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Delito de Opinião

Bagão Félix: «Sou visceralmente caseiro»

Quem fala assim... (2)

Pedro Correia, 27.06.20

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«A mulher mais bonita é a que parece que não o é»

 

O antigo ministro das Finanças e da Segurança Social, benfiquista militante, foi um dos entrevistados que responderam com mais segurança e rapidez a este inquérito feito por telefone. Sem vacilar sequer no momento em que fez duas citações. Pareceu-me ter gostado genuinamente deste desafio, que venceu por goleada.

 

Tem medo de quê?

Do medo.

Gostaria de viver num hotel?

Não. Sou visceralmente caseiro.

A sua bebida preferida?

Água. 

Tem alguma pedra no sapato?

Nem nos sapatos nem nos rins.

Que número calça?

Vinte mais IVA.

Que livro anda a ler?

Leio sempre vários livros. Ando a ler, por exemplo, um livro sobre ética empresarial e outro sobre a história da Europa desde a II Guerra Mundial. Além disso, todas as noites, folheio um dos meus vários livros de botânica, de que gosto muito.

Tem muitos livros à cabeceira?

Muitos. Mas não tenho livros de cheques.

A sua personagem de ficção preferida?

Tintim. Tem a ver com o imaginário da minha infância.

Rir é o melhor remédio?

«Se não te conseguires rir das coisas sérias, não terás nada de que rir quando fores velho», já dizia George Bernard Shaw. O riso é uma das formas mais sadias de liberdade.

Lembra-se da última vez em que chorou?

Sim. Foi recentemente, num funeral.

Gosta mais de conduzir ou de ser conduzido?

Não tenho particular gosto em conduzir o automóvel, apesar de costumar fazê-lo. No geral, gosto de conduzir. Gosto mais de determinar do que esperar que outros determinem por mim.

É bom transgredir os limites?

Já dizia Oscar Wilde: «Resistir a tudo menos às tentações.» Mas ainda sou daqueles que param no sinal vermelho.

Qual é o seu prato favorito?

Bacalhau com batatas na ceia de Natal. É aquele que verdadeiramente me transmite a conjugação feliz entre a comida e a família.

Qual é o pecado capital que pratica com mais frequência?

Tenho mais pecados veniais do que capitais. Não sei se os pecados veniais acumulados dão capital...

A sua cor preferida?

Encarnada.

Costuma cantar no duche?

Não. Gosto muito de música, mas sou absolutamente inapto para cantar.

E a música da sua vida?

Ne Me Quitte Pas, de Jacques Brel.

Sugere alguma alteração ao hino nacional?

Quanto à música, acho bem. Mas a letra está completamente desajustada do nosso tempo.

Gosta da bandeira nacional?

Gostava mais da monárquica, apesar de não ser monárquico.

Com que figura pública gostaria de jantar esta noite?

Gostaria de jantar com o Papa Bento XVI, que além do mais é um grande intelectual.

As aparências iludem?

As ilusões às vezes aparecem.

Qual é a peça de vestuário que prefere?

A gravata.

Qual é o seu maior sonho?

Ser cada vez mais livre.

E o maior pesadelo?

É quando o Benfica perde e acordo na manhã seguinte.

O que o irrita profundamente?

O disfarce. Uma das coisas que mais aprecio nas pessoas é a autenticidade.

A melhor forma de relaxar?

É relaxar sem dar por isso.

O que faria se fosse milionário?

Ia para o deserto contar as notas. O deserto é o símbolo da supremacia do ser sobre o ter.

Uma mulher bonita?

A mulher mais bonita é a que parece que não o é. Sigourney Weaver, por exemplo.

Acredita no paraíso?

Acredito no paraíso porque acredito na eternidade.

Tem um lema?

Fazer dos tempos livres trabalho e fazer do trabalho tempo livre.

 

Entrevista publicada no Diário de Notícias (22 de Novembro de 2008)

Mil Desculpas (sobre o racismo)

jpt, 27.06.20

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(De Gaulle Esclavagista, "intervenção" em Hautmont, meados de Junho de 2020)

 

(versão um pouco mais longa no Nenhures

Em Setembro de 2001 a ONU organizou em Durban a 3ª Conferência Mundial contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e a Intolerância Correlata. As duas conferências anteriores tinham sido em Genève, em 1978 e 1983, inseridas na Década Internacional contra o Racismo e a Discriminação Racial (1973-1982), avessa à noção de "raça" como instrumento classificatório e enquadrador de políticas públicas e indutor de práticas individuais e colectivas, no intuito de "isolar e expurgar as crenças erradas e míticas" em que ela assenta e, por sua vez, dinamiza.

A época continha grandes mudanças e também esperanças, com as democratizações políticas e o questionar do economicismo com o molde do "desenvolvimento sustentável". Enormes crescimentos económicos aconteciam no "(novos) tigres asiáticos" (Coreia do Sul, Taiwan; Filipinas, Indonésia, Malásia, Vietname, Tailândia). Processos que também potenciavam conflitos (intra-estatais e internacionais) agregáveis na temática daquela conferência. Alguns eram consabidos: inúmeras populações florestais, sempre desprovidas de meios militares suficientes, viam os seus territórios devastados por entidades cleptocráticas; na Índia refulgia o fundamentalismo hindu; a expansão do capitalismo chinês incrementara a colonização han do Tibete; no nosso "próximo e médio oriente" minorias religiosas e linguístico-culturais eram perseguidas e ocupadas. Na Europa vivia-se o rescaldo da guerra "étnica" dos Balcãs. Em África era recente o genocídio ruandês,  no qual se desencadeara a guerra congolesa, e seguia a guerra sudanesa, que veio a provocar a cisão do país. E um gigantesco etc. mundial, de conflitos agitando as antinomias raciais, étnicas, nacionais ou como se lhe quiser chamar. Identitárias.

