Grandes romances (34)
O APOCALIPSE ESPANHOL
A Esperança, de André Malraux
«A tragédia da morte está em transformar a vida em destino.» (p. 240)
As palavras são importantes, mas o ser humano revela-se sobretudo nos actos - e nenhum é tão decisivo como o comportamento em situações de risco. Esta é uma das lições que extraímos d' A Esperança, romance redigido com a urgência de um manifesto por um militante comunista que viria a renegar o partido na sequência do pacto entre Hitler e Estaline, distinguiu-se como activista na Resistência francesa aos nazis e seria durante dez anos (1959-1969) ministro da Cultura e cúmplice político de Charles de Gaulle, um Presidente católico e conservador. Agindo como homem de pensamento e reflectindo como homem de acção.
André Malraux (1901-1976) vinha aureolado de aventureiro por ter contrabandeado peças arqueológicas na Indochina francesa, nos anos 20, e testemunhado a fulgurante ascensão do nacionalismo revolucionário chinês que imortalizou em romances como Os Conquistadores (1928) e A Condição Humana (1933), mas também granjeara louros intelectuais ao ser galardoado com o Prémio Goncourt por esta obra. Ao contrário do que talvez outros fizessem, não se remeteu ao estatuto de consciência moral dos seus contemporâneos: necessitava de intervir nos palcos onde a gente comum se confrontava com o destino, edificando a História.
Foi assim que se alistou como voluntário, para defender a república espanhola, mal soube que um grupo de generais se rebelara contra o Governo da Frente Popular, em 18 de Julho de 1936. Este parisiense de signo Escorpião pressentiu desde o início que não se tratava de mera tentativa de golpe de Estado: a vizinha Espanha iria sangrar, dilacerando-se. Os beligerantes fariam ali um ensaio geral para a II Grande Guerra que não tardaria a devastar o mundo.
Malraux nunca hesitou na escolha da trincheira em Espanha: cabia-lhe defender o Executivo ameaçado pelo pronunciamento militar que cedo seria liderado por Francisco Franco, o mais jovem general da sua época, um empedernido conservador fiel ao Rei Afonso XIII, deposto cinco anos antes. O escritor nem sequer cumprira o serviço militar mas comportou-se com instinto e fibra de combatente. Por sua iniciativa, formou uma esquadrilha de caças e bombardeiros adquiridos pelo Governo de Madrid a França e recrutou tripulações entre profissionais da aviação. A Esquadrilha Espanha chegou a integrar 130 pilotos que cumpriram 23 missões de ataque entre Agosto de 1936 e Fevereiro de 1937, período em que Malraux - que não tinha brevet nem jamais pilotou um avião - ganharia divisas de tenente-coronel, atribuídas pelo Ministério do Ar espanhol. Logo a ele, que mal arranhava umas palavras de castelhano.
«A guerra unia os mercenários aos voluntários quanto ao aspecto romanesco; mas a aviação unia-os a todos como a maturidade une as mulheres.» (p. 73, edição Livros do Brasil, com tradução de Judith Cortesão, filha de Jaime Cortesão e viúva de Agostinho da Silva)
Onde houvesse perigo, Malraux estava lá. Acompanhado do seu caderno de apontamentos, onde viria a escrever o rascunho deste L' Espoir - o primeiro e talvez o melhor romance sobre a Guerra Civil de Espanha (1936/1939). Escritor num tempo em que também as palavras podiam ser balas. Recebera a influência dos grandes clássicos do género - incluindo Guerra e Paz - mas não lhe interessava o posto de observador equidistante: o olhar dele é o de alguém envolvido de corpo inteiro numa das facções do conflito. Como se a outra parte fosse despida de figuras concretas e só integrasse um inimigo difuso movido por ímpetos homicidas, representando o Mal na dimensão absoluta.
Num tempo em que cada manhã podia ser a última e a contemplação abstracta da guerra equivalia a um pecado mortal.
A Esperança é, apesar do título, a crónica de uma gesta falhada. Em Espanha travaram-se vários combates dentro de cada trincheira: estava em jogo a correlação de forças sobretudo nas fileiras republicanas, divididas entre socialistas, comunistas, anarquistas, alguns liberais conscientes de que o apoio de Hitler e Mussolini a Franco ampliaria a malha totalitária na Europa e até uns quantos católicos que renegavam o alzamiento militar como "cruzada de Deus" para punir os ímpios.
Todos estes acabariam por confrontar-se entre si, em fases diferentes, mas disso não se ocupa este livro: Malraux eleva a peça de propaganda militar à condição de obra de arte. Interessa-lhe o compromisso político e a exaltação da fraternidade em armas, mas sem jamais se iludir sobre a vocação trágica inscrita na condição humana, com vida e morte entrelaçadas.
