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Delito de Opinião

Rastas

José Meireles Graça, 30.09.20

Há dias a SicN apresentou um pivot preto, de rastas, e as redes fervilharam de comentários. Diversas personalidades acharam útil pronunciarem-se e a candidata presidencial Gomes escreveu, entusiasmada, no Twitter: Boa, SicNotícias!

Boa coisa nenhuma. Porque gente com influência no espaço público não deveria ter nada a dizer sobre um facto anódino como é a raça (dão licença, neste contexto, para usar a palavra?). Dizer seja o que for implica que a selecção do moço não se baseou unicamente nas qualidades profissionais para o desempenho do lugar. Ana, ou quem quer que seja, conhece o processo de selecção? Não? Então o que tem a fazer é fechar a matraca.

Se a Sic tivesse ido buscar um dos ou uma das analfabetas que costuma recrutar para tais lugares, ninguém estranharia. Por que carga de água é que este não-assunto se transformou num?

Sei a resposta: a estúpida guerra das raças nos EUA serve de arma de arremesso na luta política local. E entre nós parte-se do princípio que nos convém, além da coca-cola e dos jeans, importar esta querela porque somos imensamente modernos  e são precisas bandeiras, causas, militantes e perspectivas de vida que as discriminações positivas abrem para quem se achar vítima de qualquer coisa. Não sei se Mamadou Ba, o conhecido militante da vitimização rácica, já se pronunciou, nem interessa: se ainda não disse nada, virá com a virtuosa indignação que lhe rende a notoriedade que de outro modo não teria.

De modo que as tropas do meu lado do espectro não deveriam ter quase nada a dizer, e do que tenho visto, tirando a suspeita de oportunismo da Sic, e um injustificado aplauso, o que tenho visto é contenção, salvo no que toca às rastas.

E têm feito muito bem. Que era o que mais faltava se, com medo das acusações de racismo, o novo locutor estivesse ao abrigo de que se lhe critique o aspecto. Naquela prestigiada estação já eles andam quase sempre de fatos arrepanhados e sapatos afiambrados, que algum azeiteiro director de imagem acha decerto que lhes ficam muito bem. E agora aparece um de rastas? Olha, Cláudio, presta atenção que sou teu amigo: isso tem associações identitárias (uma sarilhada delas) para as quais me estou nas tintas, e tu também talvez estejas. Mas têm igualmente, desculpa lá, um aspecto sujo: lavar essa gaforina deve ser o cabo dos trabalhos.

Não me venhas com a conversa de que as locutoras têm cabeleiras ainda maiores e ninguém se lembra de achar que têm mau aspecto. Porque maiores serão mas não têm esse ar empastado. Depois, nunca houve limite para os disparates das modas mas os pivots não são exactamente modelos nem gurus das tendências.

Deverias querer, Cláudio, distinguir-te pela dicção e pela pertinência das perguntas quando tiveres de as fazer. Toma nota.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.09.20

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Adolfo Mesquita Nunes: «José Sócrates vai ter o seu Orçamento, sancionado pelo Presidente da República e com a anuência do partido que aspira substituir os socialistas. Pelo caminho, fez Passos Coelho passar por histérico, obrigando-o, aliás, a desdizer-se uma vez mais (teremos, quem sabe, mais um pedido de desculpas). Nos dias que correm, com a miserável situação do país e perante a escancarada incompetência técnica do Governo, não deixa de ser admirável.»

 

Ana Margarida Craveiro: «Renuncio ao bem que me faz ver o meu semelhante deslocar-se no máximo conforto de um automóvel de topo de gama pago com as minhas contribuições para o Orçamento do Estado, e nessa medida estou disposta a que se decrete que administradores das empresas públicas, directores e dirigentes dos mais variados níveis de administração, passem a utilizar os meios de transporte que o seu vencimento lhes permite adquirir.»

 

Ana Vidal: «E no entanto, meu amigo, não é de evidências, mas de intangíveis, que se faz essa fugaz matéria a que chamamos amor. Faz-se de uma substância estranha, mutante e imprevisível, apenas materializada na surpresa que de repente nos devolve o espelho: um corpo que desconhecíamos, um olhar perplexo. Faz-se de um súbito sobressalto que nos invade as entranhas, um imperioso capricho da pele, um inapelável desassossego. Faz-se de um gesto irreprimível, todo languidez e impotência. Faz-se da essência dos rios, correndo em curso livre até se precipitarem num mar que nunca viram, mas sabem ser o seu único destino.»

