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Delito de Opinião

A Madeira já é independente?

Pedro Correia, 31.07.21

«A Organização Mundial de Saúde pediu que os países que estão a vacinar crianças e adolescentes contra a Covid-19 deixem de o fazer e entreguem essas doses ao sistema Covax, para que possam ser distribuídas por países mais necessitados, como a África do Sul, onde nem o pessoal médico foi ainda completamente vacinado.»

Organização Mundial de Saúde, 15 de Maio

 

«A Organização Mundial de Saúde divulgou um vídeo explicando por que não recomenda que a vacinação de crianças seja uma prioridade neste momento da pandemia do novo coronavírus.»

Organização Mundial de Saúde, 11 de Junho

 

«Tudo está preparado para, nos fins-de-semana entre 14 de Agosto e 19 de Setembro, serem administradas as duas doses de vacina às cerca de 570 mil crianças e jovens entre os 12 e os 17 anos.»

António Costa, primeiro-ministro, 21 de Julho

 

«DGS recomenda vacinar crianças dos 12 aos 15 anos só com co-morbilidades.»

Notícia do Eco, 30 de Julho

 

«Decidimos aguardar por mais informação, nomeadamente a nível da União Europeia [sobre a vacinação generalizada de adolescentes entre os 12 e os 15 anos].»

Graça Freitas, directora "geral" da Saúde, 30 de Julho

 

«Madeira começa a vacinar no sábado 20 mil jovens a partir dos 12 anos.»

Notícia do Jornal de Notícias, 30 de Julho

 

«[Vacinar cerca de 20 mil adolescentes entre os 12 e os 18 anos] é uma decisão política do Governo [regional da Madeira] que segue aquilo que são as orientações da Direcção Regional da Saúde, da task force regional da vacinação e que segue no fundo aquilo que são as linhas orientadoras da Organização Mundial da Saúde.»

Miguel Albuquerque, presidente do Governo regional da Madeira, 30 de Julho

Advogado é como marido enganado

Sérgio de Almeida Correia, 31.07.21

A decisão já foi proferida. O Dr. Jorge Menezes é o advogado. Ou era.

Os recursos foram todos redigidos por ele, em português, mas o ilustre causídico será o último a ler a sua fundamentação. Também, em boa verdade, não precisa de a conhecer porque do Tribunal de Última Instância não há recurso (a Relação de Goa já foi extinta há alguns anos e em Pequim não aceitam recursos em português).

A Lei Básica tem uma versão em "português língua oficial" para os que não acompanham o que por aqui se passa, naturalmente. Pois que de acordo com o que dela consta as "políticas fundamentais que o Estado aplica em relação a Macau são as já expostas pelo Governo Chinês na Declaração Conjunta Sino-Portuguesa." 

Todavia, só após o XIX Congresso do Partido Comunista Chinês é que as coisas mudaram. Ainda levou alguns anos, mas felizmente mudaram. Para muito melhor.

Eu aproveito para pedir desculpa à Televisão de Macau (TDM) e ao Gilberto Lopes por aquilo que há três anos disse no programa televisivo Contraponto. Hoje estou sinceramente arrependido.

Agora já temos em toda a sua plenitude a aplicação ao nível judiciário do sistema e da política socialistas (cfr. art. 5.º da Lei Básica).

Se souber apenas ler português, como é o caso do camarada Jerónimo de Sousa, dos leitores do jornal Avante, dos deputados José Cesário e Sérgio Sousa Pinto e do Presidente da República, tem aqui acesso à decisão integral.

