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(De Gaulle Esclavagista, "intervenção" em Hautmont, meados de Junho de 2020)
(versão um pouco mais longa no Nenhures)
Em Setembro de 2001 a ONU organizou em Durban a 3ª Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância Correlata. As duas conferências anteriores tinham sido em Genève, em 1978 e 1983, inseridas na Década Internacional contra o Racismo e a Discriminação Racial (1973-1982), avessa à noção de "raça" como instrumento classificatório e enquadrador de políticas públicas e indutor de práticas individuais e colectivas, no intuito de "isolar e expurgar as crenças erradas e míticas" em que ela assenta e, por sua vez, dinamiza.
A época continha grandes mudanças e também esperanças, com as democratizações políticas e o questionar do economicismo com o molde do "desenvolvimento sustentável". Enormes crescimentos económicos aconteciam no "(novos) tigres asiáticos" (Coreia do Sul, Taiwan; Filipinas, Indonésia, Malásia, Vietname, Tailândia). Processos que também potenciavam conflitos (intra-estatais e internacionais) agregáveis na temática daquela conferência. Alguns eram consabidos: inúmeras populações florestais, sempre desprovidas de meios militares suficientes, viam os seus territórios devastados por entidades cleptocráticas; na Índia refulgia o fundamentalismo hindu; a expansão do capitalismo chinês incrementara a colonização han do Tibete; no nosso "próximo e médio oriente" minorias religiosas e linguístico-culturais eram perseguidas e ocupadas. Na Europa vivia-se o rescaldo da guerra "étnica" dos Balcãs. Em África era recente o genocídio ruandês, no qual se desencadeara a guerra congolesa, e seguia a guerra sudanesa, que veio a provocar a cisão do país. E um gigantesco etc. mundial, de conflitos agitando as antinomias raciais, étnicas, nacionais ou como se lhe quiser chamar. Identitárias.
É agora interessante notar que em Durban ong's americanas já denunciavam a discriminação racializada na justiça dos EUA. Mas, de facto, duas problemáticas dominaram a conferência. Uma foi a questão palestiana, uma pressão de países árabes que levou ao abandono de Israel e dos EUA - e, assim, ao enfraquecimento dos resultados possíveis da reunião. A outra questão mais sonante foi a reclamação de várias delegações africanas que exigiam o pagamento de indemnizações aos países "ocidentais" por causa da escravatura - num época em que o Clube de Paris promovera o perdão de dívida em África.
Naquele ambiente discursivo, sufragando o afunilamento das questões, a higienização de inúmeros processos mundiais, a mistificação da história (num efectivo processo de "imaginação do continente" africano), a reunião teve os seus efeitos por muitos desejados. Ou seja, poucos ou mesmo nenhuns. Para mais, 4 dias depois, aconteceu o 9/11 e as atenções desviaram-se.
Ainda assim fui sensível àquela pantomina, no sentido de oportunidade descaradamente desaproveitada. E escrevi este texto "Mil Desculpas". E vim a colocá-lo numa colecção de 50 crónicas da minha vivência de 18 anos em Moçambique, à qual chamei "Ao Balcão da Cantina" - quem se interesse bastar-lhe-á "clicar" e gravar, qual "livro" em pdf.
Agora, nesta época de retorno da superficialidade demagógica, lembrei-me desse meu sarcasmo.
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Mil Desculpas
Madrugámos hoje para não perder tempo. Ontem comprei roupas brancas, a minha mulher já as tinha, acho-as mais apropriadas para isto. O meu sobrinho é que não veio, a mãe dele não deixou, e como não tem papas na língua disse-me logo que não quando fui lá pedir-lhe para que o rapaz nos acompanhasse, que era só o que faltava, que eu nem tinha o direito de lhe pedir isso.