 

João Campos: «Com sete anos de excelentes notas a Francês, acabei o Secundário incapaz de me exprimir com um mínimo de fluência na língua francesa; e o mesmo não aconteceu com o Inglês porque aprender a ler, escrever e falar correctamente Inglês foi um objectivo pessoal que estabeleci no décimo ano e que resolvi sozinho, nos meus tempos livres - e tudo graças aos meus gostos mais ou menos geek, quem diria.»

 

Luís M. Jorge: «A receita e a despesa, e tal. Mas este PSD tem que deixar passar o orçamento: se até ontem tinha margem de manobra, hoje já não a tem. A lindeza que prepare as lágrimas, o copo de água e o batráquio.»

 

Rodrigo Moita de Deus: «Trinta e seis anos depois de Abril volta a ideologia e a semântica da época. De um lado quem quer mudar tudo. Quem quer revolucionar. Do outro, quem quer que tudo fique na mesma. Quem até prefere que o tempo volte para trás. Mas a relação de poder traz curiosas ironias. A relação de poder faz do centro-direita uma força revolucionária e da esquerda a força da reacção. O obscurantismo e o dogma ideológico.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Há coisas que não deviam ser ditas. Um senador vetusto devia saber resistir a um microfone quando não tem nada para dizer. O povo sofre com as crises, pois sofre, mas às vezes zanga-se.»

 

Eu: «O melhor desempenho parlamentar no ano legislativo que terminou coube, quanto a mim, ao bloquista João Semedo. É um bom orador, capaz de demolir com sólida argumentação as teses contrárias. E tem uma notável capacidade de trabalho, como ficou bem evidente no relatório que elaborou na comissão de inquérito às interferências do Governo em órgãos de comunicação social. Foi um relatório sério, minucioso, desassombrado, que prestigiou a instituição parlamentar.»

Eutanásia social

Pedro Correia, 29.09.20

Está em curso uma autêntica eutanásia social. O morticínio que tem acontecido nos chamados "lares de idosos" - muitos dos quais clandestinos, perante a criminosa indiferença de tantas autoridades autárquicas, de norte a sul do País - é algo que devia chocar todos os portugueses. Das quase duas mil vítimas mortais por Covid-19 oficialmente já registadas, cerca de 40% ocorreram naqueles antros. Vitimando gente indefesa, que na grande maioria dos casos nem pode sair daquelas instalações, onde na prática vigora um regime de reclusão forçada desde que foi declarada a pandemia.

Só em Reguengos de Monsaraz, como num filme de terror, morreram 18. Nunca a bela palavra lar foi tão conspurcada e pervertida.

Infelizmente este assunto, como se tornou hábito, vem sendo tratado apenas enquanto dado estatístico na generalidade dos órgãos de informação. E siga para bingo, pois tristezas não pagam dívidas e há que continuar a promover "spots da moda" e inserir publirreportagens nos telediários recomendando "passeios inesquecíveis" (com gel e máscara).

E colar mais um arco-íris na janela com a frase "vai ficar tudo bem". Num país em que mais de 12 milhões de consultas e cirurgias permanecem por fazer.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.09.20

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Adolfo Mesquita Nunes: «Se o Presidente da República for bem sucedido, e tudo indica que o será, levando o PSD a invocar o interesse nacional, José Sócrates amarra o Presidente ao Orçamento e à estratégia governativa dos socialistas. Na verdade, se o Orçamento for aprovado, tê-lo-á sido graças à intervenção do Presidente. O que na prática equivale a dizer que o Presidente o sancionou.»

 

Bernardo Pires de Lima: «A candidatura de Portugal a membro não-permanente do Conselho de Segurança pode ser vista de duas perspectivas. Se atendermos à valorização das Nações Unidas por parte do PS (recordemos todo o debate nacional aquando da guerra do Iraque), este deveria ser um objectivo central da política externa do actual governo. A concorrência feroz aos dois lugares em disputa (Canadá e Alemanha, sendo este último praticamente certo) mereceria, assim, do orçamento para 2010 mais do que os 1,5 milhões de euros destinados à candidatura. Além disso, em Portugal, ninguém deu por qualquer envolvimento da sociedade neste objectivo estratégico, não existiu debate algum sobre o tema e, tampouco, o governo tem dado cavaco às oposições sobre o que tem feito.»

 

João Campos: «É preciso jeito para falar em público, sentido de humor e, sobretudo, muita prática; ora o nosso primeiro-ministro não possui possui qualquer vestígio de talento para falar em público; desconheço-lhe sentido de humor, pelo menos, sofisticado; e assim sendo não há prática que lhe valha. Tentou ser engraçado; conseguiu envergonhar o país no estrangeiro, uma vez mais. Way to go, man.»