Se não souber, como é o caso do ministro Augusto Santos Silva, tem aqui o resumo em língua estrangeira, antes do Senhor Embaixador de Portugal pedir uma versão em "economês prático" à Câmara de Comércio e Indústria Luso-Chinesa:

O Tribunal de Última Instância julgou improcedentes os recursos eleitorais interpostos pelos mandatários de três listas de candidatura.
O mandatário da lista de candidatura “Associação do Novo Progresso de Macau”, Chan Lok Kei, o mandatário da lista de candidatura “Associação do Progresso de Novo Macau”, Chan Wai Chi, e o mandatário da lista de candidatura “Associação de Próspero Macau Democrático”, Chiang Meng Hin, todos candidatos às eleições para a sétima Assembleia Legislativa da RAEM, apresentaram reclamação para a CAEAL, da decisão tomada por esta, no sentido de considerá-los como inelegíveis com fundamento em que eles não defendem a Lei Básica da RAEM da RPC e que são infiéis à RAEM da RPC. Tendo apreciado as reclamações, a CAEAL tomou deliberação em 20 de Julho de 2021, indeferindo as reclamações apresentadas, mantendo a decisão de recusar as listas de candidatura “Associação do Novo Progresso de Macau”, “Associação do Progresso de Novo Macau”, e “Associação de Próspero Macau Democrático”. Chan Lok Kei, Chan Wai Chi e Chiang Meng Hin interpuseram recursos para o Tribunal de Última Instância respectivamente.

O Tribunal de Última Instância conheceu do caso.

O Tribunal Colectivo fez notar que, de acordo com o artigo 16.º, n.º 1 da Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa, as listas propostas à eleição por sufrágio directo “devem conter um número de candidatos não inferior a quatro”, e as três listas de candidatura em causa contêm, todas, 5 candidatos. Por este motivo, o Tribunal de Última Instância vai analisar a situação dos candidatos de acordo com a ordem indicada em cada lista, e se o resultado da análise realizada de acordo com esta ordem mostrar que já dois dos candidatos da lista são inelegíveis consoante ao disposto na segunda parte da alínea 8) do artigo 6.º da Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa, então não é preciso analisar a situação dos outros candidatos da mesma lista.

De acordo com as informações fornecidas pela CAEAL, o Tribunal de Última Instância deu como assente que os primeiros dois candidatos da lista “Associação do Novo Progresso de Macau”, Sou Ka Hou e Chan Lok Kei, os primeiros dois candidatos da lista “Associação do Progresso de Novo Macau”, Chan Wai Chi e Lei Kuok Keong, os primeiros dois candidatos da lista “Associação de Próspero Macau Democrático”, Chiang Meng Hin e Ng Kuok Cheong, participaram, pelo menos, em actividades de apoio a “4 de Junho” e/ou “Carta Constitucional 08” e/ou “Revolução de Jasmim”, factos esses que comprovam que os mesmos preenchem a previsão da segunda parte da alínea 8) do artigo 6.º da Lei Eleitoral para a Assembleia Legislativa, sendo assim inelegíveis, pelo que já não há necessidade de apreciar e analisar as outras informações fornecidas pela CAEAL relativas a estes candidatos e a situação dos outros candidatos das três listas.

Pelo exposto, o Tribunal Colectivo julgou improcedentes os recursos contenciosos eleitorais interpostos pelo mandatário da lista de candidatura “Associação do Novo Progresso de Macau”, Chan Lok Kei, pelo mandatário da lista de candidatura “Associação do Progresso de Novo Macau”, Chan Wai Chi, e pelo mandatário da lista de candidatura “Associação de Próspero Macau Democrático”, Chiang Meng Hin, mantendo a decisão da CAEAL de recusar as três listas de candidatura.

Cfr. acórdão proferido no processo n.º 113/2021 (foram apensados os processos n.ºs 114/2021 e 115/2021) do Tribunal de Última Instância.

Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância

31/07/2021

Caridade

Pedro Correia, 31.07.21

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Questiono-me se alguém terá a caridade de explicar a este senhor um facto elementar: ao falar como falou na entrevista de ontem ao Expresso, faz um enorme elogio a António Costa. E deixa logo para segundo plano a mensagem que terá pretendido passar - presumindo que teria alguma.

Provavelmente não. Temo que ao fim de quase quatro anos de "liderança" no PSD já ninguém desperdice tempo, energia e paciência para lhe ensinar como se faz oposição. Tarefa irremediavelmente condenada ao fracasso.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 31.07.21

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João Carvalho: «Hoje, no limite do prazo, ficou decidido que o BPN será adquirido pelo BIC. Não é a primeira vez que uma operação de suma importância se concretiza num domingo: ficou conhecido, há uns anos, o caso de um curso de Engenharia, cadeira de inglês técnico incluída.»

