bancos que ficam costas com costas, de modo a quase tocarem na cabeça uns dos outros.

Nunca me apercebi tanto como agora de que há imensa gente que tem o vício de ocupar o tempo que gasta nas deslocações a falar ao telefone. Numa só carruagem é comum ver várias pessoas nesse trai-lai-lai e facilmente se percebe, porque muitas falam alto, que não se trata de telefonemas inadiáveis.

Não é preciso ser especialista em epidemiologia para perceber que o risco de contágio aumenta com este género de comportamentos, tão fáceis de corrigir. Tanto tempo que se tem gasto em televisão a entrevistar especialistas, tanto que nem os mais pacientes já  os conseguem ouvir, e ninguém se lembrou de encomendar uma campanha, feita de forma simples e divertida, que chame a atenção para a importância dos detalhes na prevenção do contágio?

Ontem não pude evitar um risinho amarelo quando entro numa estação e oiço em fundo a voz de uma funcionária avisar que "a linha verde está com perturbações". Hoje tive a certeza que a velha rotina se tinha instalado na minha vida quando ouvi ao chegar ao metro, a voz de uma funcionária a pedir "desculpa pelo incómodo causado", pois "o tempo de espera na linha azul" podia ser "superior ao normal". 

E claro, escadas rolantes avariadas também existem com fartura. Há coisas que nem com a pandemia mudam...

Eleições autárquicas nos Olivais, Lisboa

jpt, 27.08.21

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Nas próximas eleições autárquicas para a Câmara Municipal de Lisboa votarei na coligação "Novos Tempos", encabeçada por Carlos Moedas: pois o seu líder é homem de grande competência, razão não suficiente mas simpática, e a lista surge depurada da tropa PSD mais dada à politiquice; e porque é necessária outra concepção do concelho, uma diferente prática camarária e um corte no monstro autárquico clientelar. E porque o actual presidente não é politicamente aceitável.
 
Dito isto tenho uma outra opção para fazer: o voto na minha freguesia, Olivais. Gerida há um ror de tempo pelo PS, e há cerca de uma década com uma inenarrável presidente, Rute Lima, um arquétipo de caciquismo paternalista e imobilista (e, muito significativamente, também colunista do boletim "Público"). E é importante mudar isto. Em quem votar?
 
Notei hoje na lista da "Novos Tempos" (PSD et al) para a Junta dos Olivais, na qual estava predisposto a votar. Andam agora a visitar a esquadra, a igreja católica, os bombeiros, os mercados. E dizem (vou ser ríspido, balbuciam) que é "muito interessante". A um mês das eleições! Os dois partidos clássicos de centro-direita não conseguem apresentar, para uma freguesia lisboeta com 32 mil eleitores e tamanha especificidade socio-laboral, um documento reflexivo sobre a situação e uma súmula de medidas necessárias, inflexões possíveis, anseios a médio prazo. Apenas um "vamos fazer melhor". Inaceitável, de pobre que é. Votarei na lista de Moedas para Lisboa mas não nos Olivais.
 
Então em quem votar? No CHEGA não voto por razões higiénicas, nem leio. No BE não voto por razões médicas - independentemente de hipotéticos méritos -, pois se o fizesse não só me rebentariam as úlceras como seria assomado por uma septicemia letal.
 
Decidi então, há uma hora, votar no PCP - muito me lembrando que nos anos 80s o havia feito. O meu pai, o camarada Pimentel, foi candidato da (julgo que ainda) APU, num lugar inelegível, no fundo dos suplentes, e eu claro que votei na lista dele. Agora decidi-me pela reprise. E fui ler a documentação do PC sobre esta candidatura - velho hábito, de quem vive numa casa que poderia ser um polo olivalense do "EPHEMERA", tanta a livralhada e documentação "avulsa" do "partido" que aqui se acumulou. Para que não me acusem de reaccionário, agente das "redes sociais burguesas", aviso que fui à página da DORL do PCP procurando o que dizem sobre os Olivais. Também umas fotos simpáticas e um único documento (a um mês das eleições): um folheto, florido, lamentando a não realização dos Santos Populares, afirmando que o preço médio das habitações em Lisboa é de 590 mil euros (estamos a falar dos Olivais?), e que nos transportes públicos as pessoas têm de usar máscaras e de as pagar (é notório que o PCP teve uma enorme dificuldade em pensar este período pandémico). Enfim, uma candidatura vácua - e falta-me (sempre, mas hoje ainda mais) o camarada Pimentel para resmungar isso. Ou seja, também não vou votar nisto.
 