«Um estrépito de camiões, abarrotados de espingardas, submergia Madrid, tensa, na noite de Verão.» É assim que o romance começa, como num livro de aventuras, capaz de nos revelar a guerra na sua dimensão fisiológica, com os seus ruídos e os seus odores. E com a voz do medo a soar no íntimo de cada um. Frase de arranque que dá tom à obra, dividida em três partes: "A Ilusão Lírica", "O Rio Manzanares" e (esta em propositada redundância) "A Esperança".
É um livro polvilhado de momentos que nos perduram na memória. Os ferozes combates de rua em Barcelona, onde numa noite arderam todas as igrejas. Os voos rasantes da esquadrilha sobre Medellín, na Estremadura mártir. A queda de Badajoz, a dois passos da fronteira portuguesa. A formação em Albacete das primeiras brigadas internacionais. O desembarque inicial de blindados soviéticos, em contraponto aos caças italianos e germânicos. Acaloradas discussões entre anarquistas e comunistas nos intervalos dos combates para a tomada de Toledo, com os primeiros a acusarem o marxismo-leninismo de se «transformar numa religião devorada pela disciplina». Um desses anarquistas, Négus, contesta sem rodeios a tentativa de hegemonia comunista: «Os partidos foram feitos para os homens, não os homens para os partidos. Nós não queremos conseguir um Estado, uma Igreja ou um Exército. Queremos homens.» (p. 196)
Um dos momentos culminantes ocorre no cerco a Madrid, cidade onde todos os cegos já só tocavam A Internacional nas ruas repletas de «magníficos cães abandonados pelos donos em fuga». Um verdadeiro cenário de apocalipse: «Desde o início do bombardeamento que os galos cantavam. Ao soar o selvagem estampido de um torpedo, tornaram-se dementes, todos ao mesmo tempo; tão numerosos, no bairro miserável, como os de uma aldeia, frenéticos, exasperados, começaram a ulular à morte o canto selvagem da pobreza.» (p. 326)
Parecia uma nova Idade do Fogo: «Os três maiores hospitais da cidade ardiam. O Hotel Savoy ardia. Ardiam igrejas, ardiam os museus, a Biblioteca Nacional ardia. O Ministério do Interior ardia, um mercado ardia e os pequenos mercados de tábuas ardiam.» (p. 363) Centenas de cães uivavam «como se fossem os únicos a reinar naquela desolação de fim do mundo».
Magnífico livro-reportagem que nos leva a mergulhar nos horrores da guerra enquanto as bombas tombam sobre a capital, enquanto a multidão em desespero foge da Málaga ocupada, enxameando estradas à mercê da aviação inimiga, numa vertigem suicida.
É um livro só com homens, onde as mulheres - vítimas mais ocultas da tragédia - surgem apenas como sombras na linha agreste da paisagem. «Uma vez mais, nesse país de mulheres enlutadas, esquece-se o povo milenar das viúvas.» (p. 245)
Malraux surge aqui de algum modo retratado na figura de Magnin, engenheiro aeronáutico francês que se oferece para formar um corpo de voluntários e combater no céu de Espanha não em obediência a cartilhas ideológicas mas em nome de um imperativo ético. Mas a personagem central é o comunista Manuel, inspirado em Gustavo Durán (1906-1969), compositor catalão também mencionado, com nome próprio, em Por Quem os Sinos Dobram (1940), de Ernest Hemingway - outro célebre romance sobre a guerra civil.
Inesquecível, a cena em que Manuel dialoga numa capela em ruínas com o coronel Ximénez, católico fervoroso que se manteve nas fileiras republicanas. «Não se ensina a oferecer a outra face a gente que, já lá vão dois mil anos, não recebe senão bofetadas», diz o militar.
Numa obra que se alimenta do imediatismo, Portugal surge duas vezes em pano de fundo, como placa giratória da guerra. Na página 110: «No passado dia 6 (...) o Montesarmiento trouxe para Lisboa 14 aviões alemães e 150 especialistas.» E na página 116: «Apoiado da maneira mais concreta por Portugal, auxiliado pelos dois países fascistas, o exército de Franco - colunas motorizadas, espingardas-metralhadoras, organização ítalo-germânica, aviação ítalo-germânica - vai tentar subir até Madrid.»
A Esperança só nos relata os oito primeiros meses do conflito bélico, encerrando com a batalha de Guadalajara, em Março de 1937 - ilusório triunfo das hostes governamentais, como o futuro próximo se encarregaria de confirmar. Malraux, de regresso a França, tinha pressa em escrever.
O romance começou a publicar-se em folhetim no jornal pró-comunista Ce Soir, dirigido pelo poeta Louis Aragon. Em Dezembro, surgiu em livro. Com o autor a contrariar aquilo que deixaria inscrito anos depois, no seu monumental ensaio As Vozes do Silêncio: «Para que a arte nasça é necessário que a relação entre os objectos e o homem seja de uma natureza diferente da imposta pelo mundo.» E a desvendar-nos a sua noção muito peculiar da existência: os homens só são verdadeiramente felizes quando arriscam a vida. Em busca de «uma fraternidade que não se encontra senão para além da morte.»
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