 

João Carvalho: «O PS entrou naquela velhice decadente em que já não se disfarçam os sinais característicos. Crise internacional? Concentra-se no caso dos homossexuais. Crise nacional? Cuida do problema dos transexuais. Qualquer diagnóstico confirmará que estamos a lidar com outra crise sintomática típica: a crise de terceira idade do PS com a sua obsessão sexual impulsiva, caracterizada por um automatismo neurótico que se insere na psicologia patológica. O que não teria qualquer importância se o PS não fosse governo ou se Portugal fosse um reduto de dramas em torno da sexualidade.»

 

Eu: «Filmes de Verão, com Johnnny Weissmuller, Totó e Fred Astaire. Filmes de Inverno, com Giulietta Masina, Henry Fonda, Alec Guinness e Marlene Dietrich. Títulos perdidos na memória dos tempos mas recordados à simples evocação de uma cena imortal: Shirley Temple fazendo sapateado, Vasco Santana falando a uma girafa, Grace Kelly beijada por Cary Grant, Alice Faye cantando “With a Song in my Heart”, Alida Valli caminhando ao som da cítara vienense de Anton Karas. Tardes de cinema, noites de cinema. O mundo que se movia à velocidade de 24 imagens por segundo.»

Debate e cidadania

José Meireles Graça, 28.09.20

Bruno Alves, proprietário de uma excelente cabeça, disse numa rede, a propósito de um debate sobre a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento: “De um lado, o pessoal achou que Oliveira ‘destruiu’, ‘humilhou’, ‘arrasou’, ‘arrumou’, ‘limpou’ ou ‘deixou KO’ Sousa Pinto. Do outro, a conclusão foi de que Sousa Pinto ‘destruiu’, ‘humilhou’, ‘arrasou’, ‘arrumou’, ‘limpou’ ou ‘deixou KO’ Oliveira. O que só quer dizer que ficou demonstrada a absoluta inutilidade do debate político”.

Foi realmente assim, confirmo. Mas não subscrevo a ideia da inutilidade: quando o assunto se presta a diferenças nítidas esquerda/direita, e se não houver um patente desnível da capacidade argumentativa dos debatedores, o normal é que cada um veja como campeão aquele cujas ideias subscreve. Isto justificaria realmente que todos os debates desta natureza fossem inúteis se não se desse o caso de as ideias que as pessoas têm sobre a forma como o Estado deve intervir na vida dos cidadãos evoluírem.

Evoluem, sim. Tanto que todos conhecemos pessoas que se deslocaram para a direita do espectro, defendendo hoje o que antes censuravam, e, ao contrário, pessoas que se deslocaram para a esquerda, perdendo a capacidade de detectar tolices.

O próprio Daniel Oliveira é um exemplo disso, tanto que no seu extenso percurso político já esteve muito mais à esquerda. E gente incuravelmente optimista como eu, que simpatizo com o homem, vai a ponto de imaginar que, se a esperança média de vida estivesse nos 120 anos, aquele ilustre comentador da Sic ainda podia bem acabar em liberal.

Os debates fazem parte deste lento processo de alquimia: em sólidos edifícios de certezas um dia um argumento pode abrir uma fenda imperceptível; mais à frente a fenda pode evoluir para uma brecha; e um belo dia já há uma cratera e o habitante muda de poiso. Um debate não chega e, nesse sentido, é inútil; são necessários muitos, e são portanto essenciais.

O Bruno sabe bem disto. Irritou-se foi com a acrimónia, que realmente era dispensável, ainda que por mim ache que o que se perdeu em civilidade se ganhou em sinceridade. E se lá estivesse ainda era pior porque nem sequer entendo, como Sérgio, que o programa da disciplina devesse ser outro, mas antes que nem sequer deveria existir, ao menos sob a forma obrigatória. E a indignação moralista de Daniel, que guardou do Bloco aquele tique de depositário de uma superioridade moral que imagina ser atributo daquela seita tresloucada que ajudou a fundar, convenhamos: faz perder a cabeça a um santo.

Não vou juntar o meu arrazoado ao que inúmeros (desde logo os dois contendores, ambos em artigos no Expresso) já disseram: quem quiser que vá ler, além deles, o que escreveram, por exemplo, António Barreto ou Mário Pinto.

Somente chamo a atenção para este facto que, por demasiado óbvio, passa despercebido: quase toda as pessoas de direita são contra esta Cidadania e Desenvolvimento; e quase todas as de esquerda são a favor.

