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Delito de Opinião

Liberdade sim, mas só para nós

Pedro Correia, 31.08.21

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Quarenta e sete anos depois do 25 de Abril, chegámos a isto: queremos a democracia para nós enquanto toleramos e até aplaudimos a implantação de ditaduras noutros quadrantes. Tenho pensado nisto enquanto escuto à minha volta várias vozes mostrando indiferença ou até um discreto regozijo pela queda do regime de Cabul, substituído pela sinistra turba talibã.

Ao ouvir isto concluo, uma vez mais, que pecamos por falta de apego à liberdade. Tenho a convicção de que muitos portugueses não se importariam de voltar a ver por cá um regime "musculado". Só isso explica a defesa que fazem, nas redes sociais, dos regimes autoritários ou ditatoriais implantados além-fronteiras.

O mais contraditório é que muitas das pessoas que emitem opiniões deste género estão sempre a enaltecer o "nosso" 25 de Abril. Enquanto negam que outros povos tenham o seu próprio 25 de Abril. Democracia aqui, tudo bem; ditadura noutros países, tudo bem também.

«Não me venham falar em direitos humanos», vou lendo e escutando demasiadas vezes. Frase que poderia ter sido proferida por Salazar, reeditada neste Portugal do século XXI. Como se a atracção pelos regimes de "pulso forte" estivesse inscrita no nosso código genético. E se calhar está mesmo.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 31.08.21

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Adolfo Mesquita Nunes: «Não é a primeira vez que refiro aqui o céu de Jerusalém, uma das mais impressionantes cidades em que estive. Junto agora um vídeo que pode ilustrar o que então tentei descrever. E se acomodo este vídeo na série 'modo de vida' é porque há muito me deixei fascinar por Israel.»

 

Ivone Mendes da Silva: «É a distância ainda quente, / é a distância incompleta, / é o caule de Setembro / a emergir da terra.»

 

Luís M. Jorge: «Se eu também for esperto obediente atilado / não muito impaciente nem muito apressado / Hei-de encontrar padrinho hei-de ter um aliado / e mais tarde ou mais cedo, mamã, chegarei a algum lado.»

 

Rui Rocha: «Ontem anunciaram que o aumento do número de crianças por sala permitirá criar 20 mil novas vagas nas creches. É, claro, uma má medida. Todos sabemos que as crianças precisam de espaço e vistas largas. Para estreitezas bem basta o pouco tempo que passam em casa, confinados à cadeirinha, enquanto o pai vê o Benfica, assim o nevoeiro o permita, a mãe actualiza conhecimentos no Facebook e o irmão de seis anos estuda com a profundidade necessária todas as potencialidades da Wii.»

 

Teresa Ribeiro: «Foi Margaret Thatcher que disse que a sociedade não existe, só existem indivíduos e famílias. A frase, muito citada, reflecte um pensamento em que a direita se revê: culpar a sociedade é desculpabilizar os indivíduos, os únicos cuja existência pode ser comprovada pelas leis da física, logo os únicos que podem ser responsabilizados por tudo o que de bom ou mau acontece na praça pública.»

 

Eu«Assinala-se hoje o centenário da primeira mulher que recebeu carteira profissional de jornalista em Portugal. E é um aniversário felizmente celebrado com esta particularidade: Manuela de Azevedo está viva. Num meio que durante gerações esteve interdito a mulheres, ela arregaçou as mangas e soube mostrar quanto valia. Como repórter talentosa, entrevistadora de mérito, crítica que deixou rasto e também dramaturga e escritora - o seu livro de estreia, em poesia, teve prefácio de Aquilino Ribeiro.»

Now I can go to the bank?

João Sousa, 30.08.21

No país das maravilhas de Alice:

"Só o PS tem António Costa, uma das vozes mais respeitadas da Europa" - Mariana Vieira da Silva.

 

No mundo real:

"As the clock ticked past midnight into day four, the fiscal hawks held frantic discussions over a bowl of cherries. Portugal’s Antonio Costa sprawled out on a sofa as he waited for all the leaders to reconvene." - Bloomberg.

