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Delito de Opinião

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 31.08.20

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Livro cincoPor Amor à Língua, de Manuel Monteiro

Edição Objectiva, 2018

229 páginas

 

Os erros de escrita – não corrigidos nem sancionados – tornaram-se de uso corrente, até em publicações outrora consideradas de referência. E são cada vez mais raros aqueles que se dão ao incómodo de censurá-los. Desde logo por absoluto desconhecimento da norma, num tempo em que a ignorância impera e até se atreve a ditar sentenças.

Este livro rema contra a corrente, precisamente Por Amor à Língua. Didáctico, sem nunca ser maçador. Acutilante, sem ser arrogante ou presumido. Muita gente deveria tê-lo como obra de cabeceira. Para evitar lapsos lexicais, sintácticos e ortográficos, cada vez mais frequentes.

Manuel Monteiro – escritor e formador na área da revisão de textos – foi anotando, no exercício da sua actividade profissional, algumas falhas mais frequentes, que aqui anota em benefício de todos. O esbanjamento de adjectivos, que devem ser usados com parcimónia. O desgaste do verbo ser – como se não existissem outros. A invasão de pleonasmos (“sorriso nos lábios”, “elo de ligação”, “surpresa inesperada”). O uso e abuso de lugares-comuns. A proliferação de cacofonias (“boca dela”, “fica agora”, “uma mão”). A desmedida multiplicação de pronomes pessoais, possessivos e relativos. O emprego até à náusea de pontos de exclamação e reticências («Um ponto de exclamação é como rires da tua piada», alertava Scott Fitzgerald).

Preservar este secular idioma passa pela revalorização de vocábulos antigos e pelo combate ao portinglês que nos invade, mesmo quando surge disfarçado de português (é o caso do anglicismo “evento”, hoje omnipresente). E por darmos luta sem tréguas ao chamado “acordo ortográfico”, que decretou a separação de famílias lexicais (lácteo mas laticínioepilético mas epilepsiatato mas táctil), inventou termos aberrantes (como corréu em vez de co-réu ou conavegador em vez de co-navegador) e substituiu a regra pelo arbítrio (uma trapalhada em que materno-infantil coexiste com infantojuvenilbissetriz com trissectrizcor-de-rosa com cor de laranja).

«Evitamos assim que a nossa escrita se junte à massa indistinta de fotocópias de fotocópias de fotocópias», preservando a memória das palavras e resistindo à uniformização, conclui Manuel Monteiro. É uma boa causa: a língua portuguesa merece.

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Sugestão 5 de 2016:

Telex de Cuba, de Rachel Kushner (Relógio d' Água)

Sugestão 5 de 2017:

Coração de Cão, de Mikhail Bulgákov (Alêtheia)

Sugestão 5 de 2018:

Octaedro, de Julio Cortázar (Cavalo de Ferro)

Sugestão 5 de 2019:

Júlio de Melo Fogaça, de Adelino Cunha (Desassossego)

A História devida de um dos nossos leitores

Paulo Sousa, 31.08.20

Na sequência do meu texto de há dias, o nosso leitor que se indetifica por o cunhado enviou num comentário a sua História Devida. O relato e o episódio merece um destaque que não teria se ficasse apenas como um comentário. Por isso aqui fica ela, com o devido agradecimento ao cunhado pela sua partilha.
Um abraço

"Dois anos depois do meu pai nos ter deixado naquela pequenina casa daquela ainda mais pequenina aldeia incrustada no sopé da grande serra; à minha mãe, a mim com quatro anos e às minhas irmãs, uma com cinco e outra em ventre materno e ter abalado em demanda de terras africanas onde se constava que era só abanar a árvore, embarcávamos no “Mouzinho de Albuquerque” numa viagem que juntaria a família em Angola, onde, tudo o indiciava, o meu pai soubera com arte e proveito abanar devidamente a árvore.