 

Eu: «Em sucessivos canais televisivos de notícias, os participantes de programas consagrados ao "debate político" têm anunciado aos portugueses que irão de férias durante todo o mês de Agosto, regressando apenas em Setembro. Num país em crise, com um governo recém-empossado, numa altura em que a política necessita mais que nunca do escrutínio público e quando o próprio Parlamento resume a duas semanas o seu período de férias, os referidos programas não abdicam de um longo descanso estival e os seus comentadores encartados já se encontram a banhos, como se este fosse um Verão igual a qualquer outro.»

Fleuma

José Meireles Graça, 30.07.21

O socialismo, a dívida, a Covid, são doenças endémicas. E estas enfermidades originam atitudes e declarações que não deixam esquecermo-nos delas, mas que devemos encarar fleumaticamente.

Por exemplo, um molusco gastrópode escreveu hoje no Tweet: Que chato, não é? INE anuncia esta sexta-feira o maior crescimento de sempre da economia portuguesa.

Quase verdade, uma tal Sónia confirma: No 2º trimestre o PIB cresceu 15,5% em relação a igual período do ano anterior.  A jornalista embandeira em arco e nós com ela, embora talvez fosse oportuno lembrar que o crescimento poderia ainda ser maior se a economia, em 2020, tivesse caído mais.

Estes dois cidadãos, dos quais um não tem cara de parvo, estão afectados de socialismo crónico. Incurável.

O endividamento de 753,3 mil milhões significa pouco: é 4 vezes superior ao PIB anual, portanto que saia bastante, muito, excessivamente, demasiado, torridamente, dos limites da imaginação, não interessa realmente por aí além. Uma dívida destas é coisa de tal modo lunática que a solução só pode ser de natureza celestial.

E a Covid? Estamos bem, obrigado. Poderíamos estar melhor, porém: toda a gente conhece os sintomas mas a doutrina não tem prestado excessiva atenção aos danos indirectos que a doença provoca nas capacidades cognitivas de seres sencientes aparentemente normais, como se demonstra pelo e-mail que abaixo transcrevo, dirigido a uma multinacional da saúde, e que evidentemente não terá resposta.

“Fiz pelas 15H30 uma TAC ao tórax no Hospital Velho de Guimarães. A técnica que me atendeu, cujo nome não retive, foi inteirada, porque perguntou, da razão para o exame: dificuldades respiratórias. Apesar disso, insistiu pela necessidade da máscara (o farrapo que alegadamente protege da Covid), que fui obrigado a conservar durante o exame. Durante este, preveniu a senhora, uma voz iria recomendar "encher o peito de ar" - precisamente a dificuldade que originou o exame. A mesma técnica informou, a final, que o abuso e a inépcia (qualificação minha) se destinavam a protegê-la de infecção, tendo-me abstido de lhe significar que semelhante desgraça seria um grande benefício para os serviços. Acham VV. Exªs que isto são boas práticas?”

Fleuma, disse acima. Umas vezes precisamos de mais, outras nem por isso.

Grandes romances (38)

Pedro Correia, 30.07.21

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ESPLENDOR NAS BRUMAS

Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio

 

«Quando penso no mar, o mar regressa / A certa forma que só teve em mim - / Que onde ele acaba, o coração começa.»

Vitorino Nemésio

 

Cada época produz o seu romance de eleição. Em Portugal, no século XX, nenhum foi tão envolvente e tentacular como esta saga de duas famílias que se cruzam no Faial naqueles anos crepusculares da I Guerra Mundial, estava Sidónio Pais no poder em Lisboa. Ilha-postal, ilha-refúgio, ilha-prisão. Separada do vizinho Pico por um canal de águas revoltas que acaba por ditar o destino dos faialenses. Nem a felicidade perdura para quem lá permanece nem uma felicidade alternativa sorri a quem dali se evade. Porque, mesmo à distância, é impossível escapar ao sortilégio das raízes - sina de quem teve berço naquelas brumas.