Na Feira do Livro

jpt, 30.08.21

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Como já disse, fui ontem à Feira do Livro. Atrevi-me a isso tanto para seguir a sugestão do Pedro Correia como para assistir à sessão de apresentação de um livro de amigo meu. Encontrei o recinto bastante animado, apinhado de gentes que espero terem sido (estarem a ser) boas clientes. A sessão a que assisti foi simpática, e nela encontrei algumas pessoas que não via há décadas e outras que não tenho o costume de ver. Depois percorri uma das alas da feira. Jurara que não compraria livros, pois vivo sob a pressão de uma tripla escassez: espaço nas estantes, capacidade de concentração e, sobretudo, papel-moeda. Como tal nada vasculhei, de facto deixando distraídos soslaios aos pavilhões e nada ansiosas grandes angulares sobre a mole humana: mas apenas reconheci um afamado ex-bloguista, com o qual convivi em Maputo. Mas, não tendo nada para dizer, eximi-me a ir cumprimentá-lo: é destes recolhimentos, silêncios, que é feita a velhice, já me dizia o meu pai António. Chamava-lhes, lembro-me bem, "falta de paciência". E nada louvava isso, ainda que o praticasse sem rebuço.

Ainda assim não resisti ao velho hábito de comprar livros, e disso deixo registo. Já perto do final da ala, em sentido descendente, atentei numa banca de monos - as que sempre mais atraíam quando era cliente habitual da Feira. E, ao preço de um euro cada, de lá trouxe estes três volumes da colecção ABC da Cozinha, editada por Bárbara Palla e Carmo (Abril/Controljornal Editora, 1999): Tudo Sobre Arroz, Tudo Sobre Peixe, Tudo Sobre Vitela.

Quando regressado a casa percebi que voltara contente.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 30.08.21

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Livro cinco: Gramática Para Todos, de Marco Neves

Edição Guerra & Paz, 2019

143 páginas

 

O desconhecimento galopante da gramática portuguesa é notório. Mesmo utentes do idioma enquanto ferramenta profissional - incluindo professores e jornalistas - claudicam nesta matéria. Ignorando regras, confundindo norma com excepção, exibindo ignorância travestida de erudição.

A obra máxima de referência do género, que muito me tem servido ao longo de anos de pesquisas a propósito dos desafios que a escrita me suscita, é a Nova Gramática do Português Contemporâneo (1984), de Celso Cunha e Lindley Cintra. Livro que já devia ter sido declarado património nacional. Ou transnacional, atendendo ao facto de o português ser língua oficial em dez países e territórios, nos cinco continentes.

Sem pretensão académica mas com vontade assumida de ser útil, esta breve Gramática Para Todos está redigida num estilo escorreito e cumpre na íntegra o objectivo a que se propõe: revelar ou recordar regras que reforçam a nossa ligação à língua-mãe. Missão meritória numa época invadida por modismos aberrantes, muitos dos quais pronunciados nessa nova espécie de crioulo que é o portinglês, de óbvia importação americana. Em que o idioma de Eça e Pessoa mais parece uma frustre caricatura de si próprio, repleto de erros lexicais, sintácticos e ortográficos. Começando por peças jornalísticas.

Marco Neves, professor da Universidade Nova com ampla experiência também como tradutor e revisor de textos, sabe ensinar em cada página que vai escrevendo. Sem se colocar num pedestal, como se estivesse a dialogar com o leitor. Lembra o essencial das normas e fundamenta-as com clareza. Fornecendo exemplos práticos. Neste seu jeito informal também especifica como se deve escrever, justificando cada caso. A diferença entre solarengo e soalheiro, entre à-vontade e à vontade. Se é mais correcto fazer ou «desfazer» a barba. Convicto de que importa «recriar a nossa voz através da palavra escrita», de preferência sem erros.