O navio era velho e pequeno, navegava devagar e às vezes até parava. Essa seria mesmo a sua última viagem. A minha mãe enjoou logo ao início e a minha irmã mais nova, essa embarcou já doente mercê de uma malga de azeitonas galegas que a tia Rosa lhe dera, pitéu a que a miúda não resistia. Esteve mesmo em risco de vida, mas escapou. De modo que com essas duas de cama, foi a minha irmãzinha mais velha com os seus responsáveis sete aninhos a ter de assumir a responsabilidade por todos, mais concretamente por aquelas duas inúteis, que eu sabia bem tomar conta de mim e não dava trabalho a ninguém. Tinha liberdade, por mim estava tudo bem e não carecia de mais nada. Assim, corria o barco de popa à proa, à minha maneira sem ser minimamente molestado com parvas recomendações disto e daquilo, e ao contrário da minha mãe e irmãs que se lamentavam que aquilo nunca mais acabava, só pedia que tivessem razão porque não me incomodava nada viver o resto da minha vida lá dentro.

Ia também nessa viagem um contingente militar, desses que o Governo mantinha nas colónias, com quem no primeiro minuto travei conhecimento e por quem ainda mais rapidamente fui adoptado como mascote. Andava com eles para todo o lado, comia com eles, via-os beber vinho pelos garrafões, jogarem às cartas e cultivar-me-ia a preceito na sublime retórica do palavrão. Enfim, a minha felicidade era plena e só me queria ver grande depressa para envergar aquela bela farda de caqui amarelo e combater em todas as guerras deste mundo, porque guerra foi a palavra mais ouvida na minha infância. Nasci em 40 e estava-se agora em 47.

Declinava um certo dia quando eu me passeava por ali, frustrado por não ver ninguém, quando reparo num militar que de costas para mim debruçado sobre a amurada contemplava o mar, perdendo-se sabe-se lá em que estranhas divagações. Era um homem grande, ainda o estou a ver. Corri para ele, contentíssimo pelo ocaso da minha solidão ter chegado ao fim, e ele quando me viu pareceu ficar muito surpreendido. Baixou-se ao meu nível e vi-o olhar receoso para todas as direcções. Ninguém nas imediações. Então soergueu-se, comigo segurado pelos braços, estendeu os dele comigo nas suas mãos, colocou-me fora o barco e disse-me numa voz rouca e segredada, que ainda hoje estremeço quando a recordo:

- E se eu te deixasse cair?

Não soube o que senti. Olhava para baixo, para o que me parecia um abismo interminável, e na medida em que a escuridão que já caíra me permitia, via água ondulante lá em baixo. Então algo explodiu na minha cabeça pedindo-me para não gritar. Depois ele jogou comigo. Largava-me e apanhava-me, largava-me e apanhava-me. Por vezes jogava-me mais acima, deixava-me cair e apanhava-me no último instante. Subitamente soube que me ia deixar cair. Vi-lhe nos olhos a decisão, até lhe senti o afrouxar das mãos. E exactamente nesse momento, um barulho fez-se ouvir mais acima, que se foi gradualmente tornando mais distinto à medida que se aproximava. Dois marinheiros vinham por ali conversando. Provavelmente com medo que eu gritasse ao ser largado, recolheu-me rapidamente, pousou-me atabalhoadamente sobre o tombadilho e fugiu a correr para a parte oposta.

Nos quatro dias restantes para término da viagem nunca mais saí do nosso cubículo, pomposamente alcunhado de camarote. Tinha feito há pouco seis anos. Todas estranharam a minha súbita dedicação familiar, mas nunca souberam nada, nem nunca saberiam. Mas soube eu, e saberia tudo. A partir desse episódio nunca mais esqueceria nada e recordo todos os factos da minha vida até à data de hoje. Todos! até o mais insignificante."

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 31.08.20

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João Campos: «O novo álbum dos Arcade Fire, The Suburbs, é muito bom. Sem ironias - é mesmo muito bom. Como disse lá no jardim há coisa de um mês, estranhei à primeira, rendi-me à segunda. Não o considero inferior ao Neon Bible. Dia 18 de Novembro comprovamos ao vivo. De resto, tenho um palpite: os Arcade Fire vão ser a próxima banda a sofrer o "síndrome Muse".»

 

João Carvalho: «Este post marca o dia em que a Câmara Municipal de Lisboa fechou de vez o Museu Fernando Pessa do Automóvel Antigo, iniciado com a oferta do saudoso Fernando Pessa do seu velho Rover 2000, que contou com a contribuição de alguns amigos, que a Câmara de Lisboa assumiu (primeiro com João Soares e depois com Santana Lopes) e ao qual nunca chegou a dar verdadeira dignidade. Não passou de um nado-morto adiado.»