Margarida Clark Dulmo é pouco mais que uma adolescente, mas já tem noção de tudo isto. Nela convergem dois apelidos ilustres: os Clarks de óbvia matriz britânica, detentores da firma Clark & Sons; e os Dulmos, ainda aparentados com a nobreza flamenga, ali fundeados desde os tempos do povoamento pioneiro, «aves do Faial há mais de quatro séculos, como os milhafres e os cagarros». Com mais pergaminhos que posses, uns e outros, naquele recanto atlântico onde chegavam remotos ecos da guerra que atroava o globo.

Na galeria das personagens femininas da literatura portuguesa, Margarida ocupa lugar de topo. Tão jovem ainda e já lhe pesa nos ombros a responsabilidade de salvar os móveis da família e funcionar como traço de união entre os dois ramos desavindos. Enquanto sonha escapar ao fadário da mãe e da desaparecida avó, ambas amarradas a casamentos amargurados. Se é a ilha natal a impor-lhe essa cruz, ela tudo fará para abandonar a ilha. Evitando as armadilhas do amor, se for preciso.

 

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Vitorino Nemésio (1901-1978) transportou durante cerca de vinte anos esta história, fascinado pela figura de Margarida Dulmo - que teve existência real, com outro nome - até a passar para o papel, já fisicamente distante da sua pátria açoriana a que afinal foi regressando uma vez e outra. 

Estava consciente de que tinha potencial para se tornar num marco da literatura portuguesa - pela arquitectura da prosa, pela exuberância do estilo, pela espessura das personagens e pela densidade do enredo, com um fôlego raro nas nossas letras. 

Poeta, professor, ficcionista, ensaísta, crítico, cronista, biógrafo, historiador, pedagogo e conferencista, Nemésio era um magnífico narrador, mestre da expressão verbal que seduziu os portugueses na primeira metade dos anos 70 com uma série de programas da RTP intitulados Se Bem me Lembro. Só esta popularidade granjeada na década final da vida lhe permitiu resgatar do esquecimento o seu único romance, que fora impresso em 1944, andava o mundo envolvido noutra guerra. Poucos o leram, quase nenhum crítico reparou naquela prosa do «mais moderno dos nossos clássicos e o mais clássico dos nossos modernos», na lapidar definição de David Mourão-Ferreira.

É uma obra de perfeição formal inatacável. E uma admirável declaração de amor aos Açores. Em forma de romance clássico, que honra a melhor tradição deste género literário e se assume como um dos momentos cimeiros da ficção portuguesa de todos os tempos.

 

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Mau Tempo no Canal contém uma narrativa deslocada da sua época, fragmentada entre duas escolas literárias então em voga: a da revista Presença, que enaltecia a vertente psicológica, e a do Novo Cancioneiro, militante da temática social. Para os primeiros, só o sujeito importava; para os segundos, nada mais havia senão o objecto com ideologia em fundo. E tudo girava em função destas etiquetas, daí o silêncio em torno deste desconcertante livro não-alinhado, «romance ao mesmo tempo realista e simbólico, de situações e de atmosferas, de costumes e de estados de alma», como acentua Mourão-Ferreira.

Foi obra de laboração lenta, iniciada em Bruxelas - onde Nemésio então vivia - no início de 1938. O que viria a ser o capítulo inicial surgiu pela primeira vez em Abril do ano seguinte, nas páginas da Revista de Portugal, sob o título "Um Ciclone nas Ilhas". Cinco anos depois, ao aparecer nas livrarias, foi acolhida com generalizado desinteresse. Ressalvados os elogios que João Gaspar Simões e Albano Nogueira lhe dispensaram, na imprensa contemporânea imperou a indiferença: poucos dos que exerciam crítica nos jornais perceberam estar perante uma obra-prima.