Assim viemos os dois, chegámos à Baixa de manhãzinha, e começámos logo que não há tempo a perder, fomos primeiro às ongs nacionais que por aqui há, e depois subimos à Sé para falar com o senhor prior, havemos de descer a avenida para chegar à mesquita velha antes do meio-dia, e ainda temos as empresas, que são quase porta sim, porta sim. No caminho falamos com os transeuntes, e a todos dizemos ao que vimos, que lamentamos muito, que estamos arrependidos, que nem tínhamos pensado bem no assunto, enfim, que pedimos muita desculpa por os termos escravizado, e pedimos ainda mais desculpa pelo colonialismo, que até foi pior nem que seja por mais recente.
Sou mais eu que falo, a minha mulher tem estado calada, ela nem queria vir, penso que já se quer ir embora, também eu insisti muito e ela só veio para me acompanhar, acha que eu não ando bem, sente-me um bocado deprimido, ainda não percebeu se são os quarenta anos a chegar, ou o meu emprego que não corre bem, se estou cansado de estar por aqui, se calhar até acha que arranjei uma outra, mais novinha, mas está enganada, apenas ando é a matutar nestas coisas do mundo, que é bem complicado, e antes estava distraído.
É uma pena, as pessoas não estão muito avisadas, nos escritórios não nos recebem, tenho que marcar reuniões para depois, insisto e digo ao que venho e torna-se mais difícil, mas não desisto, peço desculpas às secretárias, aos contínuos, aos guardas, e depois eles até são simpáticos e trazem-nos à rua, amáveis, e chamam as pessoas que passam para nos ouvirem, mas cá fora também nem todos nos aceitam, os homens fogem dos abraços, as mulheres protestam comigo, dizem-me atrevido, os miúdos vão gozando connosco, mas é normal, são ainda inconscientes, até já está uma boa mão cheia atrás de nós, mas não percebo o que dizem, falam em ronga e changana, e eu peço muita desculpa mas ainda não aprendi as línguas daqui, é uma falta de respeito, prometo que começo amanhã, ainda hoje à tarde se não estiver muito cansado.
Encontro o Salimo, um libanês meu conhecido, mas diz-me que não acha piada nenhuma, que estou a gozar com ele, e lá continua, mal humorado, um homem de negócios, e o Akbar, um paquistanês amigo, também recusa as minhas desculpas, e diz-me para ter juízo, o Ferreira veio ter comigo, saíu do Banco quando lhe disseram que eu estava cá em baixo, e também o Bacelar que ainda aí está, ia a passar de carro, ambos a perguntarem se havia algum problema, mas não os percebo, não querem vir connosco pedir desculpas, eles que até são uns tipos óptimos, não estão sensibilizados para o assunto, deve ser isso.
A polícia pediu-me a identificação, foi uma chatice, esqueci-me dos papéis em casa, mas lá perdoaram quando lhes pedi desculpa, duplas desculpas, apesar de a princípio julgarem que estava a brincar. Foi um erro não trazer documentos mas vim sem a carteira, só depois é que poderei vir entregar dinheiro para me ressarcir da nossa brutalidade, e parte hei-de dar às ongs que são a sociedade civil, outra parte às igrejas nacionais, e aqui não ligo às diferentes crenças, todos partilham um Deus comum, não é?, só não vou dar à Igreja Universal do Reino de Deus, parece que são muito aldrabões, e a outra parte hei-de dar aos pedintes, mais aos velhos e aos aleijados, coitados. Às pessoas com quem vou falando é que não poderei vir a dar, bem que lhes peço as moradas para ir depois lhes entregar pessoalmente o dinheiro, mas não mas dizem, desconfiam de mim. Eu explico que não o posso dar de imediato, não estou muito abonado agora, mas estou à espera de uma consultoria para a U.E. e prometo que depois irei distribuir os marcos que receber, ou os dolares, não interessa. Mas nem assim...