É agora interessante notar que em Durban ong's americanas já denunciavam a discriminação racializada na justiça dos EUA. Mas, de facto, duas problemáticas dominaram a conferência. Uma foi a questão palestiana, uma pressão de países árabes que levou ao abandono de Israel e dos EUA - e, assim, ao enfraquecimento dos resultados possíveis da reunião. A outra questão mais sonante foi a reclamação de várias delegações africanas que exigiam o pagamento de indemnizações aos países "ocidentais" por causa da escravatura - num época em que o Clube de Paris promovera o perdão de dívida em África. 

Naquele ambiente discursivo, sufragando o afunilamento das questões, a higienização de inúmeros processos mundiais, a mistificação da história (num efectivo processo de "imaginação do continente" africano), a reunião teve os seus efeitos por muitos desejados. Ou seja, poucos ou mesmo nenhuns. Para mais, 4 dias depois, aconteceu o 9/11 e as atenções desviaram-se. 

Ainda assim fui sensível àquela pantomina, no sentido de oportunidade descaradamente desaproveitada. E escrevi este texto "Mil Desculpas". E vim a colocá-lo numa colecção de 50 crónicas da minha vivência de 18 anos em Moçambique, à qual chamei "Ao Balcão da Cantina"  - quem se interesse bastar-lhe-á "clicar" e gravar, qual "livro" em pdf.

Agora, nesta época de retorno da superficialidade demagógica, lembrei-me desse meu sarcasmo.

*****

Mil Desculpas

Madrugámos hoje para não perder tempo. Ontem comprei roupas brancas, a minha mulher já as tinha, acho-as mais apropriadas para isto. O meu sobrinho é que não veio, a mãe dele não deixou, e como não tem papas na língua disse-me logo que não quando fui lá pedir-lhe para que o rapaz nos acompanhasse, que era só o que faltava, que eu nem tinha o direito de lhe pedir isso.

Assim viemos os dois, chegámos à Baixa de manhãzinha, e começámos logo que não há tempo a perder, fomos primeiro às ongs nacionais que por aqui há, e depois subimos à Sé para falar com o senhor prior, havemos de descer a avenida para chegar à mesquita velha antes do meio-dia, e ainda temos as empresas, que são quase porta sim, porta sim. No caminho falamos com os transeuntes, e a todos dizemos ao que vimos, que lamentamos muito, que estamos arrependidos, que nem tínhamos pensado bem no assunto, enfim, que pedimos muita desculpa por os termos escravizado, e pedimos ainda mais desculpa pelo colonialismo, que até foi pior nem que seja por mais recente.

Sou mais eu que falo, a minha mulher tem estado calada, ela nem queria vir, penso que já se quer ir embora, também eu insisti muito e ela só veio para me acompanhar, acha que eu não ando bem, sente-me um bocado deprimido, ainda não percebeu se são os quarenta anos a chegar, ou o meu emprego que não corre bem, se estou cansado de estar por aqui, se calhar até acha que arranjei uma outra, mais novinha, mas está enganada, apenas ando é a matutar nestas coisas do mundo, que é bem complicado, e antes estava distraído.

É uma pena, as pessoas não estão muito avisadas, nos escritórios não nos recebem, tenho que marcar reuniões para depois, insisto e digo ao que venho e torna-se mais difícil, mas não desisto, peço desculpas às secretárias, aos contínuos, aos guardas, e depois eles até são simpáticos e trazem-nos à rua, amáveis, e chamam as pessoas que passam para nos ouvirem, mas cá fora também nem todos nos aceitam, os homens fogem dos abraços, as mulheres protestam comigo, dizem-me atrevido, os miúdos vão gozando connosco, mas é normal, são ainda inconscientes, até já está uma boa mão cheia atrás de nós, mas não percebo o que dizem, falam em ronga e changana, e eu peço muita desculpa mas ainda não aprendi as línguas daqui, é uma falta de respeito, prometo que começo amanhã, ainda hoje à tarde se não estiver muito cansado.

Encontro o Salimo, um libanês meu conhecido, mas diz-me que não acha piada nenhuma, que estou a gozar com ele, e lá continua, mal humorado, um homem de negócios, e o Akbar, um paquistanês amigo, também recusa as minhas desculpas, e diz-me para ter juízo, o Ferreira veio ter comigo, saíu do Banco quando lhe disseram que eu estava cá em baixo, e também o Bacelar que ainda aí está, ia a passar de carro, ambos a perguntarem se havia algum problema, mas não os percebo, não querem vir connosco pedir desculpas, eles que até são uns tipos óptimos, não estão sensibilizados para o assunto, deve ser isso.

A polícia pediu-me a identificação, foi uma chatice, esqueci-me dos papéis em casa, mas lá perdoaram quando lhes pedi desculpa, duplas desculpas, apesar de a princípio julgarem que estava a brincar. Foi um erro não trazer documentos mas vim sem a carteira, só depois é que poderei vir entregar dinheiro para me ressarcir da nossa brutalidade, e parte hei-de dar às ongs que são a sociedade civil, outra parte às igrejas nacionais, e aqui não ligo às diferentes crenças, todos partilham um Deus comum, não é?, só não vou dar à Igreja Universal do Reino de Deus, parece que são muito aldrabões, e a outra parte hei-de dar aos pedintes, mais aos velhos e aos aleijados, coitados. Às pessoas com quem vou falando é que não poderei vir a dar, bem que lhes peço as moradas para ir depois lhes entregar pessoalmente o dinheiro, mas não mas dizem, desconfiam de mim. Eu explico que não o posso dar de imediato, não estou muito abonado agora, mas estou à espera de uma consultoria para a U.E. e prometo que depois irei distribuir os marcos que receber, ou os dolares, não interessa. Mas nem assim...