 

João Távora: «É irónico como nesta sociedade que venera o corpo e as aparências não haja parábola mais eficaz sobre as virtudes do mérito e do prazer diferido do que a da forma física. Tal como na escola só se aprende com estudo e empenho, tal como a riqueza só é criada com esforço e trabalho, a partir duma certa idade, a forma física depende fatalmente da austeridade alimentar e de muito, muito, exercício físico. Quem se preocupa com o implacável efeito da gravidade nos seus músculos e outros apêndices, está condenado a trabalhar e suar o corpinho, semana após semana, mês após mês, ano após ano, com muita perseverança e desapego, que o resto vem com as endorfinas e mais algum desapego; afinal, o mais importante na vida nem sequer é isso!»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Como é de imaginar, Agosto continua a ser o momento mais aconselhado para serem publicadas alterações a diplomas tão relevantes como a lei das uniões de facto, com implicações no Código Civil, ou a 19ª ao Código de Processo Penal. Sim, leram bem, 19ª. As editoras de livros jurídicos continuam a esfregar as mãos de contente.»

 

Eu: «Qual é a diferença entre um vilão e um herói num mundo onde todas as barreiras morais foram transpostas e as tradicionais fronteiras entre o bem e o mal estão diluídas? Esta é a pergunta-chave de Taxi Driver, um filme que não cessa de nos perseguir noite fora, anos fora. Vê-lo uma vez é vê-lo para sempre: jamais nos libertaremos daquela atmosfera viscosa de Nova Iorque, daquelas ruas onde se exibe a devassidão, daqueles vidros embaciados que nos transmitem a imagem de uma cidade que é a antítese perfeita de um bilhete postal.»

Blogue da semana

Alexandre Guerra, 30.08.20

O Net Politics é o blogue do think tank Council on Foreign Relations que se dedica exclusivamente à análise do impacto das novas tecnologias de informação e comunicação em matéria de segurança e privacidade, quer ao nível da sociedade civil, quer ao nível do Estado e Relações Internacionais. O blogue é actualizado regularmente por especialistas de renome e pode ser feita a subscrição das notificações de novos posts. Dos temas e assuntos mais estratégicos às questões mais quotidianas, este blogue é uma boa e útil ferramenta de informação.

O "Público", Sousa e a Feira do Livro

jpt, 30.08.20

Uma cidadã, cuja aparência associa àqueles que os costumes lisboetas do lumpen-jornalístico sempre cuidam de desvalorizar intitulando-os como "popular" ou "mulher/homem", invectivou o presidente Sousa na Feira do Livro. Teve o surpreendente efeito de o fazer apelar ao voto anti-PS, coisa nunca ouvida até agora.

O interessante da cena é o compungido editorial do director do "Público", até indignado por assim se destituirem os políticos "da dignidade dos seus cargos e do estatuto das suas funções", dizendo o episódio um "prenúncio do que aí vem" de desvalorização dos políticos, não deixando de melifluamente aventar que se tratou "apenas [de um]a peça de uma engrenagem montada por um partido populista" e invectivando que se "perturbe a agenda do chefe de Estado", e que tal "tenha direito à glória nas televisões e mereça ainda aplauso de alguns que, dizendo-se defensores da democracia, aplaudem incidentes que a degradam".

É um editorial canino, aquilo da célebre "voz do dono" e espelha bem o que é este jornal, o mainstream PS e os acólitos (ex-)Livre. Apenas como ilustração deste seguidismo aqui deixo um filme de 2012, breve trecho da pantomina acontecida quando o PM Passos Coelho foi à Feira do Livro. Nem este plumitivo gemeu nem os seus adeptos leitores se indignaram ou sentiram o prenúncio do apoucamento democrático. Gente vil, nada mais do que isso.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 30.08.20

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Livro quatro: Que Nós Estamos Aqui, de João Tordo

Edição Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020

67 páginas

 

Fala-se pouco ou nada disto por cá. Dos Alcoólicos Anónimos (AA), movimento iniciado em 1935 nos EUA e hoje com implantação em 175 países. Um deles é Portugal.

João Tordo, romancista, surge aqui como repórter. Bem preparado, bem municiado dos testemunhos concretos de pessoas que largaram tudo para saciar o vício até à última gota. Neste caso não apenas o álcool: também drogas diversas, que as levaram aos Narcóticos Anónimos, similar à pioneira.