O que significa que, a mim, não me passa pela cabeça educar os filhos de Daniel. Se, por exemplo, o bom do intelectual quiser oferecer às netinhas carrinhos e não bonecas, não vá as prendinhas inculcarem nos tenros espíritos das meninas ideias preconcebidas sob géneros, por mim faz favor; mas já vejo com maus olhos que a escola diga à minha neta que, se o vovô lhe deu bonecas e não carrinhos, fez muito mal porque o paizinho tem tanta obrigação de cuidar dos filhos como a mãezinha.

Talvez tenha. Mas isso é um assunto nosso – não de Daniel, nem da escola, nem do legislador.

E então, este Sérgio, deputado socialista, ou, já agora, António Barreto, são de direita? Não. Apenas têm a ideia peregrina de que, no combate das ideias, é um golpe baixo formatar os filhos de uns nas ideias dos pais de outros. Ou pelo menos é assim que interpreto. Mas, lá está, não sou um espectador isento.

«Dê a pata, não seja mau»

Pedro Correia, 28.09.20

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Até há poucos anos, era padrão corrente o excesso de formalismo no modo como as pessoas se dirigiam umas às outras na televisão. Recordo uma entrevista conduzida por Judite Sousa na RTP em que a jornalista tratou cerca de trinta vezes o seu convidado por sôtor. Sem ninguém a ter advertido, antes ou depois, que duas vezes já é de mais.

De repente, passámos para o extremo oposto. Hoje quase toda a gente se trata por tu. Ontem à noite, uma dessas jovens certamente mal pagas mas com "bom visual" postas à frente da pantalha para apresentar alegados espaços informativos tratava por tu um convidado com idade para ser seu avô enquanto este resistia à tendência, tratando-a respeitosamente por você

São sinais dos tempos. Por óbvia importação da televisão americana, onde as formas de tratamento "igualitário" se tornaram de uso corrente, facilitadas pela inexistência de diferença entre tuvocê (you, em ambos os casos) no idioma inglês.

 

Acho muito bem que se desengravate a linguagem. Andámos demasiado tempo amarrados a pompas retóricas, em parte relacionadas com supostos graus académicos de que se usava e abusava nas formas de tratamento verbal. Hoje nem no Parlamento se emprega a antiga excelência, salvo para uso sarcástico. 

Mas há o risco de cair no exagero contrário. Reparem, uma vez mais, no que sucede nas televisões: quase todos os intervenientes num debate ou numa entrevista se tratam hoje pelo nome próprio. Como se fossem velhos conhecidos e estivessem a dialogar em ameno convívio nos sofás lá de casa. Também aqui por óbvio mimetismo dos EUA.

Já temos o "Presidente Marcelo", as bloquistas Catarina e Marisa, o comunista Jerónimo e até o cê-dê-esse Chicão. Nisto o partido fundado por Freitas do Amaral e Amaro da Costa tornou-se precursor: não tarda muito, teremos a proliferação dos diminutivos (embora Chicão pretenda ser aumentativo). Uma vez mais, seguindo o exemplo dos States, onde já houve um presidente chamado Jimmy e outro chamado Bill - que assinavam assim até em documentos oficiais. Não custa vaticinar que também por cá surgirão um Jaiminho ou um Gui na caça ao voto.

 

Enquanto isto sucede, inversamente, a forma de tratamento dos animais torna-se mais solene, grave e reverente. Verifico isso agora com frequência, quando caminho nas ruas do meu bairro. Não faltam damas e cavalheiros a tratar por você os cães que levam a passear, o que para mim constitui novidade absoluta. Nunca tinha ouvido nada semelhante, nem na Lisboa mais snobe.

«Sente-se aí, dê a pata, não seja mau, mostre como é bonito.» São exemplos de frases que vou escutando, reveladoras da fulgurante ascensão canídea na hierarquia urbana deste nosso século XXI. Por vezes atrevo-me pensar que anda tudo um bocado às avessas. Mas é capaz de ser defeito meu, por absoluta incapacidade de acompanhar a marcha imparável do progresso. 

Como qualquer de nós, vou-me adaptando. Há dias, pedi ao canário: «Canta para mim, Caruso.» Mas logo emendei: «Cante para mim.» E ele cantou.