Parece-me que ao princípio acharam estranho, mas agora já não, continuo a pedir as desculpas, há ainda tanta gente a que não pude falar, aliás cada vez há mais gente que me quer perdoar, vejam lá a quantidade de pessoas aqui em redor, e sei que estão a gostar da nossa atitude, vejo-o nos sorrisos, ouço-o nos risos, é uma pena a minha mulher ter-se ido embora, bem insisti para que ficasse mas preferiu voltar para casa com a Isabel que apareceu por aqui com a Cristina, compreendo pois estava muito comovida, até chorava, ela é muito sensível.

Eu agora vou até ali à Praça da Independência, aliás lá na Fortaleza tenho que pedir redobradas desculpas, e também hei-de ir até à estação, e peço desculpas pelos mortos da I Guerra, fico contente por outros se me estarem a juntar, chegaram os Fernandos, bons amigos, mas afinal só querem assistir, mas sempre é solidariedade, penso que as pessoas em redor também o vão sentir.

A rapaziada amiga que está por aqui acha que já pedi desculpas de mais, que já chega, convidam-me para almoçar, ou talvez uma cervejinha, mas hoje não é dia disso, ainda há tanta gente para abraçar, fico contente com esta delegação, vieram do Núcleo de Arte, ah, os amigos pintores, ainda bem que vieram, peço-vos desculpa, estão vocês a ver?, tão bem aceites foram, Mestre dê aí mais um abraço, lamento muito...Ir até ao núcleo ver as novas obras?...é pá, obrigado pelo convite, é uma honra, e é sempre um prazer, irei amanhã com todo o prazer, mas desculpem hoje prefiro ficar por aqui, na baixa, olha as meninas da feira, vou pedir desculpa, estas continuam a ser escravizadas, colonizadas, não Jaime, não estou perturbado, não me aconteceu nada, então que cara é essa meus amigos, só estou a fazer o que o meu governo fez, mandou fazer, o nosso governo somos nós, não somos?, é apenas preciso ter coração grande... Ó Ana, que é isso?, não aconteceu nada aqui ao Texeira, dá cá um abraço de desculpas, mais um beijo, lamento muito, diz-me um poema.

Vejam, como a cidade é pequena, afinal todos nos encontramos, até cá está o motorista da minha mulher, o Lopes, ó Lopes vem cá, tu és um velho colono, vem também pedir desculpa, que dizes? Vieste buscar-me...? ...chamam-me? quem?, problemas que só eu posso resolver ...? nada, quem sou eu ... não resolvo nada... a sério, ó pá! ó Bacelar não me empurres, ó Fernando não me agarrem, Jaime, está quieto, ó Lopes não me leves... não há problema nenhum, só quero pedir desculpa, é pá! larguem-me, vejam o pessoal a aplaudir, eles estão comigo, não me tirem daqui, não têm direito, eu estou bem, porra vocês estão a magoar-me, só quero dizer que lamento, pedir desculpa, desculpa. Vejam, eu tenho razão, todos a acenarem, a rirem, estão-me a compreender. Ò pá, que raio de amigos fui arranjar, deixem-me...

********************

Ok, ok, estou mais calmo, vamos lá ao Rodízio, comer bem também alivia, mas é para atacar valentemente no carrinho das aguardentes, não é?? Pagas tu Fernando?, porreiro, que não trouxe a carteira, estou à espera de umas consultorias, já vos contei?? sim!? desculpem lá, repito-me, é da impaciência.

Aperitivo? um gin duplo, mas abra já um Esporão reserva para respirar, tinto claro... O qué? ... o mercado mundial? ó pá, sobre isso não é para pedir desculpas, eu cá sigo o meu Governo, o meu Estado, muito respeitinho, era o que faltava. Desculpas por isso, é pá, essas ficam para daqui a umas décadas.

Qué?...afinal não estou assim tão maluco? Mas é claro que não...também vocês, têm cada ideia!

Sim, sim, Massinga, queremos rodízio para todos, e bom apetite.

 

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 27.06.20

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Ana Vidal«A afirmação de pertença orgulhosa a um determinado grupo  identificado pela sua orientação sexual tem exactamente o efeito contrário ao que se pretende: acentua a clivagem e define barricadas, em vez de fazer com que as diferenças se diluam. E fazê-lo com recurso a um folclore de gosto mais do que duvidoso só piora as coisas.»

 

João Carvalho: «Sabia que o mau cheiro já chega à Madeira? Este instantâneo de Adriano Miranda (Público) confirma-o: Alberto João Jardim tapa o nariz e esconde o ar enjoado que por lá se espalhou desde que fez as pazes com José Sócrates. Os ambientalistas madeirenses andam preocupados com a atmosfera, embora não se atrevam a dizê-lo.»

 

Paulo Gorjão: «Mário Soares é único. O mesmo Soares que critica Cavaco por não dar "sugestões úteis e construtivas", estaria na primeira linha a acusar Cavaco Silva de interferir na esfera executiva se este desse "sugestões úteis e construtivas".»