Interveio, não «interviu». Rubrica, não «rúbrica». Com certeza, não «concerteza». O nosso idioma merece ser bem tratado. Devemos-lhe isso.

 

Sugestão 5 de 2016:

Telex de Cuba, de Rachel Kushner (Relógio d' Água)

Sugestão 5 de 2017:

Coração de Cão, de Mikhail Bulgákov (Alêtheia)

Sugestão 5 de 2018:

Octaedro, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 5 de 2019:

Júlio de Melo Fogaça, de Adelino Cunha (Desassossego)

Sugestão 5 de 2020:

Por Amor à Língua, de Manuel Monteiro (Objectiva)

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.08.21

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Ana Cláudia Vicente: «Entre os diferentes ofícios, um se destaca pela inclinação para bem vestir sem grandes formalismos: o dos arquitectos. Que é raro vê-los engravatados, lá isso é, mas que são estetas, lá isso são - por natureza ou formação. Desleixados não.»

 

José António Abreu: «Susannah York, Sarah Miles, Susan George, Julie Christie, Charlotte Rampling, Jenny Agutter, Jane Birkin, Dominique Sanda,  Sandrinne Bonnaire, Nathalie Baye, Isabelle Huppert, Carole Bouquet, Valérie Kaprisky, Victoria Abril, Maria Schneider, Hanna Schygulla, Barbara Sukowa, Carole Laure, Geneviève Bujold, Liv Ullmann, Monica Vitti, Ornella Muti... Isso sim, era serviço público.»

 

Ivone Mendes da Silva: «A nossa relação com os álvaros e os doutores cria as mais curiosas situações. Lembro-me de um professor universitário brasileiro que, quando esteve em Portugal a leccionar um seminário, me disse: "Sabe, eu cheguei procurando não enrolar o meu pé no tapete das etiquetas."»

 

Laura Ramos: «Nada como uma pausa num monte alentejano para nos devolver a dimensão do tempo. Nem tão imóvel quanto agora. Nem tão urgente quanto aquele que nos aguarda. Esta quietude não é deste mundo. O mundo da pam-politização. Das convulsões. Dos impasses da moeda. Da geo-estratégia. Das culturas decadentes e das economias emergentes. Da insegurança. Do medo do futuro. Do pânico da perda.»

 

Rui Rocha: «Este pulha publicou esta foto, em que aparece com uma arma na mão e uma criança a seus pés, como se fosse um troféu de caça,  na sua página do Facebook. Gosta de chamar-se a si próprio Eugene Terrorblanche. Tinha 588 amigos na rede social. Desde que o escândalo rebentou na África do Sul, 25 desamigaram-se. Os outros continuam, impávidos e serenos. Reconheço que sou profundamente racista. Contra cabrões como este.»

 

Eu«Dois meses depois, não há reformas, dizem eles - os que nunca reformaram nada ou estiveram sempre na primeira linha do combate a todas as reformas no aparelho de estado. Dois meses depois, não há cortes na despesa, dizem eles - os que sempre contribuiram para avolumar a despesa.»

Incontinência verbal

João Sousa, 29.08.21

"O Chefe de Estado revelou ainda ter estado com Jorge Sampaio há 20 dias, num jantar de amigos que acontece anualmente, tendo-o achado "cansado e prostrado". - sobre declarações de Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas na sexta-feira.

Lucky Luke disparava mais depressa do que a própria sombra. Marcelo, perante um microfone ou uma câmara de televisão, entra em frenesim e a sua boca é mais rápida do que o seu próprio cérebro. Mas aquilo é coisa que se diga?

As autárquicas na minha terra - III

Paulo Sousa, 29.08.21

Como aqui disse há dias, no Município de Porto de Mós um autarca afastado do poder pela lei anti-dinossauros voltou a candidatar-se. Perante um cenário destes, e sem mais detalhes, são várias as perguntas que se podem colocar, como “o que é que não teve tempo de fazer em doze anos”, assim como, “olhando para os seus 68 anos de idade e estando já reformado, se não sabe fazer mais nada na vida”.