A SIDA e o Covid

Paulo Sousa, 28.09.20

Há umas décadas atrás, o vírus de que se falava era o da SIDA. Fazia capas de jornais e foi tema para filmes e músicas. O seu surgimento e propagação colocou o mundo a falar de hábitos sexuais com uma ligeireza impensável até então. Se no início era uma doença de homossexuais, de prostitutas e de drogados, acabou por contagiar figuras públicas que não pertenciam a esses grupos. Com o tempo passou a ser apenas uma doença associada a comportamentos de risco, comportamentos esses que, estando bem identificados, excluía facilmente quem os evitasse. Além de contraceptivo, o preservativo passou a ser equipamento de segurança.

Ao longo dos anos em que a SIDA foi o maior flagelo sanitário do mundo ocidental, não faltaram teorias que a associaram esta doença a castigos diversos. Para os moralistas era um castigo contra depravações várias, os simpatizantes do bloco soviético esforçaram-se por interpretar a ausência de dados oriundos das ditaduras comunistas com que se identificavam, como sendo uma doença exclusiva dos capitalistas.

A banalização do preservativo, juntamente com os programas de troca de seringas, acabou por ser uma forma efectiva de, arredando os juízos morais da equação, travar a propagação da doença. Por motivos culturais, financeiros e também religiosos este tipo de medidas não foram adoptadas nos países mais pobres e isso explica também porque é que o epicentro da doença se deslocou para África.

Foi nos países ocidentais, onde mais agitadamente se viveu o espírito do flower power do anos 60, que a liberdade sexual, muito ou pouco promiscua, foi mais refreada. Sendo uma doença associada aos referidos comportamentos de risco, acabou por motivar mudanças de comportamentos.

Nessa perspectiva o Covid, sendo menos mortífero é muito mais abrangente e impactante. É a fragilidade prévia de cada indivíduo que o coloca, ou não, no grupo de risco. Por mais banais que sejam as suas rotinas, o contacto com o vírus pode ocorrer com a maior naturalidade durante actos banais da vida social. Por comparação, este novo vírus já está a ter, e terá ainda mais consequências nos comportamentos de todos nós, do que o vírus da SIDA.

Depois do debate sobre as fronteiras de linguagem despoletado aquando da proibição do piropo, depois dos excessos que resultaram do movimento MeToo, o Covid é sem dúvida mais um duro golpe na forma como duas pessoas se podem aproximar e se envolver emocional e fisicamente, com especial relevo para quem esteja à procura de um relacionamento. Como cidadão amante da liberdade acho que estas repetidas e cumulativas restrições são perturbadoras.

Até o governo britânico, que normalmente consegue manter alguma sobriedade e mostrar alguma sabedoria, estabeleceu há uns meses atrás limitações ao contacto físico entre casais com relacionamento estabelecido, casados inclusive, que não residam juntos. Desde há poucos dias, essas limitações foram aliviadas e desde então já se podem beijar e tocar. No entanto, avisam as autoridades, parceiros em estágio inicial de relacionamento devem tomar especial cuidado. As expressões usadas foram “test the strength of his relationship” e logo depois “Test really carefully your strength of feeling”.

As reacções não se fizeram esperar. Quando um governo ou regime se propõe a regular detalhes tão pessoais como estes da vida dos seus cidadãos, a pergunta que se coloca é onde fica a fronteira entre esses dois conceitos? O que distingue um relacionamento estabelecido de outro em estágio inicial? Quais os critérios que se devem usar para se saber a que categoria se pertence? Claro que a resposta acaba sempre por ser: Usem o bom-senso, o que sendo uma resposta aceitável mostra também que a regra é toda ela desnecessária, pois o bom-senso, e por definição, não carece de ser legislado.

Faltou ainda que alguém lhe perguntasse se é legal ter um caso de uma noite só, ou o que recomenda a quem aspira simplesmente a ter sexo recreativo com alguém conhecido, ou mesmo desconhecido. Será que a Deputy chief medical officer pode sugerir alguma posição específica que considere mais segura para o acto? E, além do preservativo, existe algum outro equipamento de segurança que recomende?

A actual pandemia é um cenário de sonho para quem esteja colocado na posição de decidir pelos outros e que goste de o fazer, assim como para quem não consegue tomar decisões e prefira ser instruído. Para os demais, os que têm a ilusão de ter controle sobre a própria vida, para esses, tudo isto é de facto um pesadelo.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.09.20

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Adolfo Mesquita Nunes: «Ao contrário do que por aí se escreve, não foi Passos Coelho o maior encurralado com a estratégia de Sócrates. Foi o Presidente da República. E se Passos foi encurralado porque não tem grandes opções, já o Presidente foi encurralado porque quis. Ou por sistemática nabice, que é pior.»