 

Eu: «Fernando Henrique Cardoso foi um excelente presidente do Brasil. Mas é um dos mais entediantes sociólogos da língua portuguesa, como está bem patente no seu livro Perspectivas para uma Análise Integrada do Desenvolvimento – um título que já diz quase tudo sobre a capacidade de atracção da sua escrita.»

Voltaire & Lowry

jpt, 26.06.20

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Leio que neste cerimonial contestatário também a estátua de Voltaire foi atacada, devido a que o filósofo investiu, in illo tempore, na Companhia das Índias francesa e até aceitou que baptizassem um navio com o seu nome. Encolhi os ombros mas, de facto, fiquei a remoer o assunto.  E noto-o pois no dia seguinte a ter sabido do acontecido de súbito lembrei-me que Lowry escreveu sobre um navio chamado Diderot. "Onde?", resmunguei ... Não me pareceu que fosse no Vulcão, e ainda por cima não o tenho comigo, pois levei-o para o confinamento para releitura - houve um tempo, não tão benfazejo assim, em que ele me foi Bíblia, felizmente amadureci e nisso tornou-se-me um Livro de São Cipriano - e por lá ficou neste meu interregno lisboeta.

Vasculhei as estantes e encontro-a, a tal navegação no Diderot "foi" naquele naco Através do Canal do Panamá (tradução da excelsa Ana Hatherly). E é extraordinário o início, logo na terceira página um monumento de profecia, tudo resumindo de tudo isto, tudo demonstrando sobre toda esta gente: 

" ... as fúrias em mercês. A sensação inenarrável inconcebivelmente desolada de não ter o direito de estar onde se está; as vagas da inesgotável angústia perseguidas pelo insaciável albatroz do eu. Há um albatroz, de facto."

Moles perseguidas pelo insaciável albatroz do ... nós. Do seu "nós", apenas isso, que julgam injustificado. Acima de tudo cada um incapaz de encarar o seu próprio albatroz, assim querendo exorcizá-lo nesta pantomina. Histriónica, que todos julgam poder sossegar-lhes esta desolação. Pobre crendice.

Férias de Verão

Maria Dulce Fernandes, 26.06.20

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A Prima Rosalina era uma doce avozinha de Botero, com os seus olhos azuis e cabelos claros. Vivia em Cascais com o primo Manuel e com a Lena, uma menina ainda mais linda do que os pais. Ir a casa da Prima Rosalina era prenúncio de um bom domingo. A conversa durante a viagem era invariavelmente doce e salgada. Falávamos de mousse, de pudim e arroz doce, mas sobretudo de “batatas de pacote" que a Prima Rosalina fazia como ninguém. Às rodelas fininhas, secas e salgadas, as batatas da nossa prima faziam crescer água na boca de qualquer miúdo guloso. Enquanto os crescidos salivavam perante uma travessa enorme de mão de vaca com grão, os putos enchiam-se de batatas e doces, porque eram assim os domingos em Cascais em casa da Prima Rosalina. O Primo Manuel, com os óculos na ponta do nariz risonho e paciente, ensinou-nos a tocar os primeiros acordes no piano lá de casa e tinha um conhecimento enciclopédico sobre todas as coisas.


A casa de Alfeizerão fazia parte do espólio de magia da Prima Rosalina. Situada nos Casais do Norte, a vivenda Cruz era uma casa térrea com água furtada, quase paredes meias com uma enorme herdade de criação de bois de cobrição. A casa era alegre, com muitos quartos e anexos, decorada eclecticamente, uma cozinha enorme com muita loiça de barro e grandes vasos com tampa e torneira para a agua que provinha de um poço no exterior com uma bomba de alavanca, no melhor estilo Vovó Donalda e que fazia parte do nosso exercício matinal.

Tinha recantos fascinantes e imensos retratos da Amália, que chegou a fazer parte da família durante os anos em que foi casada com o Primo Chico, que sempre tive como uma simpatia de pessoa, mas cuja única nota alta no filme de 2008 foi ter sido interpretado pelo José Fidalgo.


A casa de Alfeizerão tinha a grande vantagem de ficar a 10 minutos de carro de S. Martinho do Porto, freguesia do concelho de Alcobaça que tem apenas a mais linda baía valviforme da Costa de Prata e uma praia fabulosa.


Cedinho, depois de grandes fatias de pão escuro torradas com manteiga caseira das vaquinhas da mãe da Celeste na quinta ao lado, ia-se ao mercado a S. Martinho, que fervilhava de agricultores, fregueses e aromas campestres, e de imediato se caía de chapão nas águas frescas da praia que proporcionava aos nadadores de banheira muitos metros sem perder o pé.


Depois de um peixinho fresco directo do grelhador do quintal com a manteiga, e com limões e salsa acabados de colher, as tardes eram invariavelmente de preguiça. Numa espécie de tabacaria minúscula entre o talho e a padaria, encontrei os primeiros três volumes das Aventuras de Tarzan de Edgar Rice Burroughs, excelente leitura de férias para os meus 14 anos. Nas tardes menos quentes, íamos até à herdade ver os bois, enormes e pesados, que se estivessem em acção não poderiam ser “incomodados" pela presença de crianças, ou, liderados pelo Mano, mobilizávamo-nos pelos campos adentro para a apanha do caracol, que trazíamos em sacos de pano e ficavam no alguidar grande coberto com uma rede fina, para limpar durante uns dias.

Claro está que o Menino divertia-se a tirar a rede e a ver a caracolada “fugir” pela casa fora. Exceptuando uns gatitos, uma data de aranhas e os animais da quinta da mãe da Celeste, o pobre Menino não tinha muito para traquinar.