Mas aqui devem ser adicionados mais detalhes. Um dos seus filhos, David Salgueiro, após o tirocínio na Jota local, e uma passagem pela Assembleia Municipal, sempre fez saber que tinha ambições políticas muito para além disso. Candidata-se agora a Presidente de Junta na sua freguesia, cargo modesto para quem esbanja tanta avidez por cargos políticos, mas a voz corrente nos mentideros portomosense revela um plano delineado com outra abrangência.

Em caso de vitória do seu pai, João Salgueiro, o referido candidato afastado pela lei anti-dinossauros, irá contratar o seu filho como assessor, para assim o poder apresentar no futuro como alguém com experiência e dentro dos assuntos municipais. O que entenderá como sendo um atalho encaixa bem na linha do que o PS tem feito com a CRESAP, em que o governo nomeia amigos para cargos públicos a título de excepção, para seis meses depois abrir um concurso onde o escolhido tem perante os demais candidatos a vantagem da experiência adquirida. O PS a ser PS.

Estamos assim perante a ambição de criar uma dinastia de poder. Algo como se no Game of Thrones, a House of Lannister tivesse sido escolhida por aldeões previamente ameaçados e avisados do que lhe aconteceria se não fizessem o que tinham de fazer. Esta comparação deve-se à intimidação que esta malta consegue criar. Não duvido que os 51 likes, não identificados, deste meu texto e que contrastam com a reduzida reacção que mereceu numa partilha que fiz dele no Facebook, resultem exactamente do receio de dar a cara, temendo por consequências futuras.

Independentemente do resultado eleitoral que venha a verificar-se, David Salgueiro (o filho do dinossauro), ao esconder-se atrás do pai, mostra que tem medo de perder. Mas se de facto tem ambição política, como o afirma junto dos seus amigos, deveria ter sido ele o candidato à Câmara e não à Junta. Teria sem dúvida o apoio do seu pai na campanha e mesmo que perdesse isso não seria cadastro, mas currículo. É assim que funciona a democracia. É mais novo que Jorge Vala, o actual presidente, e dessa forma marcaria posição para o futuro.

Esta super-protecção parental é um fenómeno de época. Tomei consciência disso a primeira vez quando estava a terminar o meu estágio no BNU. A passagem aos quadros do Banco resultava da avaliação da gerente da agência. Ora, um colega que estava numa situação idêntica não teve luz verde para continuar. No dia seguinte os pais dele deslocaram-se à agência para perguntar à gerente em que é que ele se tinha portado mal. Embora este meu colega tivesse uns 15 ou 20 anos a menos do que terá agora David Salgueiro, toda a agência, e éramos 14, ia morrendo de vergonha alheia.

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Independentemente da opinião que se tenha dos mandatos de João Salgueiro, em que além do triste episódio que já aqui referi também “conseguiu” que 4% da população saísse do concelho, os resultados que obteve deve-os ao seu instinto político, à capacidade que teve em escolher o momento certo para dar a golpada e mudar de partido e também à facilidade que tem em garantir coisas completamente opostas de acordo com quem esteja a falar. Ao tentar levar o filho ao colo, mesmo sem dar por isso, está a menorizar a sua capacidade e isso ficar-lhe-á para sempre colado à pele.

Na psicologia este fenómeno é conhecido por pais-helicóptero e no Brasil é também descrito como os filhos parasitas. Este é mais um exemplo disso.

Leituras

Pedro Correia, 29.08.21

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«Ao contrário do teatro, em que os anos do palco "ensinam" a vida da arte, e onde os actores que são grandes envelhecem em sabedoria e graça, poucos são os actores que, no cinema, tenham aprofundado a sua maneira de representar. Tal como começam, assim se vão. E entre a Bergman do Intermezzo e a da Sonata de Outono, não sinto o mesmo que vai entre o jovem Gielgud e aquele que fez No Man's Land de Pinter.»