Com técnica de ficcionista adaptada à reportagem, Tordo alterna esta impressionante sucessão de depoimentos com a descrição do percurso nada linear do fundador dos AA, Bill Wilson, cujo nome – em estrito respeito à regra do anonimato ali vigente – só foi tornado público quando morreu, em Janeiro de 1971, com 75 anos.

Wilson concebeu um «percurso espiritual» em 12 passos para os alcoólicos em recuperação. Na certeza antecipada de se tratar de uma patologia crónica. Só rotulada assim pela Organização Mundial de Saúde a partir dos anos 60.

Eis o primeiro passo: «Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que as nossas vidas se tinham tornado ingovernáveis.» A partilha do problema com outros, em reuniões periódicas e muito discretas, tornou-se método terapêutico. Baseado no lema «viver um dia de cada vez». E reconhecendo o alcoolismo «como doença do corpo e do espírito, e não fracasso moral».

Milhões de alcoólicos (entre 8% e 12% da população mundial) passaram a ter a certeza de que alguém, algures, lhes daria acolhimento. “Desistir” tornou-se palavra proibida.

Portugal, nesta matéria, está longe do drama dos EUA, onde morrem cem mil pessoas por ano devido ao alcoolismo. Mas, entre nós, «a prevalência do consumo de qualquer bebida alcoólica [é] das mais elevadas a nível europeu – 88% ao longo da vida, 83% nos últimos 12 meses».

Em boa hora João Tordo lança o alerta. Sem confundir esclarecimento sereno com sermão. Esta obra confirma: um viciado em álcool ou drogas tem hoje a certeza de encontrar uma porta aberta – e alguém a esperar ali por ele. Na esperança sempre renovada de que o adicto de ontem possa estar amanhã a receber outros no limiar da mesma porta.

 

Sugestão 4 de 2016:

Páginas de Melancolia e Contentamento, de António Sousa Homem (Bertrand)

Sugestão 4 de 2017:

Os Filipes, de António Borges Coelho (Caminho)

Sugestão 4 de 2018:

Não Respire, de Pedro Rolo Duarte (Manuscrito)

Sugestão 4 de 2019:

Dois Países, um Sistema, de Rui Ramos e outros (D. Quixote)

Tão boas praias aqui tão perto

Pedro Correia, 30.08.20

Algumas das mais belas praias do País encontram-se também entre as mais desconhecidas dos portugueses. Situam-se no Barlavento algarvio, entre Lagos e Sagres, e (salvo honrosas excepções) quase nunca ouvimos falar delas.

Basta reparar nos telediários: cada vez que algum alude ao Algarve, em geral e abstracto, só nos mostra imagens de Quarteira, Vilamoura ou Albufeira. É preciso ser muito ignorante para presumir que a nossa região mais meridional pode sentir-se representada por aquelas povoações.

 

Confesso-me cada vez mais rendido aos encantos desta zona costeira, que tenho percorrido com atenção e vagar nesta segunda quinzena de Agosto.

Aproveito para partilhar convosco alguns postais (fotos minhas) destas praias que merecem ser visitadas. Cada qual com o seu charme, cada qual com o seu encanto.

Se ainda não as conhecem, visitem-nas assim que puderem. Espero que gostem.

 

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Praia Dona Ana (Lagos)

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Praia de Porto de Mós (Lagos)

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Praia de Burgau (Vila do Bispo)

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Praia de Cabanas Velhas (Vila do Bispo)

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Praia da Salema (Vila do Bispo)

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Praia do Zavial (Vila do Bispo)

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Praia da Ingrina (Vila do Bispo)

O comentário da semana

Pedro Correia, 30.08.20

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Cena do filme The Naked Gun (1988)

 

«Máscara em espaços abertos? Para além de ridículo é ineficaz.

Por isso a Preservita, empresa virtual que até agora fabricava preservativos de lã e cachecóis para os ditos cujos, destinados a resguardar do frio as partes pudendas de namorados machos frequentadores de jardins em pleno Inverno, se propõe agora fabricar preservativos de latex gigantes, quais burqas antivirais dos tempos modernos.