Outras vezes passeava-se pela costa ou dava-se um pulinho a Alcobaça, que tinha mais comércio. Quantas vezes não esperei com os meus livros na frescura do mosteiro...

O ponto alto das noites eram os pirilampos e as estrelas no céu. Num qualquer recanto campestre mais escuro, garanto que era difícil perceber onde terminavam uns e começavam as outras. Só agora consigo entender bem o significado daqueles suspiros profundos de satisfação que aqueciam e reconfortavam o coração.


Tempos de férias fabulosos, estes, antes do pai se apaixonar por Lagos e Pedras d'El Rei. Só voltei a Alfeizerão e S. Martinho há pouco tempo. Creio que existem os Casais do Norte, a casa, não garanto. Um prédio por outro aviva a memória mas nada, nada mesmo, faz lembrar sequer a casa do Pão de Ló que comíamos à boca cheia.

RGI (Reunião Geral Infarmed)

jpt, 26.06.20

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[Fotografia de Horácio Villalobos (Corbis via Getty Images)]

 

Interessante relato na Visão da RGI (Reunião Geral Infarmed) de ontem: a "narrativa" levou um tiro no porta-aviões. Clama Costa que a ministra Temido afinal não é o máximo, que a dra. Freitas ("ide visitar os idosos, sede solidários") só atrapalha com a sua atrapalhação, que os sacanas dos doutores esparvoam quando se atrevem a que a culpa disto tudo afinal não é dos putos que festejam. E pontapeia os gajos dos hoteis e dos restaurantes para que se amanhem com a falta de clientela - que ele já fez o que tinha a fazer, até trouxe a Champions. Ainda por cima o mascarado Rodrigues fala-lhe em "segunda vaga" do covídio, sem o avisar antes, qual Centeno, num "ninguém me diz nada"? Barafusta que a "culpa não é minha", levanta-se, num adeusinho "que já se faz tarde", segue à sua vida e dá as costas àquela malta, ali deixada a entreolhar-se até um bocado aflita com a zanga do Chefe. Até o Sousa, que ainda julgava ser o presidente.

As canções da minha vida (18)

Pedro Correia, 26.06.20

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WE'LL MEET AGAIN

1939

 

Há 80 anos, uma jovem londrina chamada Vera Lynn cativava milhões de ingleses que a escutavam na telefonia com um dos maiores sucessos de sempre no universo da canção. Esse tema, levado ao mundo pelas ondas hertzianas e popularizado em discos de 78 rotações, ajudou o Reino Unido a enfrentar as legiões armadas de Hitler. Intitulava-se, emblematicamente, We’ll Meet Again: na voz dela, ganhava uma vibração semelhante aos discursos de Winston Churchill, tornando-se um autêntico hino da resistência à barbárie. Aquela mulher loura e franzina, que começara ainda criança a trabalhar com os pais nos palcos do teatro musicado e aos 18 anos já era vocalista em orquestras, contribuiu para manter elevado o moral britânico.

We’ll Meet Again nasceu em 1939, precisamente no ano em que começaram a soar os canhões do maior conflito bélico de todos os tempos, graças à inspiração de dois amigos que formaram uma bem-sucedida parceria: o pianista e compositor Ross Parker (1914-1974), mais tarde também actor, e o futuro produtor teatral Hughie Charles (1907-1995). Vinham embalados de um sucesso discográfico alcançado no ano anterior, I Won’t Tell a Sound (That I Love You), o que terá influenciado o inquebrantável optimismo do novo tema. We’ll Meet Again galvanizou largos milhares de soldados britânicos que partiram para as diversas frentes de batalha, não apenas em solo europeu, mas noutros continentes. E também nos ares e nos mares.

Vera Lynn tornou-se uma combatente civil: cantou entre os escombros de Londres, actuou em casernas improvisadas no Egipto, na Birmânia e na Índia, aterrou nos mais remotos palcos onde estacionavam forças britânicas para entoar aqueles versos que a Inglaterra inteira não tardou a saber de cor: «We'll meet again / Don't know where / Don't know when / But I know we'll meet again some sunny day.» Dando a todos a confiança plena de que haveria sempre um amanhã.

E houve mesmo: foi ao som destes versos que os britânicos saudaram euforicamente nas ruas o fim da guerra na Europa, em Maio de 1945.

 

Vera Lynn retirou-se cedo do mundo do espectáculo, no final da década de 50, dedicando-se à vida familiar: durante muitos anos, quase não se falou dela. Mas aqueles aparentes versos de amor que ganhavam um significado diferente em cenário de guerra nunca deixaram de preencher o imaginário popular.

Em 1964, Stanley Kubrick encerrou a obra-prima Doutor Estranhoamor com a antevisão satírica de um holocausto nuclear ao som de We’ll Meet Again: escutei-a aí, fascinado, pela primeira vez. Num registo pop, os Byrds incluíram o tema no seu álbum de estreia, Mr. Tambourine Man (1965). Em 1979, os Pink Floyd dedicaram à intérprete a canção Vera, no álbum The Wall, logo transposto para cinema pelo realizador Alan Parker.

Oito inesquecíveis versos de Roger Waters que me ficaram na memória: «Does anybody here remember Vera Lynn? / Remember how she said that / We would meet again / Some sunny day? / Vera! Vera! / What has become of you? / Does anybody else here / Feel the way I do?»

 

Em 2009, o impensável ocorreu: ela entrou pela primeira vez no top discográfico do Reino Unido – que ainda não existia em 1939 – superando a concorrência graças a uma colectânea dos seus êxitos, intitulada The Very Best of Vera Lynn e que incluía The White Cliffs of Dover e Auf Wiedersehen Sweetheart, outros temas que a celebrizaram. Gravações registadas entre 1936 e 1959, numa época em que a maioria dos que adquiriram o disco nem havia nascido.