Jorge Silva Melo, Deixar a Vida, p. 109

Ed. Cotovia, 2002

Sair da Estrada, de Paulo Dentinho

jpt, 29.08.21

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(Paulo Dentinho, Sair da Estrada, Caminho, 2021)

Deste Sair da Estrada deixo apenas as minhas impressões, nada procurando fazer-lhe uma recensão. Nele está como se uma autobiografia do Paulo Dentinho, 30 anos mundo afora com recordações de reportagens em 13 países, algumas sendo trabalhos únicos, outras com visitas sequenciadas e ainda as resultantes de estadas prolongadas, como correspondente da RTP. Nestas 400 páginas ficou um retrato do mundo das últimas décadas, do qual algumas memórias tão significantes se vão esfumando dado o constante turbilhão noticioso: a atenção às guerras e seus efeitos nas nossas antigas colónias (Angola, Moçambique, Timor-Leste), ao início da que viria a ser a maior guerra africana (actual Congo), aos conflitos do sul europeu, com a crise grega, a dissolução da Jugoslávia e o já esquecido projecto de agregação da Turquia à União Europeia. E, claro, no omnipresente conflito do Médio Oriente (Israel, Líbano), nas ondas de choque pós-2001 (Paquistão, França), e nas refracções da que foi chamada "Primavera Árabe" (Síria, Líbia). 

Realço três dimensões que muito me agradam no livro. Conheci o Paulo Dentinho em Moçambique, e ali muito interagimos. Foi-lhe uma estada difícil, tendo saído do país sob uma incessante corrente de ameaças de morte (e recordei isso neste postal). Recordo-me muito bem desse período e afianço que o capítulo agora dedicado a essa época é mesmo fidedigno, diria mesmo que "sem tirar nem pôr". Mais, muito me lembro da ida em 1997 do Paulo ao então Zaire - logo após o frenesim profissional que ambos vivêramos na visita de Jorge Sampaio ao país - e de como ele a contava quando regressado a Maputo. Narrativa que está agora, ressuscitada, no livro. Presumo pois que nos outros 11 capítulos seja também assim, uma colecção de memórias sem quaisquer adornos, reconstruções embelezadoras ou engrandecedoras do autor ou das situações. 

Outro agrado é forma como o Dentinho apresenta breves enquadramentos das situações em cada país. Pois em nenhum momento se deixa tentar pelo diabo ensaístico, nessas habituais resenhas históricas com intuitos explicativos ou nas recorrentes deambulações sobre um qualquer fio condutor que explique a miríade de males do mundo, qual filosofia de história de pacotilha ou atrevido estipular de cadeias de causas-efeitos, esse pobre efeito sob verniz intelectual que nada mais é do que reflexo das agendas das causas em voga. Pelo contrário, ele dá-nos ágeis contextos do que se passava, bem inscritos no que lhe é fundamental: como trabalhou. Pois este é um livro sobre jornalismo. E nisso - e é este o meu terceiro agrado imediato - o Dentinho, profissional do audiovisual, veio, e sem qualquer "escritor-fantasma", com uma escrita lesta e veemente,  a prender-nos. 

O livro traz-nos o modo de trabalho em "grande reportagem". O Sair da Estrada, escapar-se aos hotéis internacionais onde pululam as informações padronizadas, oficiais e oficiosas, fugir ao asfalto (mais ou menos) seguro, arriscando-se, muito mesmo, nas vielas e subúrbios, pelas veredas e picadas. E nessas andanças encontrar o rumo das notícias, essas de abertura televisiva ou primeira página de jornal, mas também quem lá está, exulta ou sofre. E é muito desses que o livro fala, os que cruzaram o repórter e lhe possibilitaram o trabalho, vários intérpretes ou motoristas, quantas vezes quais pisteiros, colegas, alguns já tombados em acção, bem como uma ou outra colega mais cativante cujos vislumbres acalentaram dias difíceis e excitantes, até combatentes ou meros passantes. E tudo isso sem requebros de romance de correspondente de guerra mas num muito mais relevante "é assim!". E, acima de tudo, traz-nos os seus camaradas de percurso, os homens da câmara, sempre invisíveis no ecrã e treslidos no genérico, correndo os mesmos riscos - até mais, pois mais visíveis -, sofrendo as mesmas ansiedades, co-autores das reportagens. 