Tendo já efectuado registo provisório de patente, a empresa destaca a total protecção que um verdadeiro meio não-poroso garante quando desenrolado pela cabeça abaixo e estendendo-se até aos pés.

De acordo com os mais recentes estudos de mercado, a empresa espera vender milhões de unidades deste inovador dispositivo de protecção. Inúmeros governos manifestaram já intenção de adquirir quantidades substanciais do produto para uso obrigatório de todos os políticos, jornalistas e otários avulso, afinal os únicos merecedores de tão elevada protecção.»

 

Do nosso leitor Elvimonte. A propósito deste meu texto.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.08.20

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José Simões: «Nós é que mandamos no Estado, assim uma espécie de Luís XIV alargado e democratizado: o Estado somos nós. E esta é a pior frente de incêndio, a da submissão e do medo respeitoso, e que consome há muuuuuitos anos  a alma deste povo com várias frentes conjugadas numa só, e que aproveita aqueles que a pretexto da rentabilização económica e da creação (assim mesmo, com “e”) de riqueza e da segurança das populações e das aldeias ensaiam um fast forward a uma espécie de feudalismo século XXI.»

 

Teresa Ribeiro: «Armado em Deus, o tarado do Kevin Spacey decide punir, um a um, os sete pecados mortais. Mas neste enredo macabro ele também não se exclui e dispõe-se a pagar por isso. Qual o pecado de que se acusa?»

 

Eu: «- Esta é a sua primeira entrevista como candidato à Presidência. Pretendemos saber um pouco mais a seu respeito.

- Boa noite. Portanto os trabalhadores portanto explorados portanto por este governo de direita. Nós defendemos...

- Não pretendíamos falar muito de política. Para já, só queríamos saber um pouco de si.

- Defendemos a mudança da política portanto contra o governo de direita portanto que explora os trabalhadores. (...)

- Não lê romances?

- O PS é igual ao PSD portanto e ao CDS na política de direita portanto contra os trabalhadores...

- Desculpe, não me respondeu. Costuma ler romances?

- Hum... Já li romances de José Saramago e Álvaro Cunhal nós pretendemos...

- Mas só lê autores comunistas?

- Uma candidatura portanto que esteja mesmo ao serviço dos trabalhadores...

- Desculpe, mas não me respondeu. Só lê autores que sejam comunistas?

- Hum... Também já li portanto autores de outras tendências mas nós portanto lançámos esta candidatura para que o povo português portanto esteja representado na Presidência da República...

- Para finalizar: a Coreia do Norte é uma democracia?

- Os trabalhadores... contra o governo de direita... nós... portanto... portanto... portanto... portanto...»

Porque silenciam as vítimas

Cristina Torrão, 29.08.20

Um padre brasileiro culpou a menina de dez anos, grávida de um tio, pelos abusos sexuais de que fora vítima desde os seis anos. O religioso escreveu em sua conta do Facebook que a criança “gosta de dar” e não é “inocente”, por ter aturado os abusos durante quatro anos.

Na verdade, muita gente culpa as vítimas de abusos sexuais precisamente por elas silenciarem o crime. Guardei um artigo publicado, no passado dia 31 de Maio, no Jornal Católico da diocese alemã de Hildesheim, por ele se debruçar precisamente sobre esta problemática. E, por ser uma questão que me revolta, devido à injustiça a ela associada, resolvi traduzi-lo. Foi escrito em colaboração com uma psicóloga de Hildesheim que se especializou em casos de violência contra crianças e jovens (incluindo o abuso sexual, também uma forma de violência), e fez parte do 3º número de uma revista dedicada à prevenção deste tipo de crimes. Essa revista é gratuitamente distribuída pelas paróquias, escolas e instituições com crianças e jovens a seu cargo.

Tradução:

«São vários os motivos que levam as pessoas a silenciarem crimes de violência sexual, ou a fazerem-no apenas passados muitos anos, ou, ainda, a fazerem-no de uma maneira que, à primeira vista, não combina com a intensidade do trauma. “Muitas falam tão friamente e com tanta distanciação sobre tais vivências, que se diria ter acontecido a outra pessoa”, diz a psicóloga Beate Neumann-Kumm. “Isto acontece porque elas afastam, de si próprias, as emoções relacionadas com a experiência traumática”.