 

Ana Margarida Craveiro: «A culpa é da crise, a culpa é do PSD, não aumentamos impostos, o investimento público é necessário, afinal não aumentamos impostos excepto x, y e z, afinal não há TGV agora, daqui a seis meses há TGV, o mundo mudou outra vez. E a culpa é do Medina Carreira e do João Duque.»

 

João Carvalho: «Se há algo que me enfastia é esse tique nacional de tentar a todo o custo encontrar quem consiga estar quase tão mal quanto nós. Pior que isso, só esse tique popular de seguir alegremente os que tentam a todo o custo encontrar quem consiga estar quase tão mal quanto nós.»

 

Maria João Marques: «A melhor forma de lidarmos, e de não azedarmos, com os pecadilhos que vamos sofrendo e perpetrando, de aprendermos com a vida (ou com o somatório dos pecadilhos nas duas direcções), é perdoarmos e aceitarmos o perdão dos outros – o que não significa que sejamos sempre inteligentes ou magnânimos e coloquemos em prática o que sabemos mais eficaz para aliviar a consciência e até o humor (eu, pelo menos, ainda imperfeita na arte do perdão me confesso). Não espanta, assim, que ultrapassar a vivência de um crime violento passe por alguma forma, preferencialmente crescente, de perdão.»

 

Eu: «O Governo preferiu enganar os portugueses - e enganar-se a si próprio. O mesmo Governo que este ano aumentou impostos depois de ter baixado o IVA de 21% para 20% e congelou os vencimentos da função pública depois de ter aumentado os funcionários em 2,9%. Os bónus anteriores ocorreram a pensar no ano eleitoral de 2009 (em que houve eleições europeias, legislativas e autárquicas). Agora, felizmente para Sócrates, não há eleições legislativas à vista. O que talvez explique o anúncio já antecipado de novas subidas de impostos inscritos no Orçamento de Estado para 2011. Governar em ziguezague costuma dar nisto. Sendo as coisas o que são, quem se admira que o País esteja hoje no atoleiro em que se encontra?»

O blogue da semana

João Pedro Pimenta, 27.09.20

Nestes tempos estranhos em que os adeptos estão longe dos estádios e os jogos mais parecem treinos oficiais, gosto de relembrar os velhos momentos do desporto-rei, jogadores famosos e outros esquecidos, percursos que acompanhámos e de que não nos lembrávamos, clubes mais visíveis ou mais secundários levando atrás fãs inexcedíveis, da Argentina, da Croácia, da Turquia e de tantas outras paragens. Num arquivo com imensas histórias sobre o assunto é fácil encontrar tudo isso, recordando por exemplo o percurso de Bobby Robson depois de Portugal, com Mourinho e Figo, visitar as rivalidades urbanas expostas nos seus derbys ou recuperar os jogadores que se celebrizaram nos primeiros anos do século ( ou os dos últimos do milénio passado). E mais, muito mais, no incomparável mundo da bola.

Não é infelizmente em português, mas sabendo-se os rudimentos do anglo-saxónico é facilmente ultrapassável. Por isso, These Football Times é o blogue da semana.

 

Leituras

Pedro Correia, 27.09.20

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«A liberdade é assim. Só é bonita enquanto não a temos ou quando a perdemos. Como é jóia de custo e muito cobiçada, é preciso merecê-la e saber usá-la.»

Henrique Galvão, Kurika (1944), p. 60

Ed. Cotovia, 2008. Colecção Biblioteca Editores Independentes, n.º 50

Dois magníficos documentários

Pedro Correia, 27.09.20

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O documentarismo televisivo português atravessa uma das melhores fases de sempre. Comprovei isso nos últimos dias, vendo dois magníficos documentários - um no segundo canal da RTP, outro na SIC. Nenhum deles alvo de promoção especial pelas respectivas estações, algo que já não estranho: o espectador atento tem de descobrir pela sua própria intuição o que de melhor ali se oferece.

O da SIC, exibido faz hoje oito dias no âmbito da rubrica "Vida Selvagem", intitula-se Mar da Minha Terra - Almada Atlântica. Pede meças aos melhores filmes sobre fauna e flora do planeta exibidos há décadas em estações de referência no género, como a BBC. 

Com realização de Luís Quinta, credenciado fotógrafo da natureza, e competente locução de Augusto Seabra, este documentário mostra-nos o que muitos desconhecíamos: «Entre a Costa da Caparica e o Cabo Espichel existe um imenso mar de segredos onde criaturas belas e raras nadam, voam e encontram refúgio. Aqui, gigantes marinhos coexistem com seres minúsculos de micromundos. À fauna local juntam-se viajantes oceânicos.»

