A Inquisição Portuguesa foi fundada em 1536 e durou até 1821. O último executado terá sido o jesuíta Malagrida, em 1761, sob pretextos religiosos mas na realidade por ser opositor ao bom do Marquês de Pombal, que tinha uma inclinação muito marcada para fazer equivaler os seus inimigos aos da Coroa, e a todos dispensar castigos espectaculares, que já na altura eram, nos países civilizacionalmente mais adiantados, considerados bárbaros (Voltaire era vivo, e aliás escreveu sobre a execução do padre italiano; e Edward Gibbon iria, pouco depois, publicar o seu Declínio e Queda, uma história magistral onde, lateralmente, a Igreja Católica saía mal ferida).
Portugal não foi pioneiro na criação do hoje execrado organismo, e aliás a sua mão foi de início forçada, à boleia de um contrato de casamento no complicado xadrez político da época; e nem a Inquisição se distinguia, nos seus processos, da barbárie das instituições penais do tempo, nem era compreensível como um poder independente do do Estado, isto é, do Rei, nem a rasoira do pensamento único era um exclusivo dos países católicos.
A tolerância teria de esperar muito tempo até ter um módico de consagração na lei e nos costumes. E convém ter presente que ela não é natural: a reacção instintiva perante a diferença é a hostilidade, porque temos isso nos genes; e a dos poderes, ontem e hoje, é a da conservação do status quo, e portanto a tentativa da eliminação do inconformismo, por ser uma ameaça potencial.
Pergunta-se: quando falamos da Inquisição estamos a falar do passado? Aparentemente, sim: ninguém corre o risco de ser torturado e queimado por causa das suas opiniões, muito menos religiosas. E o pecado de invocar o nome de Deus em vão passou de moda, porque não se invoca em caso algum, salvo como bordão de linguagem.
Mas deuses há muitos, tantos pelo menos como os modernos crimes, e estes são a ofensa à Igualdade (entre os géneros ꟷ em si mesma, a palavra, todo um programa ꟷ ou material, entre os cidadãos), à Identidade de grupo, ao direito à Indignação, o Sexismo e ser professo do Fascismo, seja lá isso o que for, antes de um extenso etc.
O desrespeito por estes deuses pode determinar hoje, nesses faróis de civilização que são os países anglo-saxónicos, a perda do emprego, em particular nos meios onde a liberdade de opinião é mais necessária, isto é, nas universidades. E, sendo as coisas como são, a mancha demoníaca e asquerosa da intolerância e do abuso chegaria cá se ainda aqui não estivesse.
Mas está, e tem nome – é a Autoridade Tributária. Trata-se de uma organização cujos membros são recompensados, como eram os familiares do Santo Ofício, pelas exacções que praticam; que ignora reiteradamente decisões judiciais, insistindo em práticas já censuradas por decisões anteriores; cujas decisões só podem ser contestadas por quem tiver meios para pagar, primeiro, e esperar, depois; e cujo Grande-Inquisidor, invariavelmente um sinistro frade menor que é ou julga não ser um socialista, é apreciado não pelo respeito que impõe que os serviços (isto é, os esbirros) tenham pelos contribuintes, mas pelos volumes de receita que consegue extorquir.
Esta história é exemplar: A Segurança Social cometeu um erro que nada tem de inocente (os erros da Segurança Social consistem invariavelmente em não pagar o que deve, não o fazer tempestivamente, ou ser impermeável a críticas e inacessível a reclamações – características que partilha com boa parte da Administração); o Fisco prejudicou os contribuintes porque considerou, no ano em que foram recebidas, prestações que, por serem devidas em anos anteriores, deveriam ser imputadas aos exercícios a que respeitam; os contribuintes que reclamaram viram as suas pretensões indeferidas sob pretextos capciosos (a não retroactividade das leis existe para defender os cidadãos, não o Estado); e a Assembleia da República interveio desastradamente, obrigando não a SS e a AT a entenderem-se para corrigir o torto, com juros e pedido de desculpas, mas o desgraçado do pensionista a requerer a correcção, coisa que muitos não saberão fazer, quase todos a terem de pedir ajuda, tudo dependente do prazo de 30 dias que foi arbitrariamente fixado, e sem nenhuma garantia de que aos abusos anteriores não se somem outros, incluindo o de não reembolsar.
Por que razão a Segurança Social não pagou a tempo? Quem foi responsável? Quem decidiu? Quem calou? Quem, na AT, achou bem refugiar-se em interpretações legais que ofendem o senso e a justiça?
Dito de outro modo: quem são os patifes? Não sabemos. Nem, aparentemente, os jornalistas querem saber, ou os cidadãos perguntar. Não ignoramos porém que na AT há um responsável político, que me dizem ser pessoa estimável, e na Segurança Social outro, a respeito do qual a ninguém, salvo algum fanático socialista, ocorre dizer semelhante coisa.
Não são, é claro, nada estimáveis, e ambos deveriam ser demitidos, a par de uma severa razia nos serviços.
Não acontecerá porque de um lado estão uns pobres diabos pensionistas; e do outro o Estado socialista, o principal deus moderno que até os mesmos pensionistas devem adorar.