E nisto o livro torna-se não apenas uma memória para "contar aos netos" - para que os filhos o venham a ler, como se justifica o autor em entrevista. Mas um verdadeiro livro de cabeceira para futuros jornalistas - pois se a indústria está em crise, a reconfigurar-se, a vocação jornalística estará em crescendo. Nele não poderão os aprendizes receber o "como fazer" manualesco mas avisarem-se da necessidade do improviso, de seguir a intuição própria e perseguir o risco. O trejeito próprio. Com os quais o Paulo Dentinho seguiu ao longo das décadas, conseguindo belas reportagens - ainda me lembro de o ver com José Mattoso nas montanhas de Timor e rir-me num "só este gajo para tornar aventurosa uma pesquisa arquivística", episódio que aflora agora no livro. E entre elas algumas reportagens de eco mundial, raríssimos feitos na imprensa portuguesa, de facto no país apenas comparáveis em eco internacional a algumas conquistas no mundo do futebol, do atletismo ou, em modo mais discreto, da diplomacia.

Mas há um outro país presente ao longo do livro, o nosso, pois subjacente capítulo a capítulo. São várias as notas sobre a radical incompreensão, mesmo desrespeito, que os repórteres de terreno (e que terrenos!) vão sofrendo pelos colegas e administrações, estes apoucando (até desperdiçando) notícias e peças, desvalorizando riscos, efeitos do peso do "modo funcionário" que vigora. O que se traduz em coisas inenarráveis, por vezes fruto de ignorância mas outras sendo mera pesporrência: a equipa detida por milícias em sítio ermo, o repórter telefonando para a RTP identificando o líder da  patrulha que os prende e deste lado recebendo um enfastiado "que é que queres que eu faça com isso?"; ou a equipa preparada para o sacrossanto "directo" no telejornal das 8, sita em local fustigado por fogo algo errático e esperando que decorra a cinzenta agenda dos "passos perdidos" (ouvir, sob fogo há meia hora, "aguenta mais um bocadinho, que o Jorge Lacão está a falar" é de bradar aos céus!), entre tantos outros desaforos e até malevolências. Um contexto laboral que leva o autor a desabafar, entre outros trechos similares (e dolorosos de ler): "Apetece-me vociferar contra estes tipos que construíram as carreiras quase sem fazer uma única reportagem. O único risco deles é gerir favores, fazer salamaleques aos poderes para se irem mantendo de direcção em direcção. Pobre país o meu." (62).

O livro termina no 2015 parisiense, no ataque ao Charlie Hebdo e subsequente captura dos terroristas, emotivamente narrado. Dentinho associa-o, como tem de ser, à perseguição ao dinamarquês Jylland-Posten em 2006, numa total defesa, sem rodeios nem escusas, da liberdade de imprensa, do humor, da blasfémia, dos que fazem "a provocação sistemática de tudo e todos, da extrema-direita aos meios católicos, dos políticos em geral aos jornalistas. "Rire, bordel de Dieu!" contra a apregoada "razão de Estado", agora dita multiculturalista pois respeitadora, sempre desejosa de controlar a imprensa, de facto "uma engrenagem em que a primeira etapa é a autocensura e a última a capitulação" (399). Gosto muito deste final, de cabeça erguida no meio do terror fanático e do censório "democrata". E ainda mais porque vem do Paulo Dentinho, homem de esquerda neste nosso país em que essa tal esquerda no último ano apoiou para Presidente da República uma candidata que reiteradamente atacou essa liberdade, apoucando de modo até soez as vítimas do terrorismo fanático. Esquerda essa que também propôs para o Tribunal Constitucional um candidato que segue a mesma mundivisão, dizendo serem iguais os fundamentalistas terroristas e os artistas/jornalistas democratas. Sem que tal cause qualquer repúdio, mero sobressalto que seja, no seio do tal "modo funcionário" de pensar e actuar, tão dominante este segue.