Sobra-me a IL, com a qual ando de candeias às avessas apesar de neles ter votado para a AR, dado a minha alergia ao "engraçadismo" que os comanda, e também à avidez desta sua candidatura lisboeta - pois Delenda est Medina, o que eles não ponderam na sua excitação de caloiros. E, resmungando, volto ao motor de busca: "Iniciativa Liberal, Olivais". Nada... Nada, mesmo.
 
Uma freguesia lisboeta com 32 mil eleitores, hoje em dia algo central em termos geográficos. Onde o PS ganha a Junta com 50 e tal por cento mas tem 30 e tal por cento nas legislativas - ou seja, uma mudança de voto autárquico aqui poderia ter forte impacto nos resultados camarários. E é este vazio, intelectual e político. A péssima presidente da Junta decerto que continuará a solo. Mas isso até é o menos, pois acima de tudo isto mostra como os partidos estão em colapso.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 27.08.21

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Ana Vidal: «Da minha mesa de canto vejo-o entrar aprumado, digno, ainda bonito. Foi em tempos um homem lindo e muito disputado, segundo me contaram. Já perdeu o viço, mas ainda conserva o porte de quem foi tu-cá-tu-lá com reis e cardeais. Só os olhos parecem pedir desculpa à vida, como se tivesse abusado dela de alguma forma e agora saiba já ser tarde para reparar o erro.»

 

Ivone Mendes da Silva: «É ainda Agosto, ainda há gente de férias: este prédio era, ontem, um veleiro quase deserto a flutuar sobre a avenida. Acordei com um solavanco de movimento e só tive tempo de me alinhar para aparecer sorridente e composta perante a minha vizinha do 4.º andar. Pelas minhas contas,  dormi uns três quartos de hora.»

 

Leonor Barros: «Depois de um breve périplo pela Praça Vermelha para a fotografia da praxe há que rumar ao GUM para se deixar fotografar, noivo, noiva e convidados num número nunca superior a cinco, com a Dior lá no fundo, a Furla, ajudem-me que sou pouco entendida nessas marcas da moda. Sim, os russos gostam da moda, do fausto, da afirmação e da ostentação. Quem diria que poderiam afinal ser parecidos com os portugueses.»

 

Rui Rocha: «Há lugares que parecem feitos para os adoradores do sol. Não é o caso de Esposende. Aqui, celebra-se o vento. É ele o grande organizador dos dias de Verão. É a permanência do vento que nos dá tempo para saborear a pequena cidade. Em tantos dias, é impossível estar na praia. Não são horas perdidas. Praticamente com um pé no Cávado e outro no Atlântico, abrigo-me no Café da Foz, numa plácida disputa entre a contemplação de uma das mais belas paisagens de Portugal e o afago daquele livro que guardei todo um ano para o poder ler naquele exacto momento. É também ali que a angústia do dia-a-dia, por momentos, me toma. Mas, logo  na Foz do Cávado, é a calma que contemplo. Está tanto vento. Esse é o meu sossego. Tenho tempo. O vento, o vento.»

 

Eu«Nesta Dublin estranha, invadida pela neve, perpassa ainda a evocação de uma paixão atraiçoada pela morte num tempo em que "todos se transformavam em sombras". Em crescendo, como nos compassos de uma ode musical, o autor conduz-nos aos fulgurantes parágrafos finais que tornam a história verdadeiramente memorável. [James] Joyce, ainda longe de ser o reconstrutor do idioma que seria no seu Ulisses, era já aqui um estilista consumado - mestre na arte dos diálogos e na construção de atmosferas sibilinas.»

Os Golias irão visitar o David

Paulo Sousa, 26.08.21

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Após uma inédita e bem-sucedida sequência de jogos nas pré-eliminatórias da Champions, o Sheriff de Tiraspol conseguiu apurar-se para a fase de grupos, onde irá defrontar o Real Madrid, o Inter de Milão e o Shakhtar Donetsk.