 

O romance rompia com o cânone que impunha o primado da mensagem “social” com ramificações políticas. O mundo do trabalho braçal entrava em força na literatura, com o seu cortejo de humilhados e ofendidos: pouco interessava, para os tutores dessas correntes estéticas, as inquietações românticas de uma jovem burguesa da cidade da Horta com raízes aristocráticas e nascida numa família de proprietários rurais.

Apesar disso, a obra receberia o Prémio Ricardo Malheiro, motivando uma segunda edição em 1945. Mas a terceira só ocorreu em 1963: toda uma geração ficou sem acesso a ela. E mais nove anos decorreram até haver uma quarta, à boleia da inesperada popularidade televisiva do autor. Enquanto livros obviamente menores eram incensados e louvados em sessões contínuas. 

Texto «impregnado de atmosfera marítima» (é ainda David Mourão-Ferreira que o assinala), Mau Tempo no Canal mescla a epopeia de vocação universal com o folhetim de sabor regionalista sem perder coerência no plano estilístico. «Como nas grandes obras de arte de todos os tempos, o acaso não existe em Mau Tempo no Canal. Dos elementos naturais ao bibelot, tudo nos surge impregnado de sentido. Dos textos eruditos por vezes citados ao tagarelar de um homem do povo, sente-se a comunhão na açorianidade», observa José Manuel Garcia, um dos maiores estudiosos de Nemésio.

 

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Margarida Dulmo interpretada por Anabela Morais na série da RTP Mau Tempo no Canal (1989)

 

Além do Faial, «vendada de nuvens e de gaivotas», a acção desenrola-se noutras três ilhas: Pico, São Jorge e Terceira - aqui onde acontece o epílogo, estando o leitor já consciente do tempo decorrido e dos sobressaltos registados desde a cena inicial, em que Margarida conversa com João Garcia, filho de um inimigo de seu pai. O namoro com aquele rapaz de «uma timidez desconcertante» é visto com maus olhos por ambas as famílias, o que marcará as vidas dos dois jovens. Fugaz «esplendor na relva», como o do célebre poema de William Wordsworth. 

Enquanto o delírio bélico devasta o mundo, no exíguo Faial - «terra onde tudo são heranças e negócios» - travam-se conflitos endogâmicos, por vezes no mesmo clã familiar. A vastidão oceânica que emoldura a Horta não dilui, antes intensifica, amores e ódios.

Há fortunas dissipadas, esposas traídas, maridos enganados, juras quebradas, falsos testemunhos. Um incêndio de vastas proporções que devasta uma conhecida mansão da ilha. Toda uma atmosfera social retratada na missa da Matriz, num baile de gala do Real Clube Faialense. E uma epidemia de peste bubónica à solta - a última que o arquipélago dos Açores conheceu. 

Há personagens como o velho Charles William Clark, avô materno de Margarida, e o violento Diogo Dulmo, seu pai, afundado em álcool e dívidas. Há Roberto Clark, o tio londrino idolatrado pela sobrinha que sonha ser enfermeira na capital britânica. E Januário, o pai de João Garcia, obcecado pela vingança. E há as mulheres, todas com o seu rasto de sofrimento: Catarina Clark, mãe da protagonista; Margarida Terra, sua falecida avó, de quem todos dizem ter herdado as feições; Emília, mãe de João, repudiada para sempre.

 

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Neste extraordinário romance, como nas melhores obras de Rudyard Kipling ou Joseph Conrad, a paisagem humana funde-se com a natureza, que adquire características das personagens.

Alguns exemplos:

- «Via-se o Canal ainda amargo, com o Pico negro e cónico ao fundo.» (p. 45 da edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994);

- «Há dois meses que a Horta vivia sob o pesadelo da peste debaixo daquele eterno capote-e-capelo das nuvens que o Pico franzia na garganta.» (p. 101)

- «A baía de Angra estendia-se gris e sonolenta das sombras do Monte Brasil ao molhe do Porto de Pipas.» (p. 326)

 

Margarida, com «aquele vago mistério sempre latente nos seus olhos», rebela-se contra o rumo que lhe estaria traçado desde menina. Desdenha da hipocrisia daquela gente que só vive de aparências. Quer conhecer a vida verdadeira. Refugia-se na casa que os Dulmos têm no Pico, onde cuida do velho criado Manuel, atingido pela peste. Embarca com pescadores, acompanhando-os na caça ao cachalote em páginas dignas de Moby Dick. Recupera das emoções do mar numa furna que serve de abrigo aos baleeiros, já em São Jorge.