Os últimos anos já não surgem no livro. Dentinho foi director de informação da RTP [repito-me, escrevo sobre ele e esse processo excêntrico neste postal]. Os postos de chefia não são eternos e ele foi substituído - disse-se que por desconforto da comunidade futebolística devido a um postal seu no Facebook. Mas ninguém disse na época que o desconforto da malta do futebol, de Lisboa e Porto até La Valleta, advinha da sua imediata oposição a outras futebolices. Enfim, ele seguiu o seu rumo, menos agitado desde então. Com o seu renome ainda conseguiu um "furo" (como antes se dizia), uma entrevista a Lula da Silva, então preso. Lá foi, mas privado de um homem de câmara, e para in loco se deparar que lhe tinha sido atribuído um material de recolha audio e visual... danificado. Enfim, o tal "modo funcionário" mau demais, sempre capaz de surpreender pela... negativa.

Ou seja, se o Dentinho passou 30 anos a Sair da Estrada está agora fora da estrada, emprateleirado. Tem o programa "Mundo sem Muros", convenientemente alojado na noite longa da RTP3 (e na RTP Play, claro). Nele se fala sobre o mundo. Ali ele não entrevista políticos no activo, travestidos de "comentadores", nem ex-políticos feitos correias de transmissão de órgãos de soberania, partidos políticos ou grupos de interesse, nem tão pouco académicos catedráticos de "Tudologia". Pois ali o Paulo Dentinho aborda as situações do mundo, sentando-se com .... outros colegas, correspondentes. Faz jornalismo, com jornalistas, como jornalista. E, acima de tudo, como um homem livre.

Paulo, o livro ficou bom. Espero que os teus filhos o venham a ler, como desejas. E que a minha filha o faça. E que os jovens jornalistas e os ainda aprendizes o leiam, inebriando-se até, se possível. E sonho que alguns dos da nossa geração o façam. Entusiasmando-se com o teu meneio nas letras. Divertindo-se com as memórias das nossas vidas que nos trazes. E, ainda mais, que um ou outro de nós te possamos ler, homem livre que seguiste e continuas, concluindo: "como acabei assim?!". E que nisso, nessa amargura, possamos melhorar um bocadito, fazer por aligeirar a nossa canga. Graças a ti.

Enfim, Dente tens estado bem. E no livro estiveste mesmo bem. Abraço.

Fim de semana (8)

Pedro Correia, 29.08.21

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Desta vez a sugestão é em Lisboa. Na Feira do Livro, que decorre até 12 de Setembro. Pelo passeio, pela possibilidade de adquirirmos livros a bom preço, pelo inesperado reencontro com gente amiga (voltou a acontecer-me sexta-feira, dia da inauguração) e pelo magnífico panorama que desfrutamos lá do alto. Uma das mais soberbas vistas da cidade, captada do miradouro do Parque Eduardo VII, projectado em 1940 pelo arquitecto Francisco Keil do Amaral, a quem a capital portuguesa tanto deve.

Nesta minha primeira incursão trouxe de lá três livros. Da Relógio d' Água, ainda uma das melhores editoras portuguesas, um clássico da ficção narrativa do século XX: A Morte de Virgílio, de Hermann Broch. No pavilhão da Alfaguara, outra das minhas preferidas, comprei O Barulho das Coisas ao Cair, romance do colombianao Juan Gabriel Vásquez. E na volta que dei pelos alfarrabistas encontrei Os Desertores - primeira edição (1960) do romance de Augusto Abelaira. Com autógrafo do autor em forma de dedicatória - por apenas 7,5 euros.

Qualquer deles a ler em breve. Mas hei-de voltar à Feira - mesmo com o sacrifício de andar lá de máscara. Gosto de tradições e de rituais. Deambular pelo Parque, com milhares de livros em redor, é um prazer que todos os anos se renova.