No seu consultório de Hildesheim, a psicóloga já presenciou muitas formas de distanciamento. “Muitas vezes, as vítimas têm poucas recordações do acto, por, à altura, serem pequenas demais para avaliarem da sua realidade”. Falhas de memória, devido a experiências traumáticas, também são comuns e podem resumir-se a um curto espaço de tempo, ou abrangerem vários anos. “A psique”, diz Beate Neumann-Kumm, “apaga a luz, por assim dizer, respeitante àquela fase da vida”. Em contrapartida, procura uma compensação. “Quem não se lembra do que aconteceu, não consegue ocupar-se do trauma, a fim de o tentar superar. No entanto, o trauma, em si, provocado pela sensação de impotência e de desamparo, não desaparece, e a pessoa queixa-se frequentemente de vários sintomas, que podem passar por dores, ataques de medo ou pânico, depressão, etc.”. Por último, diz a psicóloga, existem aqueles que se lembram, mas que nada dizem, nem nunca se queixam. São os que, simplesmente, silenciam. “Evitam qualquer contacto com o assunto, apesar de o sofrimento ser enorme”.

Vergonha e sentimentos de culpa são os grandes responsáveis pelo silêncio. As estratégias do criminoso, meter medo e chantagens, atormentam a vítima. “As crianças enfrentam terríveis conflitos de lealdade, quando o, ou os, criminoso/s pertencem ao meio familiar. Elas receiam as consequências sociais, por exemplo, que a família se desmembre por sua causa. Receiam que sejam elas, no fim, as culpadas”. Também a credibilidade da criança é posta em causa. “Antigamente, no tempo da educação dura e violenta, raramente se acreditava numa criança, quando ela contava algo que os adultos consideravam impossível de acontecer, os chamados temas-tabu”. Neste aspecto, infelizmente, quase nada se modificou, apesar de, desde meados do século XX, se ter passado a considerar os Direitos da Criança. “Em casos destes, o sofrimento das crianças é ainda maior, são castigadas por mentirem, são isoladas e privadas de carinho”. Uma criança que se resolva a abrir com alguém próximo, a mãe, por exemplo, ou a avó, e esta duvide do seu relato, ou até a censure e castigue, fecha-se de vez. Beate Neumann-Kumm considera este um dos grandes motivos para o silêncio. “Normalmente, não há testemunhas dos abusos praticados. Então, a situação da vítima piora dramaticamente”. A censura é mais um trauma para a criança.

Mas também uma criança que silencie, fala à sua maneira, considera a psicóloga. Através de notória agressividade, por exemplo. Essa agressividade pode ser exercida sobre terceiros, mas também sobre elas próprias. “Essas crianças desenvolvem preferência por situações perigosas, ou roem as unhas, ou mutilam-se com lâminas e/ou facas; em jovens, sentem-se atraídos por drogas ou desenvolvem tendências suicidas”.

O debate sobre este assunto é importante para quebrar o silêncio [escusado será dizer que o contrário, ou seja, fazer de conta de que o problema não existe, contribui para que as vítimas se fechem ainda mais]. Quando a população se solidariza com as vítimas e se reclamam mudanças na lei, com castigos mais eficazes para os criminosos, é mais fácil para elas tomarem a iniciativa e revelarem o segredo que guardam dentro de si. Mesmo assim, trata-se de um processo muito custoso. “O processo de tomada de consciência da sua condição de vítima de um crime, permitir que suba à superfície aquilo que, durante anos, ou décadas, foi recalcado, é muito doloroso. Quando se faz luz nesse canto escuro da alma, é bom e importante saber que não se está sozinho”».

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 29.08.20

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Livro três: ABC da Tradução, de Marco Neves

Edição Guerra & Paz, 2020

106 páginas

 

Há muitas ideias feitas sobre a tradução – quase todas profundamente erradas. Não falta quem acredite ser tarefa ao alcance de qualquer pessoa versada num idioma estrangeiro, munida da primeira ferramenta digital que lhe apareça sob a designação de dicionário. E há até quem julgue tratar-se de ofício condenado à extinção face à galopante progressão desse esperanto dos nossos dias chamado inglês.

Marco Neves – tradutor, revisor, professor de Prática da Tradução na Universidade Nova de Lisboa – escreveu este livro para desfazer tais equívocos. Ao contrário do que muitos supõem, nunca a tradução foi tão procurada. Para os mais diversos efeitos: legislação, investimento empresarial, consumo, lazer. «Todos usamos traduções todos os dias (talvez mesmo todas as horas).»