O fenómeno deveu-se ao revivalismo da II Guerra Mundial naquele ano em que se recordava o 70.º aniversário da dramática invasão da Polónia pela Alemanha. Agraciada em 1975 como Dama do Império pela Rainha Isabel II, Vera Lynn recebia um novo título: o da cantora britânica mais idosa desde sempre representada na exigente lista das melhores vendas. Tinha 92 anos, confessou-se orgulhosa com a proeza, totalmente inesperada, e apressou-se a declarar que nem lhe passava pela cabeça regressar aos estúdios de gravação. Bastavam-lhe aparições esporádicas em salas de espectáculo, como interveniente ocasional ou mera espectadora em galas de homenagem. Para que não a esquecessem de todo – costumava dizer, meio a sério meio a brincar.

A precaução era desnecessária: os ingleses foram transmitindo esta canção de pais para filhos, de avós para netos. Portadores de uma fortíssima identidade colectiva, robustecida durante os bombardeamentos de Londres pela matilha nazi, não ignoram quem contribuiu para manter a nação unida em tempo de dor e trevas.

 

A mais recente homenagem prestada em vida a Vera Lynn veio da boca da própria Rainha, outra testemunha directa da II Guerra Mundial, já com a actual pandemia em curso. Aconteceu na noite de 5 de Abril, numa rara alocução televisiva da monarca aos britânicos, a propósito deste vírus que assombra o planeta: «Better days will return. We will be with our friends again. We will be with our families again. We will meet again.»

Era uma referência directa à canção, fazendo a ponte entre dois conflitos de natureza muito diferente mas ambos sérios testes à resistência humana. A última batalha na longa e frutuosa vida de Vera Lynn, que a 20 de Março, ao celebrar 103 anos, dirigiu uma mensagem aos compatriotas, com vídeo musical alusivo à efeméride. Sob o signo da esperança, incentivando-os a enfrentar o Covid-19. 

Há poucos dias, a 18 de Junho, o seu coração cansou-se enfim de bater. Mas a voz dela nunca nos abandonará, servindo-nos de inspiração e guia noutras causas e noutros combates. Com a certeza antecipada de que voltaremos a encontrar-nos, sem escudos nem máscaras, numa manhã inundada de sol. 

 

«So will you please say hello / To the folks that I know / Tell them I won't be long / They'll be happy to know / That as you saw me go / I was singing this song // We'll meet again / Don't know where / Don't know when / But I know we'll meet again some sunny day…»

 

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 26.06.20

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João Carvalho: «Sabia que estão a regressar os fatos-de-banho mais recatados? Assim parece. Entende-se o motivo: à custa de malhas mais elásticas e em maior quantidade escondem-se algumas misérias e disfarçam-se umas banhas excessivas.»

 

Eu: «Viagem de comboio Faro-Lisboa, no Alfa pendular. Princípio da tarde: quatro amigos do Entroncamento, sexagenários já reformados, foram almoçar à capital do Algarve e regressam à terra. Durante três horas, só falam de comida. E em voz bem alta: toda a gente na carruagem os escuta.»

Crise no PAN?

jpt, 25.06.20

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Parece que o líder do aparente ecologista PAN está a ser contestado pelas suas hostes. Não será particularmente surpreendente. O partido cresceu imenso nas últimas eleições, a reboque da vaga internacional de preocupações ecológicas. Mas logo desapareceu da agenda mediática e mesmo da política, e não só pelo seu real vazio substantivo - que melhor contexto para afirmação poderia pedir um partido ecologista do que uma pandemia com estas características de emergência e difusão?, e o qual desaproveitou completamente dada a sua efectiva inexistência. Pois também se tratou de um eclipse comunicacional devido ao carinho da imprensa pelo "boi de piranha" espicaçado pelo PS, esse composto de histriónicos racistas e de assessores de saias, e o jeito que dão às audiências publicitárias as atoardas desventuradas. 

Mas as causas fundamentais deste triste espectáculo - um partido ecologista a desagregar-se devido a questiúnculas  em plena pandemia é verdadeiro manancial para um "estudo de caso" de ciência política - são mesmo internas.  Há algum tempo aqui deixei mostra de que André Silva, o inopinado líder de partido parlamentar, não aparentava possuir nem pinga de elegância devido a completa ausência de clarividência de atitudes, face à sua boçal pose em reunião de deputados com o presidente Sousa. Um rústico, por assim dizer ... E ao saber-se hoje, na sequência do abandono do deputado europeu e de outros eleitos autárquicos, que também sai a deputada por Setúbal, Cristina Figueiredo, lembro a patética figura que a pobre fez quando se candidatou, uma coisa mesmo inenarrável, uma mulher ignorante e desnorteada, adornando-se com todos os tiques do aldrabismo. 

Enfim, a renovação do sistema política é mesmo necessária. Mas, como é mais do que evidente, não é com gente desta. E com este impensamento.

Não há coincidências

João Sousa, 25.06.20

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No dia em que o país andou a discutir o folhetim do treinador do Benfica, em que os jornais descreveram detalhadamente o esboroar do PAN e em que António Costa veio às televisões anunciar com voz grossa o reaperto de confinamentos - o governo, por entre os pingos da chuva, aproveitou para formalizar num sussurro a nomeação de Centeno para o Banco de Portugal.