É, para muitos de nós, uma revelação: a escassos quilómetros do areal que tanta gente frequenta, com a arriba fóssil bem à vista, nadam tartarugas, golfinhos, roazes, tubarões azuis, baleias anãs e orcas. Filmados neste habitat que, em muitos casos, constitui já sua morada permanente. Comprovando assim a qualidade destas águas e destas praias, não por acaso distinguidas anos a fio com a bandeira azul. A natureza segue aqui o seu curso: toda uma revelação para quem só costuma ver as águas oceânicas portuguesas associadas a deprimentes notícias que dão conta da sua degradação com carácter irreversível. 

 

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O outro documentário, exibido a 16 de Setembro no canal estatal, intitula-se Exílio no Atlântico e revela-nos um episódio ignorado, dos muitos em que Portugal funcionou como refúgio nos dias sangrentos da II Guerra Mundial: cerca de dois mil habitantes de Gibraltar, evacuados do enclave-rochedo por decisão do comando militar britânico, encontraram asilo na Ilha da Madeira e ali permaneceram cinco anos, entre 1940 e 1945. Resguardados do conflito mais dilacerante que a História já conheceu.

É um filme assinado por Pedro Mesquita, que nos narra a história dessas famílias, amputadas do local de nascimento, da residência, da ligação umbilical a Londres e, em muitos casos, até de alguns parentes muito próximos, mobilizados em acções bélicas a centenas ou milhares de quilómetros de distância. Ao mesmo tempo ficamos a saber um pouco mais sobre as virtudes hospitaleiras dos portugueses e a vocação do nosso país - que tantas vezes menosprezamos sem motivo válido - para funcionar como porto de abrigo.

«Nós, na Madeira, pudemos considerar-nos muito afortunados. Porque vivemos uma vida normal, sem nenhuma preocupação com a guerra», lembra um desses refugiados - então menino, hoje um ancião grato à inesperada dádiva que recebeu na roleta da existência. É comovente ver como a marca da infância experimentada na Pérola do Atlântico, território neutral num mundo em chamas, ficou impressa para sempre naquelas crianças e adolescentes ainda capazes de falar e cantar em português. Uma lição de vida. E uma demonstração prática de como as circunstâncias fortuitas podem mudar-nos o destino. Dependemos sempre do acaso, o outro nome que atribuímos ao desconhecido.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 27.09.20

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Ana Vidal: «Acabo de saber que temos há dez anos o melhor mágico do mundo. Será que andamos todos distraídos? Esta é a melhor notícia dos últimos tempos! Proponho que se acabe com este desperdício de talento e que sejam entregues a este homem, de imediato, os destinos do país. De que estamos à espera? Isto já só lá vai com magia.»

 

Diogo Belford Henriques: «Tony Díaz, como é conhecido, foi condenado a vinte anos de prisão. Desde 2003 foi enclausurado. Tendo recusado usar o uniforme de presidiário, foi transferido para uma prisão a 500 km da sua família e colocado numa ala onde estavam prisioneiros tuberculosos. Contraído o bacilo, entre outras doenças, continuou de prisão em prisão até este ano. Fez parte dos reclusos libertados por Cuba e exilados em Espanha, sob mediação da Igreja Católica. Podia ter ficado quieto, calado, agradecido pela sua “sorte”. Nada disso. Em vez de agradecer, foi a Bruxelas denunciar a acção diplomática espanhola. Não pela sua libertação, que sendo justa não apaga a ilegalidade da prisão, mas pelo MNE de Madrid estar a tentar mudar a posição da União Europeia sobre Cuba. Espanha quer que a UE deixe de ter uma posição comum, frente à ditadura cubana. Que seja substituída por posições e acordos bilaterais. Isto, diz Espanha, ajudaria as reformas na ilha. “Pues que no!” - dizem os exilados, os presos, os que conhecem a realidade cubana. A posição comum de censura é a única que tem forçado as mudanças do regime dos irmãos Castro.»

 

João Carvalho: «A justiça há-de ser sempre necessária e precisa de funcionar para podermos acreditar que não será tudo eternamente mau, mas é essencial que a seriedade, a correcção, a verticalidade, a moral, a palavra, a responsabilidade e todos esses valores em torno da coisa pública regressem ao ponto de partida. A ética, enfim, não pode continuar a ser excepção, ou não há sociedade que resista muito mais.»