Levará ainda mais longe o seu anseio de liberdade ou acabará por satisfazer o pai, que a quer ver casada - mesmo sem amor - com algum herdeiro de gente rica?

A última palavra será dela: ascende deste modo a figura cimeira da literatura portuguesa. Pela arte de um escritor que se revelou profundo conhecedor da sensibilidade feminina. Leitora de romances de Camilo e Júlio Dinis, Margarida torna-se heroína pós-romântica num tempo em que elas pouco mais eram do que figuras decorativas, na ficção como na vida.

Na amurada dum navio, retira do dedo o anel de ouro e esmeraldas que herdara da infausta avó materna e deita-o fora: ficará para sempre sepultado «no mais secreto do mar». É um gesto cheio de simbolismo: assim renega os atavismos sentimentais que tolheram as mulheres da família. O que vier depois será diferente.

Nessas magníficas páginas finais, sempre com o oceano por testemunha, encontra um amigo do perdido namorado, que lhe revela: «O João Garcia afinal só gostou de uma mulher, que foi de si.»  E la nave va: ela nada lamenta, mesmo consciente de que jamais reviverá o instante do esplendor na relva, da glória em flor.

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Selva - A grande muralha verde

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

O Malhadinhas - Um hino à vida

Barranco de Cegos - O meu mundo não é deste reino

Para Sempre - Existo, logo penso

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.07.21

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Ana Vidal: «Infelizmente, existem loucos, fanáticos e psicopatas em todas as ideologias políticas. Breivik pertence à extrema direita (Hitler fez escola, este caso é mais uma triste prova disso), mas também podia ser da extrema esquerda e escolher outros alvos (seguindo o mestre Estaline) com o mesmíssimo objectivo, mas de sinal contrário. O que quero dizer é que recuso acreditar que por detrás deste grau máximo de malignidade não esteja um muito sério distúrbio mental.»

 

João Carvalho: «O funcionamento é muito simples: os óculos integram duas lentes sobrepostas para cada olho e a haste central por cima do nariz, que faz a ligação entre as duas molduras duplas, possui um mecanismo básico com um "pinchavelho" que serve para aproximar ou afastar, progressivamente e em movimento contínuo, as lentes exteriores das lentes fixas interiores.»

 

Patrícia Reis: «Vi a minha mãe chorar três vezes. Uma num funeral. Uma em Ouro Preto, durante o Festival Literário, quando José Luís Peixoto disse o poema "Cinco à Mesa" e, por fim, ontem quando Jamie Cullum tocava com a felicidade estampada no rosto. Numa vida qualquer podia ser ela. Qualquer coisa a arrebatou a música, essa possibilidade maior, e o pensamento: podia ser eu.»

 

Eu: «Há em Portugal uma espécie de pudor atávico em praticar a arte do conto - característica que felizmente tem vindo a dissipar-se nas duas últimas décadas, com nomes que vão de Mário de Carvalho a Rui Zink. Entendido como género "menor" pela generalidade dos exegetas lusos de matriz universitária, o conto foi sendo considerado uma espécie de parente pobre da nossa literatura. Quem o cultivava quase tinha de pedir licença prévia para o efeito.»

Jogos Olímpicos

jpt, 29.07.21

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Nada tenho ligado a estes excêntricos Jogos Olímpicos, nem sabia a data da sua inauguração. Não há dúvida, longe me vão os tempos do fervor de Montreal e Los Angeles. Agora mesmo à simpática notícia da medalha de bronze apenas me ocorreu um nada mórbido "quantas mais olimpíadas viverei?" - e também revivi o sarcasmo de bloguista que já se me assomara no recente Mundial de judo num "este Fonseca, mais o Évora e a Mamona [que nariz!, que nariz!] serviriam para um postalito sobre académicos de ademanes, o dr. Ba e aquela deputada algo esquecida", tivesse eu paciência neste Verão.
 