Blogue da Semana

Maria Dulce Fernandes, 29.08.21

Com o casamento da filha mais nova à porta e um vestido comprado pré-pandemia que no pós-confinamento de 2020 se tornou a piada da família, decidi levar muito a sério a questão do excesso de peso e procurei informar-me como comer com gosto e sem engordar. Encontrei A Dieta Prática, com matéria elucidativa suficiente para adaptações à minha própria filosofia alimentar. Bem ou mal, devagar, devagarinho, perdi seis quilos em pouco mais de dois meses e consegui entrar no malfadado vestido.

Dou lá um saltinho frequentemente, para me inteirar das novidades.

Pensamento da Semana

Diogo Noivo, 29.08.21

O vice-almirante Gouveia e Melo foi aplaudido com entusiasmo por pais e crianças no centro de vacinação de Alcabideche no passado sábado. Isto nada teve a ver com o êxito do processo de vacinação. Aconteceu porque nós, portugueses, há muito que não estamos habituados a ver gente competente em lugares de liderança. Aplaudo também, claro.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.08.21

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Ana Cláudia Vicente: «Mais conhecido pelo seu trabalho como politólogo, o autor [Luía Salgado de Matos] mostra aqui, com a franqueza e espírito habituais, uma faceta menos óbvia do seu percurso profissional e político.»

 

Ana Lima: «Quando passeamos por aí, sem grandes definições de destinos ou percursos, somos surpreendidos por determinados sítios ou monumentos que, à partida, desconhecíamos ou nunca tínhamos visitado. O estado em que se encontra o nosso património também nos surpreende, umas vezes positivamente, outras negativamente. Claro que o que para mim constitui uma surpresa não o será para outros. Mesmo assim, vou por aqui deixar, de vez em quando, umas pistas. Não farei grandes descrições. Só algumas impressões que esses locais me suscitaram.»

 

José António Abreu: «É importante procurar que toda a gente tenha um mínimo que lhe permita viver com dignidade (o que provavelmente não incluirá iPhones) e, acima de tudo, que tenha oportunidades de melhoria das suas condições de vida (através de acesso a estudos e de uma economia que cresça) mas a ameaça de violência não pode levar-nos a pagar chantagens, até porque ao fazê-lo estaríamos a abrir a porta a consequências económicas e sociais no mínimo tão assustadoras como as que estes jovens, sejam meros ladrões ou utópicos revolucionários, podem despoletar.»

 

Leonor Barros: «Malas, carteiras, máquinas fotográficas e telemóveis extirpados dos visitantes e eis que me vou aproximando do lado de dentro dos muros do Kremlin, lá onde via desfilar as paradas a preto e branco encimadas por Brejnev e outros camaradas. A memória colectiva de que sou feita. Instantâneos da História. O mausoléu é um monstro de basalto negro no interior e que tem a capacidade de nos fazer sentir pequenos, mínimos, assim que descemos as escadas. E ei-lo. Iluminado no centro da sala, o boneco de cera mais famoso do mundo: Vladimir Ilitch Lenin. Alguém achará que ali ainda está o homem?»

 

Rui Rocha: «Portugal tem uma marca distintiva, um aspecto em que é imbatível. Refiro-me à gastronomia. Rica, diversificada, apurada. Entradas, sopas, peixes, carnes, sobremesas. Uma profusão de sabores, cores e paladares. Ao dispor de quem nos visita em qualquer canto e esquina, mesmo (ou sobretudo) nos locais menos pretensiosos. Não conheço ainda meio mundo. Mas, por onde tenho passado, nunca encontrei nada assim.»

 

Eu«A comprovada violação do sigilo das comunicações escritas e telefónicas à margem da lei pelos serviços de informações, no Verão de 2010, foi um dos factos mais graves registados em Portugal nos últimos anos. Viola vários direitos constitucionais, compromete irremediavelmente a relação de um jornalista com as suas fontes e constitui um atentado inadmissível à liberdade de informação.»

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