 

Eu: «O PSD não pode votar um orçamento que aumenta impostos. Porque essa foi uma garantia proclamada aos portugueses por Passos Coelho. Há quatro outras forças partidárias no Parlamento. Cabe a Sócrates negociar com elas, tal como Zapatero fez em Espanha, em vez de lançar ultimatos em tom de amuo. Vire-se para o CDS, à direita. Vire-se para o BE, PCP e Verdes, à esquerda. Aprenda a dialogar: tarda a perceber que está há um ano em minoria. Um ano exacto, por sinal.»

José Adelino Maltez: «O homem é o único animal que sabe que vai morrer»

Quem fala assim... (15)

Pedro Correia, 26.09.20

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«As estúpidas Constituições políticas que vamos tendo esquecem o primeiro dos direitos: o direito à felicidade»

 

Fala sem papas na língua: sugere a Maria da Fonte como novo hino nacional e sonha «destruir o sistema informático de todos os ministérios das Finanças». Politólogo, professor catedrático, comentador nos órgãos de informação, José Adelino Maltez respondeu sem hesitar a todas as perguntas que lhe fiz, já lá vão uns anos.

 

Tem medo de quê?

De ter medo.

Gostaria de viver num hotel?

Só durante um mês.

A sua bebida preferida?

Coca-Cola light.

Tem alguma pedra no sapato?

Quando tenho, uso sandálias.

Que número calça?

42. E meio.

Que livro anda a ler?

Já não tenho idade para ler. Ando a reler.

Tem muitos livros à cabeceira?

Tenho sempre dois. O Homem Revoltado, de Camus - ando a relê-lo há 35 anos, todos os dias. E A Cidadela, de Saint-Exupéry.

A sua personagem de ficção favorita?

Fernão Mendes Minto, que escreveu um dos melhores livros de sempre em Portugal. Ninguém sabe se aquilo é verdade ou mentira, mas também não interessa. Como dizia Armindo Monteiro, que foi ministro de Salazar, a História é o género literário mais próximo da ficção.

Rir é o melhor remédio?

Não há melhor remédio: é o máximo de racionalidade, como sublinhou Henri Bergson na sua tese de doutoramento. Se conseguir rir-me de mim mesmo, sou um homem superior.

Gosta mais de conduzir ou de ser conduzido?

Só gosto de conduzir se a máquina for dependente do meu corpo. Por isso gosto tanto de bicicleta.

É bom transgredir os limites?

O homem é o único animal que sabe que vai morrer. Por isso inventou Deus: para tentar transgredir os limites do mistério.

Qual é o seu prato favorito?

Leitãozinho da Bairrada.

Qual é o pecado capital que pratica com mais frequência?

O pecado clássico de Ícaro: querer voar com asas de cera. O orgulho de não reconhecer os limites.

A sua cor preferida?

Azul, como é evidente.

É evidente porquê?

É a síntese da cor do universo. O céu é azul.

Costuma cantar no duche?

Costumo assobiar.

E a música da sua vida?

Maria da Fonte.

Sugere alguma alteração ao hino nacional?

Sugiro o hino da Maria da Fonte.

Com que figura pública gostaria de jantar esta noite?

Com o Papa.

As aparências iludem?

As dos mantos diáfanos da fantasia que ocultam a verdade.

Qual é a peça de vestuário que prefere?

O meu chapeuzinho.

O seu maior sonho?

Amar e ser amado.

E o maior pesadelo?

O fanatismo e a ignorância.

O que o irrita profundamente?

A falta de sentido de humor dos gajos do estadão.

Qual a melhor forma de relaxar?

Cada um tem a sua. Para mim é estacionar à beira-mar. Ou à beira do Tejo.

O que faria se fosse milionário?

Contratava cem hackers e mandava-os destruir o sistema informático de todos os ministérios das Finanças.

Casamentos gay: de acordo?

Cada um deve fazer o que lhe apetecer. Mas não usurpem uma instituição que não foi feita para eles.

Uma mulher bonita?

Apetece-me parafrasear Fernando Pessoa: todas as mulheres bonitas são ridículas, mas mais ridículo ainda é não haver mulheres bonitas.

Acredita no paraíso?

O professor Sérgio Buarque de Holanda já dizia que os portugueses gostam de procurar o paraíso na Terra. A procura do paraíso, aqui e agora, é o que mais nos falta. As estúpidas Constituições políticas que vamos tendo esquecem o primeiro dos direitos: o direito à felicidade.

Tem um lema?

Viver como penso sem pensar como vivo.

 

Entrevista publicada no Diário de Notícias (19 de Abril de 2008)

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