Com linguagem escorreita e acessível, o autor desmonta outros mitos: o de que existem palavras ou expressões intraduzíveis (incluindo a nossa saudade); o de que traduzir é substituir palavras de uma língua para outra, quando o que se exige é «recriar frases e textos»; o de que legendar um filme se faz num ápice (pelo contrário, «demora muito mais do que a duração do próprio filme»).

É útil sabermos estas coisas. Para darmos valor a uma actividade profissional quase sempre invisível, exercida na solidão e muitas vezes no anonimato, mesmo tendo sido praticada por nomes ilustres. Como Eça, que traduziu As Minas de Salomão, de H. Rider Haggard, ou Blaise Cendrars, que popularizou em França - numa tradução ainda hoje elogiada - A Selva, de Ferreira de Castro.

Vale o esforço? Claro que sim. A nossa vida seria impensável sem estes «operários das palavras» que traduzem «livros, séries, documentários, notificações, manuais, artigos científicos, programas de computador, aplicações de telemóvel, sistemas de GPS, mensagens encontradas pela Polícia Judiciária». Fica a sugestão: visitemos os bastidores desta actividade intelectual que verte para outro idioma tudo quanto possamos imaginar – de um manual de instruções a um relatório secreto, de um romance policial a um catálogo de máquinas de café. Cientes de que «a tradução é mesmo a arte da aproximação entre culturas». E desengane-se quem pensar que é fácil. Porque não é.

 

Sugestão 3 de 2016:

Política, de David Runciman (Objectiva)

Sugestão 3 de 2017:

A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade (Companhia das Letras)

Sugestão 3 de 2018:

Cebola Crua com Sal e Broa, de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor)

Sugestão 3 de 2019:

Lá Fora, de Pedro Mexia (Tinta da China)

Vítor Espadinha: «Sonho com muitas vezes com a Jennifer López e a Sharon Stone»

Quem fala assim... (11)

Pedro Correia, 29.08.20

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«O pecado capital que pratico com mais frequência? Cobiçar a mulher do próximo»

 

Assume-se como galã à moda antiga, sem deixar de distribuir piropos a mulheres várias, como esta entrevista comprova. De improviso, ao telefone, e com gargalhadas à mistura. Actor com muita rodagem, o intérprete do sucesso discográfico Recordar é Viver não se atrapalha com as perguntas. É ler para crer.

 

Tem medo de quê?

Da falta de saúde.

Gostaria de viver num hotel?

Não. Já vivi em muitos hotéis, quando andava em digressões, e não aguento.

A sua bebida preferida?

Um vinho de qualidade.

Tem alguma pedra no sapato?

Tenho. Estava com a minha carreira teatral lançada em Londres quando um dia acordei, li o Evening Standard e descobri uma fotografia de uns soldados em cima de blindados e com flores nas espingardas. Fiz logo as malas e voltei para Portugal. Estou muito arrependido.

A propósito: que número calça?

41.

Que livro anda a ler?

Ando a ler um livro do José Luís Peixoto. Chamado Livro, precisamente.

A sua personagem de ficção favorita?

As personagens dos filmes com Jean Gabin.

Rir é o melhor remédio?

É um dos melhores.

Chorar não é?

Chorar, não. A não ser por fingimento, quando representamos um papel teatral ou na televisão. Os bons caracterizadores encostam-nos um produto à cara, com cheiro a mentol, e durante a meia hora seguinte não paramos de chorar.

Lembra-se da última vez em que chorou?

Lembro. Foi com mentol, numa telenovela chamada Podia Acabar o Mundo, em que interpretava o papel de um vagabundo que era também fotógrafo.

Gosta mais de conduzir ou de ser conduzido?

Se fosse muito rico, tinha carro com motorista e seguia no banco de trás, muito confortável, a ler o Financial Times. Como não sou rico, adoro conduzir.

É bom transgredir os limites?

Depende dos limites. E também depende daquilo de que falamos. Às vezes quanto mais se abusa melhor sabe. Outras coisas não têm graça nenhuma - e quando se abusa delas muito menos.

O seu prato favorito?