Enfim, o relevante que tenho entrevisto nos cabeçalhos sobre estes JO nem tem sido sobre resultados. Pois parece que neste mundinho ignaro de ecran shopping e de locutores de "boas causas" anda tudo centrado em que há levantadoras de peso ex-homens, e até atletas homossexuais, imagine-se a novidade, como se a telenovela global não tivesse aquele decatlonista de Montreal que entretanto se amputou em mulher. E, já para nem falar de outras coisas, não tivessemos crescido com todos aqueles patinadores e todas as tanques de Leste. E, surpresa das surpresas, consta que há atletas que padecem, coitadinhos deles, de distúrbios, segundo dizem os espectadores, solidários e até chorosos...
 
E lembro-me do meu campeão favorito, o grande Mamede, esse que tinha a grandeza do falhanço. Raios partam estes patetinhas, os da imprensa e os que a consomem. Burguesotes e ignorantes, a descobrirem a paróquia todos os dias, como se não tivesse havido ontem.

Ambiente de trabalho VII

Teresa Ribeiro, 29.07.21

As novas elites não dão ponto sem nó. Traçam o seu percurso, começando cedo a identificar que pessoas devem conhecer e em que circunstâncias. Preparam-se cuidando dos mais ínfimos detalhes, porque hoje o  que parece, é. Há soft skills que devem constar num currículo, porque são muito valorizadas nos tempos que correm, daí ser conveniente exercer atividades a partir das quais se possa tirar ilações sobre a qualidade do seu carácter ou capacidade de trabalho. 

Como bailarinas em pontas aprendem, depois, a andar em bicos de pés para serem notados por quem tem poder. E o que é, para esta nova geração, ter poder? Ter poder é ter influência. Ser conhecido e reconhecido. Mas este reconhecimento não tem necessariamente a ver com competência, conhecimento e muito menos experiência. Três atributos que a nova cultura do trabalho esvaziou ao introduzir no discurso um novo mantra: proactividade, competitividade e "gosto pelo desafio". Três magníficos eufemismos cuja elasticidade permite cobrir um vasto leque de perfis, desde os jovens com ambição que desejam legitimamente subir na vida, àqueles que antes se designavam por arrivistas: tractores que não olham a meios para "chegar lá". Não importa como, pois já ninguém quer saber.

"Estar lá" quer dizer que se ganhou a medalha olímpica da notoriedade, o novo oiro. Não por acaso chegou-se ao ponto de criar uma nova "profissão", a dos influencers. Ter poder é conhecer e ser conhecido por "toda a gente", sendo que "toda a gente" é a gente que tem uma importante rede de contactos. Trata-se de uma pescadinha de rabo na boca, círculo onde até se vende a mãe para entrar, pois os que ficam de fora são nada. Pertencem à massa indistinta dos que não "chegaram lá". Engenheiros, arquitectos, artistas, limpa chaminés, jornalistas, rapariguinhas do shopping, é indiferente. A todos é dispensado um tratamento indiferenciado que se verte, de resto, em salários absurdamente semelhantes.

As novas elites lideram, sem complexos, áreas que desconhecem, apoiadas na expertise dos profissionais que este novo sistema proletarizou. Mas formadas que foram na cultura narcísica do autoelogio e do elogio mútuo sustentada pelas redes, não resistem a deixar a sua marca de génio na gestão de pessoas e coisas, tomando por capricho decisões absurdas e irresponsáveis, ignorando os conselhos de quem sabe, só pelo prazer de mandar. É nisto que estamos, nas mais diversas áreas de actividade. Até dói.

Um almoço

jpt, 29.07.21

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Sábado de Julho, juntamo-nos em almoço. Um pequeno grupo de amigos, algo heterogéneo quanto a origens, perfis e até idades. Que sempre se congrega para repastos que sejam peculiares, num cuidadoso conservadorismo gastronómico. E que agora, desde há tão pouco, mais ainda tece os convívios pois estes tornados modo de manter à mesa aquele de nós que fora o nosso inicial vínculo comum, que se nos morreu neste final da Primavera.