Esta quase desconhecida equipa que oficialmente representa a Moldávia, mas que é originária do invulgar território da Transnistria (Pridnestróvia segundo os locais) será certamente notícia em cada um dos jogos que se seguem. Os confrontos entre o David e os Golias tem sempre uma camada adicional de interesse. Vou estar atento.

Este território já foi referido no DO por mim e pelo José Navarro de Andrade.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 26.08.21

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Adolfo Mesquita Nunes: «É raro atrasar-me. Corrijo. É raro fazer esperar alguém. Quando percebo que vou atrasar-me, e isto não acontece dez minutos antes da hora mas muito antes, aviso atempadamente para que não me esperem. Sou por isso obsessivamente pontual. E deveria esquecer-me disto mais vezes: em vez de esperar por opção, dou por mim a esperar por estupidez.»

 

José António Abreu: «Reconhecendo que também há aspectos negativos em fazê-lo (diminuição da liquidez nos mercados, perda de elementos de alerta, eliminação de importantes fontes de rendimento para regiões sem grandes alternativas, etc.), sou favorável ao fim do short selling e dos off-shores. Primeiro, por razões de nivelamento do campo de jogo; depois, por dois factores que andamos a clamar serem importantes para governos falidos e cidadãos remediados e que, por conseguinte, também deviam sê-lo para empresas poderosas e cidadãos ricos: transparência e uma correspondência mais real entre as folhas de cálculo e o mundo físico.»

 

Leonor Barros: «A primeira vez que pus o pé na Praça Vermelha, senti a natural felicidade que os turistas encontram quando finalmente se vêem frente a frente com os seus objectos de amor ou de desejo. Podem ser praças, estátuas, quadros, monumentos ou pedaços seja do que for desde que no seu universo de gente inquieta funcionem com um íman que geralmente arrecadam com convicção em pedacinhos de papel brilhante ou ficheiros em cartões de memória. A Praça Vermelha funcionava como um íman. A Praça Vermelha e a Catedral de São Basílio.»

 

Patrícia Reis: «Eu não me divirto com os erros, vejo-os e tento perceber como é que surgem. Será por ignorância, por maldade, por cansaço? Talvez seja apenas a dita da falha humana. A partir de hoje agradeço a todos os que me lêem, por uma ou outra razão, que ignorem os meus erros, são decerto fruto de um acaso ou pura ignorância. E quando se é ignorante não se pede desculpa e é-se mais feliz.»

 

Teresa Ribeiro: «E que tal sacar uns cobres valentes a quem ganha fortunas nos processos de alteração do regime do uso da terra (terrenos que passam de rurais a urbanos, ou que deixam de estar interditos à construção de edifícios)?»

 

Eu: «O que levará um homem de 41 anos, na força da vida, a pegar no filho ao colo e a lançar-se com ele para uma linha férrea momentos antes da passagem de um comboio? Por mais voltas que demos, jamais conseguiremos descortinar os abismos da alma humana. «From the bottom of the pool, fixed stars / Govern a life», escreveu Sylvia Plath. Também ela namorou a morte: um dia decidiu partir para não mais voltar, numa interminável viagem ao fim da noite. Estrelas no fundo de um poço - quantas delas se cruzam connosco nos dédalos citadinos? Vocacionadas para a eternidade mas com todos os sonhos sepultados numa vastidão de pó.»

Os nossos tradutores no Afeganistão

jpt, 25.08.21

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Nunca quis botar sobre o Ministério da Defesa, é uma área de que nada sei e algo opaca (e assim o deve ser). E sobre a saída do Afeganistão nada digo, pois também nada sei, apenas lamento o processo. Mas ouço na televisão que o governo português se prepara para trazer alguns afegãos que trabalharam com o destacamento português (são referidos tradutores, mas possivelmente haverá outros). E cada um terá o direito de vir acompanhado pela esposa. Sendo explicitado que por "apenas uma esposa", no caso de serem indivíduos em casamentos poligínicos. Ou seja, terão que optar por uma delas. E pelos respectivos filhos, decerto.
 