Favas com chouriço.

Qual é o pecado capital que pratica com mais frequência?

Cobiçar a mulher do próximo.

A sua cor preferida?

Depende. No futebol é o verde. Na paisagem, o azul é muito bonito. Numa mulher, o preto é lindíssimo. As cores dependem muito do contexto em que se situam.

Costuma cantar no duche?

Não. No duche costumo pensar.

E a música da sua vida?

Tenho várias. Quase todas do Aznavour. She, por exemplo.

Sugere alguma alteração ao hino nacional?

Sim. Contra os canhões ninguém marcha, a menos que seja suicida. O autor não estava muito inspirado quando compôs a letra.

Parece-lhe bem a actual bandeira nacional?

Enquanto não tiver lá a cara do Sócrates, aguenta-se bem. Só falta vê-lo aparecer no lugar da esfera armilar.

Com que figura pública gostaria de jantar esta noite?

Com a Jennifer López e a Sharon Stone. Aliás tenho sonhado muitas vezes que janto com elas. Só lamento que elas não saibam disso.

As aparências iludem?

Muito.

O que é que um verdadeiro cavalheiro nunca faz?

Deixar de gostar de mulheres.

O que é que uma verdadeira senhora nunca faz?

Dizer, noite após noite, que tem dores de cabeça.

Qual é a peça de vestuário que prefere?

Em certas ocasiões gosto muito de um fato à maneira.

Qual é o seu maior sonho?

Algo muito difícil para um português em Portugal: ter sempre trabalho.

E o maior pesadelo?

Não ter trabalho.

O que o irrita profundamente?

A estupidez.

Qual a melhor forma de relaxar?

Um bom banho. De preferência acompanhado.

O que faria se fosse milionário?

Penso muito nisso. A primeira coisa que fazia era construir um teatro. Sem a mão do Estado, para não estragar. Há meia dúzia de milionários portugueses que podiam fazer o mesmo.

Casamentos gay: de acordo?

Nada tenho contra as ligações entre gays. Mas o casamento dá-me vontade de rir.

Uma mulher bonita?

A Alexandra Lencastre.

Acredita no paraíso?

Não. Tenho muitas dúvidas sobre a vida para além da morte.

Tem um lema?

«Versos são pedaços de carne que, a sangrar, / servem de pensos a poetas doutorados / e que outras tantas carnes vão curar / pedaços de corpos amargurados». É um lema.

 

Entrevista publicada no Diário de Notícias (19 de Fevereiro de 2011)

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.08.20

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Ana Vidal: «- Bom dia. Quero aqueles jeans da Diesel que estão no cartaz. Número 38, faxavor.

- Lamento, da Diesel já só temos do 46 para cima... mas não se preocupe, tenho outros iguaizinhos de outra marca. E por acaso até são de melhor qualidade, fica a ganhar. Vou buscar.

- Não quero. Têm de ser da Diesel. Pode ser o 46, não faz mal.

- Mas... vão-lhe ficar enooooormes! Olhe que não lhe vão ficar bem...

- Não interessa. E pare de  criticar, sua... sua... esperta! Você não percebe nada disto. Não vê que quero ter ideias, ser criativa, enfim, ser ESTÚPIDA????»

 

Leonor Barros: «O blogue desta semana dispensa grandes apresentações, aliás, dado o sucesso dispensa qualquer apresentação. É irreverente, sarcástico, incisivo e não há meias palavras. Aconselho a todos aqueles que são sensíveis a linguagem mais forte que se mantenham arredados, contudo, aviso desde já, não sabem o que perdem. Além de belissimamente ilustrado, fala-se de tudo um pouco, de livros e das aventuras de um livreiro a contas com leitores curiosos. É por estas e por outras, também pelo manifesto anti-pontos de exclamação, que o meu blogue da semana é o Irmão Lúcia. Os meus parabéns ao Pedro Vieira

 

Eu: «Há realidades inaceitáveis, que não podem ser justificadas por quadrantes geográficos, crenças religiosas ou matizes culturais. A prática da escravatura é inaceitável. A mutilação genital feminina é inaceitável. As lapidações são inaceitáveis. E os regimes que praticam ou toleram atrocidades deste tipo são igualmente condenáveis. Sem ambiguidades, sem adversativas. Sem a palavra "talvez".»

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