Terminadas haviam já sido as caras de bacalhau - debruadas de couves e ervas de produção própria, o que se não lhes altera o sabor lhes dá mesmo um gosto diferente -, chegara um gelado bem mais que amuse-bouche, antecâmara do uísque de malte e de um bom moscatel da região, estes distribuídos segundo a canónica divisão de género, como agora sói dizer-se aquilo dos cavalheiros e das senhoras. Como sempre a conversa vem fluindo, sem quaisquer agendas, em sortido de temas e monopólio de carinhosa boa disposição. Nesse fluxo alguém convoca aquilo do "pata a fundo" ministerial e do pobre sinistrado, assunto que vem enchendo as notícias, e sobre isso brotam resmungos. Uma das convivas, mulher do de facto carismático sempre líder deste grupo comensal, ela quadro superior da administração pública, interrompe-os, aos resmungos, com a sua experiência de décadas de ofício. E conta-nos que os motoristas, se acompanhados dos governantes, nunca são multados. E o que o seu problema é quando são chamados, e tantas vezes isso acontece, à última hora para que SExas. possam cumprir compromissos urgentes, uma reunião para a qual estão atrasados, uma ida para o aeroporto algo descurada, uma deslocação inopinada, coisas de agendas pouco cuidadas ou acometidas por imprevistos. E nesses tão habituais casos os motoristas têm de quase-voar ao encontro dos seus superiores, evitando desprazeres, reprimendas ou mesmo transferências laborais, que os seus eventuais atrasos sempre convocam. E nessas viagens, desprovidos dos VIPS assim seus verdadeiros guardas-costas, são multados pela polícia mesmo se argumentarem estar em serviço. E são eles que as pagam, às multas, mesmo que devidas às tais pressões oriundas das descuidadas urgências superiores. 

Com as senhoras presentes o nosso linguajar é menos desbragado. Sobram assim apenas algumas alusões à imoralidade sexual das progenitoras destes tipos, mandantes. E levanto-me, gentil, vou eu fazer o café e buscar um balde de gelo.

Transparência zero

Pedro Correia, 29.07.21

Nuno Santos foi atropelado mortalmente no dia 18 de Junho por uma viatura ministerial. Quarenta dias depois, subsistem várias questões por explicar. Continuamos sem saber, por exemplo, a que velocidade seguia o automóvel e se a GNR fez - como se impunha - um teste de alcoolemia ao motorista. Questiono-me se haveria tanto silêncio em torno deste caso se o atropelado tivesse sido um turista norte-americano em vez de um trabalhador português.

Entretanto o Governo, instado uma vez e outra acerca da perigosa velocidade a que seguia o automóvel, continua firme na recusa em responder - tal como guarda silêncio sobre a autorização dada por Eduardo Cabrita à celebração do título do Sporting em Lisboa, a 11 de Maio. Ao ponto de o primeiro-ministro ter ordenado ao grupo parlamentar do PS para chumbar a audição do titular da Administração Interna na Assembleia da República - comportamento próprio de regimes proto-ditatoriais.

Como se estivessem em causa segredos de Estado. Como se o Governo não devesse prestar contas ao Parlamento.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.07.21

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João Carvalho: «Branca por fora e por dentro, a "coisa" parece uma placa de esferovite caída no intervalo entre dois prédios. Contudo, como exercício de arquitectura, deve reconhecer-se que é invulgar. O morador só não pode adoecer, porque o sobe-e-desce escadas, se já não é fácil em habitações normais com mais do que um piso, neste caso limita perigosamente o próprio e até quem chegar de fora para lhe deitar a mão.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Houve alguma investigação sobre Bernardo Bairrão ou as suas ligações empresariais autorizada por algum membro do Governo da República? Se sim, quando, quem conduziu essa investigação, com que objectivo e quem a autorizou?»

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