Ora esta decisão extravasa completamente os assuntos da tutela e são totalmente inaceitáveis. Presumo que virá a ser acolhida pelo silêncio do mundo dos "identitaristas", os que cultuam as Filomenas Cautelas e quejandas. Mas que fique bem explícito para os socratistas, os do governo português e os intelectuais genderísticos, sempre ávidos de usarem "identidades" para sacarem recursos do Estado e nisso incapazes de criticar os santos do PS: diante da poliginia a única posição legítima é defender a total igualdade de direitos de todas as esposas e das suas proles. E esta decisão do governo português - independentemente da sua efectividade -, é uma barbárie (uso o termo de modo consciente), uma sobrevivência ignorante do pior da evangelização de séculos atrás. Em pleno 2021 um paroquialismo de sacristia. Uma vergonha.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 25.08.21

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Livro três: Intervenções, de Michel Houellebecq

Edição Alfaguara, 2021

378 páginas

 

O francês Michel Houellebecq - autor de Submissão, um dos romances que marcam este século - gosta de emitir opiniões provocatórias. Contra a correcção política, desafiando os novos dogmas. Comparo-o por vezes ao saudoso Vasco Pulido Valente. Ou aos espanhóis Javier Marías e Arturo Pérez-Reverte. Pertence à linhagem dos escritores e pensadores que perturbam os consensos estabelecidos.

É uma característica patente neste volume, que beneficia de tradução competente de José Mário Silva e recolhe textos diversos do romancista - crónicas, entrevistas, pequenos ensaios - publicados entre 1993 e 2020. Textos de valor muito desigual. Alguns decepcionantes, outros tocados pelo brilhantismo que o autor empresta a várias reflexões sobre temas em foco: o relativismo cultural, a degradação dos padrões educativos ou o nivelamento por baixo nas sociedades contemporâneas. No estilo desassombrado que se tornou sua imagem de marca e que por vezes abusa de efeitos retóricos, como quando designa de «imbecis» quantos se acomodam ao padrão dominante.

O balanço é positivo: esta antologia justifica atenção por conter fragmentos de Houellebecq no seu melhor. Pessimista militante, sarcástico, melancólico. Quase sempre estimulante. Capaz de nos interpelar mesmo quando nos irrita. Conservador assumido, fala do presente como se sentisse saudades perpétuas do passado – até de um passado que nunca viveu. Elege Dostoievski como exemplo supremo da ficção literária. Elogia o cinema mudo. Enaltece as epístolas de São Paulo. Questiona «se terá havido um verdadeiro progresso desde o tempo da vida nas cavernas.»

Nele transparece sobretudo a paixão pela escrita. Que o leva a disparar contra solenes vultos das letras gaulesas: Sartre, Beauvoir, Malraux, Genet, Robbe-Grillet. E a citar Schopenhauer: «A primeira – e praticamente a única – condição de um bom estilo é ter qualquer coisa para dizer.»

No fim, tudo se reconduz à literatura – outra forma de pronunciarmos a palavra vida. Em frases tão lapidares e comoventes como esta: «Nada neste mundo é mais belo do que a bruma que se levanta do mar.»

 

Sugestão 3 de 2016:

Política, de David Runciman (Objectiva)

Sugestão 3 de 2017:

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)

Sugestão 3 de 2018:

Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor)

Sugestão 3 de 2019:

Lá Fora, de Pedro Mexia (Tinta da China)

Sugestão 3 de 2020:

ABC da Tradução, de Marco Neves (Guerra & Paz)

Omnipresente, embora ainda não omnipotente

Pedro Correia, 25.08.21

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António Costa não é omnipotente, como desejariam alguns dos seus apaniguados, mas tornou-se omnipresente. Por obra e graça da televisão, entre nós ainda o principal veículo de informação que uns quantos anseiam transformar em instrumento de propaganda.

Nos últimos trinta dias antes de rumar a férias, o primeiro-ministro apareceu 26 vezes nas pantalhas. Falou sempre em contexto positivo – pôr o país a crescer, estimular a economia, dar combate com sucesso à pandemia, «libertar a sociedade». Não precisa de uma agência de comunicação para lhe recomendar isto: experiente profissional da política, calejado em quatro décadas contínuas de exercício desta actividade, Costa sabe muito bem que o contexto é tão importante como a mensagem. Se os portugueses se habituam a associá-lo a mensagens insufladas de esperança e optimismo, isto tem inevitáveis reflexos nas sondagens.