Parece-me que ao princípio acharam estranho, mas agora já não, continuo a pedir as desculpas, há ainda tanta gente a que não pude falar, aliás cada vez há mais gente que me quer perdoar, vejam lá a quantidade de pessoas aqui em redor, e sei que estão a gostar da nossa atitude, vejo-o nos sorrisos, ouço-o nos risos, é uma pena a minha mulher ter-se ido embora, bem insisti para que ficasse mas preferiu voltar para casa com a Isabel que apareceu por aqui com a Cristina, compreendo pois estava muito comovida, até chorava, ela é muito sensível.
Eu agora vou até ali à Praça da Independência, aliás lá na Fortaleza tenho que pedir redobradas desculpas, e também hei-de ir até à estação, e peço desculpas pelos mortos da I Guerra, fico contente por outros se me estarem a juntar, chegaram os Fernandos, bons amigos, mas afinal só querem assistir, mas sempre é solidariedade, penso que as pessoas em redor também o vão sentir.
A rapaziada amiga que está por aqui acha que já pedi desculpas de mais, que já chega, convidam-me para almoçar, ou talvez uma cervejinha, mas hoje não é dia disso, ainda há tanta gente para abraçar, fico contente com esta delegação, vieram do Núcleo de Arte, ah, os amigos pintores, ainda bem que vieram, peço-vos desculpa, estão vocês a ver?, tão bem aceites foram, Mestre dê aí mais um abraço, lamento muito...Ir até ao núcleo ver as novas obras?...é pá, obrigado pelo convite, é uma honra, e é sempre um prazer, irei amanhã com todo o prazer, mas desculpem hoje prefiro ficar por aqui, na baixa, olha as meninas da feira, vou pedir desculpa, estas continuam a ser escravizadas, colonizadas, não Jaime, não estou perturbado, não me aconteceu nada, então que cara é essa meus amigos, só estou a fazer o que o meu governo fez, mandou fazer, o nosso governo somos nós, não somos?, é apenas preciso ter coração grande... Ó Ana, que é isso?, não aconteceu nada aqui ao Texeira, dá cá um abraço de desculpas, mais um beijo, lamento muito, diz-me um poema.
Vejam, como a cidade é pequena, afinal todos nos encontramos, até cá está o motorista da minha mulher, o Lopes, ó Lopes vem cá, tu és um velho colono, vem também pedir desculpa, que dizes? Vieste buscar-me...? ...chamam-me? quem?, problemas que só eu posso resolver ...? nada, quem sou eu ... não resolvo nada... a sério, ó pá! ó Bacelar não me empurres, ó Fernando não me agarrem, Jaime, está quieto, ó Lopes não me leves... não há problema nenhum, só quero pedir desculpa, é pá! larguem-me, vejam o pessoal a aplaudir, eles estão comigo, não me tirem daqui, não têm direito, eu estou bem, porra vocês estão a magoar-me, só quero dizer que lamento, pedir desculpa, desculpa. Vejam, eu tenho razão, todos a acenarem, a rirem, estão-me a compreender. Ò pá, que raio de amigos fui arranjar, deixem-me...
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Ok, ok, estou mais calmo, vamos lá ao Rodízio, comer bem também alivia, mas é para atacar valentemente no carrinho das aguardentes, não é?? Pagas tu Fernando?, porreiro, que não trouxe a carteira, estou à espera de umas consultorias, já vos contei?? sim!? desculpem lá, repito-me, é da impaciência.
Aperitivo? um gin duplo, mas abra já um Esporão reserva para respirar, tinto claro... O qué? ... o mercado mundial? ó pá, sobre isso não é para pedir desculpas, eu cá sigo o meu Governo, o meu Estado, muito respeitinho, era o que faltava. Desculpas por isso, é pá, essas ficam para daqui a umas décadas.
Qué?...afinal não estou assim tão maluco? Mas é claro que não...também vocês, têm cada ideia!
Sim, sim, Massinga, queremos rodízio para todos, e bom apetite.