S. João eclipsado

João Pedro Pimenta, 25.06.20
Este dia, ou antes, esta noite é esperada todo o ano. No Natal pensa-se que "só/ainda faltam seis meses para o S. João" (segundo a Bíblia, João Baptista nasceu seis meses antes de Jesus, daí o dia). Quando chega Junho, o Santo António já é uma antecipação; aos poucos vão-se vendo cartazes a anunciar a data, descobrindo manjericos à venda, instalam-se palcos, carrosséis e carrinhos de choque na Baixa, Boavista, Foz, Fontainhas e por todo o Porto. E chegada a noite, vêem-se fogareiros a assar sardinhas, famílias ou bairros inteiros a instalar mesas compridas nas ruas e largos, ouvem-se os primeiros martelinhos e começa-se a avistar as luzes dos balões no ar. Assim se inicia a noite mais longa do ano, colada ao solstício, com o epicentro perto do rio, com os bailaricos habituais, da Ribeira até à Foz, passando por Miragaia e Massarelos. No fim, a habitual dificuldade de voltar para casa, sem carro, táxi ou Uber; a solução é mesmo uma caminhada já a ver a alvorada.
Era a noite mais esperada do ano. Agora é igual a todas as outras, nesta época miserável de gente desfigurada nas ruas. Pela primeira vez desde que há registos (e os primeiros vêm de Fernão Lopes, no séc. XIV), não houve festas de S. João no Porto ou em parte alguma. Vi um entristecido Germano Silva a referir que nem o Cerco do Porto, nem as revoltas ou as outras epidemias todas pararam o S. João. O Covid conseguiu-o. Não sei o que se passa de diferente, mas isto impressiona pela sua dimensão. Pensar que pela primeira vez em séculos não haverá S. João (ou outras festas populares) perturba e entristece. Era daquelas coisas que nos fazia viver. E agora nem sabemos quando voltará, neste mundo em que um surto de 40 contagiados na China é imediatamente notícia. Estamos no meio de uma desgraça inédita ou ficamos mais paranóicos?
DGS divulgou hoje as medidas para os festejos de São João. Porto e ...
PS: soube entretanto que o S. João já tinha tido outras paragens, por razões similares, como a peste bubónica de 1899 (não creio muito, porque só a detectaram em Julho) e outras maleitas.
PS2: alguém devia coordenar um pouco melhor os atrasos nos conselhos da DGS; caso contrário arriscavam-se a que as pessoas festejassem o santo porque as "rigorosas recomendações" chegaram depois do tempo.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 25.06.20

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Ana Margarida Craveiro: «A selecção portuguesa está acompanhada de GNR, lá na África do Sul. Eu quero acreditar que a Federação Portuguesa de Futebol está a pagar o aluguer das forças de segurança, tal como os bancos costumam, bem ou mal, fazer. É que, assim de repente, nem a selecção representa o Estado português, nem a GNR tem assim tantos efectivos a não serem precisos noutro lado qualquer (por exemplo, em determinadas zonas do país em dia de distribuição de pensões). Por isso, vou acreditar com muita força, com muito pensamento positivo, como o primeiro-ministro recomenda, a ver se não tenho de ficar mais uma vez enojada.»

 

João Carvalho: «Pela calada da noite e sem honra nem glória, a estátua de José Estaline na sua cidade-natal de Gori (Geórgia) — em bronze e com mais de seis metros de altura — foi definitivamente apeada e armazenada algures, por iniciativa das autoridades locais. O trabalho de remoção começou logo após a meia-noite e antes de nascer o dia já estava concluído. Ao longo da madrugada não foi avistada a presença de qualquer representação portuguesa dos apoiantes de Estaline, mas espera-se hoje uma expressiva manifestação de pesar e desagravo à porta da embaixada da Geórgia, a que não faltará uma reverente representação dos defensores do ditador que moram aqui, inconsoláveis nesta hora do adeus.»

 

Leonor Barros: «"Sinto-me sozinho a puxar pelo País" (José Sócrates). Faltaram-lhe duas palavrinhas: para baixo

 

Eu: «Esta foto de Alfred Eisenstaedt tornou-se um ícone do século XX. Foi captada no dia 14 de Agosto de 1945, em Nova Iorque, quando largos milhares de pessoas acorreram a Times Square para festejar o fim da II Guerra Mundial. Entre a multidão, estava uma enfermeira chamada Edith Shain, de 27 anos, e um jovem marujo de quem nunca se conheceu o nome. Por um capricho do destino, o militar decidiu dar um beijo arrebatado à enfermeira. Não se conheciam, não sabiam nada um do outro. Após aquele impulso, ele largou-a e perdeu-se na multidão. (...) Edith Shain acaba de falecer, aos 91 anos. Mas a imagem que inesperadamente a imortalizou viverá para sempre. Por constituir uma prova irrefutável de optimismo, para além de todos os escombros provocados por todas as guerras. Há sempre um amanhã.»

IPO

José Meireles Graça, 24.06.20

Tenho na garagem um charêlo com mais de 20 anos, que não se vende por razões sentimentais das autoridades domésticas e porque, de longe em longe, dá jeito.

Um luxo: levando em conta o custo do seguro, imposto de circulação (na realidade um imposto sobre a propriedade) e inspecção periódica mais valia alugar um carro quando fosse necessário.

Há uns anos o pagamento do IUC passou a fazer-se no aniversário do registo do automóvel, uma habilidosa mudança legislativa dos patifes que enxundiam a AT, contando que muitos condutores se esqueçam - se se esquecem do aniversário das consortes, por que raio haveriam de se lembrar do da porcaria do carro. A GNR, na realidade, para efeitos do trânsito automóvel, uma polícia fiscal, aplica multas terroristas em caso de esquecimento ou falta de dinheiro – este imposto e as multas respectivas castigam muitas vezes não a distracção mas a pobreza.