Ao longo desse mês que ficou para trás, as más notícias – quando as havia no alinhamento dos telediários – ficavam confiadas a outros membros do Governo. À ministra da Presidência, coitada, coube a ingrata tarefa de anunciar aos portugueses que era necessário apresentarem certificados de vacinação «ou fazerem um autoteste» ao novo coronavírus antes de entrarem em restaurantes aos fins-de-semana. Ao ministro da Economia ficou reservado o nada invejável ónus de confirmar a insolvência da empresa de vestuário Dielmar, uma das maiores empregadoras do distrito de Castelo Branco.

A Costa – com fato de primeiro-ministro ou na pele de secretário-geral do PS – coube o reverso da medalha. Usou como quis o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) aprovado em Bruxelas e os milhares de milhões de euros que lhe estão associados para fazer política à sua maneira. Só lhe faltou a canção do Sinatra a servir-lhe de banda sonora.

A 9 de Julho, antecipou que 16% das verbas daquele plano serão destinadas à habitação. No dia seguinte, congratulou-se porque 70% dos portugueses já haviam recebido pelo menos uma dose da vacina. A 19 de Julho, na Pampilhosa da Serra, presidiu à cerimónia de assinatura de contratos para a criação de áreas integradas de gestão da paisagem florestal no âmbito do PRR. A 20, proclamou: «Temos um conjunto de investimentos que assegurarão o crescimento sustentado da economia portuguesa nos próximos anos.» A 21 de Julho, no debate do estado da nação, nova mensagem com choruda verba explícita: «Onze mil milhões de euros [do PRR] são dirigidos em encomendas às empresas.»

E por aí adiante. Vimo-lo na apresentação de três novas carruagens da CP compradas a Espanha, a anunciar fundos europeus para construir a barragem do Pisão, a comentar os dados favoráveis da economia portuguesa no segundo trimestre, a tuitar sobre o ouro de Pedro Pichardo no triplo salto olímpico. A 29 de Julho foi ele a dar a boa nova aos compatriotas, no Palácio da Ajuda: terminariam as limitações horárias impostas pela pandemia.

Merece umas férias bem repousadas. E nós também.

 

Texto publicado no semanário Novo

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 25.08.21

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Adolfo Mesquita Nunes: «Ter um olfacto, como dizer?, quase inexistente pode ser uma bênção numa ou outra circunstância, mas fico sempre com a sensação de que boa parte da vida me passa ao lado. Não teria essa sensação se o olfacto estivesse completamente desligado, mas não está. Há cheiros, poucos, que sinto com intensidade (e segundo sei nem sequer serão cheiros especialmente fortes quando comparados com outros que me passam ao lado).»

 

Leonor Barros: «Chega o autocarro. Uma carripana velha com um homem magro e seco de cabelo grisalho ao volante. Estendemos-lhe o dinheiro e eis que irrompe num episódio de ódio sem precedentes. Mais vociferar, mais berrar, mais esbracejar. Uma verdadeira sorte não perceber russo, o que não sabemos não nos pode magoar, mas pressenti que não nos estivesse a elogiar, sim, que manias tinham os estrangeiros de visitar Moscovo. Depois de lhe darmos mais dinheiro, o ser vociferante e irado calou-se. Quanto ódio. Tanta ira até lhe faz mal. Os russos não gostam de estrangeiros. Nem de manhãs.»

 

Luís M. Jorge: «Há algo de perturbador nestas manifestações de ricos que entre Nova Iorque e Paris se mobilizam para que lhes aumentem os impostos. É preciso que uma democracia ultrapasse todos os limites da submissão abjecta aos interesses de uma elite para que esta acorde repentinamente de um torpor de três décadas e nos comunique que nos esquecemos de a taxar.»

 

Patrícia Reis: «Querido Eduardo - E passou-se mais um ano. O tempo tem sempre o condão de me surpreender. Já não compro o Público porque me custa ver que não estás. As boas novas são as que já sabes: a maria manuel publicou a sara k, o verão de todos os silêncios, pela Planeta. Uma capa linda, um lançamento emotivo com várias leitoras (todas nós a invejar a bela voz da Filipa Leal, mas enfim, sabes como é a inveja das mulheres, quando não é má, é de admiração saudável). É um belo livro.»