Multas gravosas são também devidas no caso da falta do abençoado selo da inspecção periódica. E por isso na semana passada levei o coche a um desses centros onde se fingem análises rigorosas e desisti porque havia aí uns 20 carros à frente; e a mesma coisa noutro da cidade que tem a honra de me contar nos seus naturais.

Ontem, porém, foi o dia. Esperei aí apenas umas duas horas debaixo de um sol abrasador e, quando chegou a minha vez, e porque o “perito” era novo, lá veio o diálogo surreal:

Abra o capot, por favor.

Para que efeito?

Preciso de pôr uns cabos no motor.

O motor não é à frente.

Então abra atrás.

Posso abrir (saindo do automóvel porque a tampa da mala só abre com a chave da ignição) mas por lá também não tem acesso ao motor, que é central.

Ah, e como vou fazer para ter acesso ao motor?

Não faço ideia, creio que por baixo, pondo o carro no elevador.

 

O homem resolveu o problema a contento, depois de obrigar a um tempo interminável com o motor às 3.000 RPM e gastando ainda mais com várias jigajogas para testar a suspensão e os travões.

Gosto destas partes gagas. E como não posso, como desejaria, enfiar uma carga de lenha no legislador que pariu estes inferninhos, faço parte daquela minoria de cidadãos impliquentos que têm, por funcionários, um respeito menos do que obsequioso, e pelas autoridades um escasso quanto baste.

Porque, sejamos claros, aqueles condutores que, debaixo de um sol escaldante, aguardam pacientemente que se lhes verifiquem os carros a troco de mais de trinta euros (o valor tem quebrados com cêntimos para dar a impressão que resulta de um qualquer cálculo científico e não de puro arbítrio; e porque a ideia de que um serviço público deve ter em conta a comodidade do público não cabe na cabeça de nenhum funcionário, e menos ainda na de um secretário de Estado qualquer com pressa de ir ao próximo workshop sobre o simplex) acreditam provavelmente que o que estão ali a fazer tem a ver com segurança rodoviária.

Mas não tem. Ninguém tem um carro a cair de podre se o puder ter em bom estado; ninguém circula com um carro com a direcção desalinhada, ou os travões em mau estado, ou os pneus gastos, se tiver meios para o reparar; ninguém, constatando que o veículo gasta anormalmente, deixará de o tentar corrigir; e, sobretudo, não faltam defeitos graves que um veículo pode ter, e que não são detectáveis pelos procedimentos normais de inspecção, como a Deco (uma organização socialista que, para resolver qualquer problema, reclama sempre mais funcionários e legislação) descobriu aqui há uns anos.

Investiram-se milhões para criar estes centros de parlapatice rodoviária; criou-se um corpo nacional de funcionários especializados em não fazer absolutamente nada de útil, enquanto há oficinas que têm dificuldade em recrutar mecânicos; deixou-se nascer um grupo de interesses que, à boleia da segurança rodoviária, torna impossível qualquer reforma que o prejudique; queimam-se milhares de horas de trabalho de pessoas que têm realmente que fazer e estão de guarda aos seus veículos, à espera de vez; e mobilizam-se armadas de burocratas que vão expelindo legislação, desde que em Dezembro de 1999 se transpuseram para o direito interno as elucubrações de uns anónimos do Conselho Europeu ou da Comissão (mais de meia dúzia de decretos-lei, desde então, e um número indeterminado de circulares e instruções de iluminados).

E então, a inspecção não serve mesmo para nada?

Serve:

Para a polícia se dispensar de verificar o estado do piso dos pneus (estes têm, actualmente, uns travessões que indicam o grau de usura), ou qualquer outra coisa, e perderem tempo a ver o bendito selo, no afã de passar a multazinha;

Para detectar desconformidades que nada têm a ver com segurança: há uns anos tive de substituir uma placa de matrícula porque a parte amarela estava desmaiada pelo sol (o mesmo amarelo com o mês e ano de registo que um legislador azeiteiro lisboeta achou que era indispensável figurar e agora um seu colega, com melhor gosto e possivelmente sem interesses em stands de automóveis, acha dispensável no modelo mais recente da mesma placa).

Para justificar multas, defesas, incumprimentos, ocupação dos tribunais com trivialidades, penhoras, e receita fiscal.

E de segurança, nada? Ora bem, o tal charêlo tem, há mais de uma dúzia de anos, o tensor do cinto de segurança do condutor avariado. Isto significa que o cinto não está lá a fazer nada, estando mais lasso do que as contas públicas. A Deco, se consultada, diria decerto que era preciso rever as normas, a ver se se consegue aumentar a lista de procedimentos até se perder não duas horas mas um dia, e pagar não um pouco mais de 30 euros mas meio salário mínimo. Pois bem, o cinto nunca ninguém viu. Ainda bem, desmontar aquela cangalhada seria um grande nó cego – o carro foi concebido por uns ingleses que já faliram, tem partes de ciência oculta.

Nunca ninguém viu que o cinto não funciona e quase ninguém vê os absurdos burocráticos que o moderno estado mete-se-em-tudo põe na vida das pessoas.

O carro, para a idade, não anda mal. E nós poderíamos andar melhor se víssemos os defeitos onde eles estão. Mas é como o cinto, está onde deve estar porque é obrigatório. Se funciona ou não – isso não interessa nada.