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Delito de Opinião

Há quem viva dentro de uma bolha

Paulo Sousa, 30.06.20

Perante os números que desmentem os cartazes que há uns meses mandaram fazer às crianças, nem tudo está a correr bem, nem a caminho disso.

A correlação entre os novos casos de covid na região de Lisboa e os transportes públicos superlotados apareceu há mais de um mês nas noticias através dos empregados da Sonae da Azambuja. Depois disso voltei a ouvi falar da lotação dos comboios de linha de Sintra através de uma publicação de um familiar no Facebook. Entretanto já entendemos que o actual problema do (des)controlo da pandemia no nosso país resulta exactamente do facto de existirem pessoas que não se podem dar ao luxo de estar confinadas em casa, porque assim arriscar-se-iam a morrer não pela doença mas pela cura.

Quem tem a sorte, ou o mérito, de na actual situação poder trabalhar a partir de casa, consegue assim o melhor dos dois mundos, uma vez que continua a produzir riqueza e a manter a economia em movimento, e ao mesmo tempo resguarda-se de ser infectado nos transportes e nos espaços públicos.

Mas claro que existem sempre aqueles que vivem num mundo pequenino e cuja visão não vai além do seu próprio umbigo.

Não chegassem todos os privilégios que têm em relação a quem trabalha no privado, os Sindicatos da função pública vem agora exigir mais dinheiro pelo privilégio de poder trabalhar a partir de casa.

O governo se estivesse de facto a negociar com eles deveria terminar com o tele-trabalho e assim contar com eles no seu posto de trabalho à hora habitual. Mas o que está é apenas a tentar garantir o seu voto nas próximas eleições. O interesse do país é um detalhe.

A História e o pedestal

João André, 30.06.20

Faz-me pena a questão das estátuas vandalizadas ou derrubadas, não porque isso não faça necessariamente sentido, mas porque acima de tudo distrai do essencial: várias (quase todas, diria) sociedades são de facto estruturalmente racistas, mesmo que apenas como herança do passado.

É hoje indiscutível que as condições em que cada pessoa nasce e cresce condiciona fortemente o seu futuro. Há quem destrua todas as condições de privilégio em que nasce e outros que ultrapassam as limitações do seu ambiente. Em geral, contudo, quem nasce pobre tem de subir um plano inclinado e quem nasce mais confortável terá uma inclinação mais suave pela frente.

O racismo passado criou condições para múltiplas pessoas serem condicionadas fortemente a terem montanhas bem íngremes pela frente só devido à cor da pele dos seus antepassados. O similarity bias continua a garantir que tais montanhas se mantenham inclementes mesmo quando se consegue começar a subir. Isto é também indiscutível. Há casos em que certos grupos conseguem ultrapassar essas dificuldades mas habitualmente obtêm um patamar intermédio entre o grupo dominante e o grupo mais fortemente discriminado. Um exemplo extremo eram os indianos na África do Sul, discriminados mas acima dos negros (situação que continuará).

No fundo tudo se resume a um aspecto simples: acreditamos que há grupos que são mais ou menos capazes devido à cor da sua pele ou à sua origem geográfica? Se sim, então a visão é racista (os estudos honestos modernos continuam a negar tal conceito) mas a situação actual é compreensível e uma consequência destas diferenças. Se se entender (como eu) que não há qualquer diferença significativa nas capacidades das pessoas de grupos diferentes, então é a sociedade que é racista se não virmos uma representação em cargos públicos, nos quadros das empresas, nas universidades, etc, razoavelmente equivalente à distribuição dos diferentes grupos na sociedade.

Esta é a realidade actual e não é por o presidente anterior dos EUA ser negro (ou mestiço) ou o primeiro-ministro português ser de descendência goesa que o resto da sociedade é não-racista. E se é racista, é normal que haja grupos cujas frustrações colectivas mantidas ao longo de séculos a certa altura extravasam. Ainda mais normal é que estas se manifestem em símbolos desse passado, sejam estes símbolos do racismo (nos EUA, Jefferson Davis) ou apenas representantes do seu tempo (George Washington ou Thomas Jefferson, que possuíram escravos).

Relembremos: as estátuas não são a priori história, antes representam figuras históricas. Nalguns casos as estátuas pertencem à história, pelo que representam, pelo que demonstram, pela arte que as construiu. Não devem por isso ser destruídas, mas não significa que tenham que ser mantidas. Não devemos simplesmente juntar uma turba furiosa para as derrubar, mas a presença de tal exigência deveria levar a uma reflexão sobre o valor da mesma estátua e a validade de a manter. Isso sim, ajudaria a pensar a história. O resto é apenas esconder o passado debaixo do pedestal.

Medina na calçada para São Bento

jpt, 30.06.20

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Nas últimas décadas da história do PS é muito raro encontrar este tipo de críticas internas. Medina confronta-se com o disparatado rumo de tudo isto e "chega-se à frente". Durante a época do confinamento (esse que Costa diz não ter existido) andou por aí em delírio de demagogia a fingir que entregava bilhas de gás, a atrasar distribuição de material médico oferecido para aparecer na fotografia e mariolagens similares. E agora, no pós-confinamento (esse que Costa diz não ter existido), dá o primeiro passo na corrida para o pós-Costa, perdão, para o pós-Covid. Já em Abril batera na pateta DGS, mas agora vem malhar a sério.

 
Mas diz o que se sabe há muito, que "fraco rei faz fraca a forte gente". Muitos fazem para que nos esqueçamos mas Medina vem agora lembrá-lo, coisas da sua agenda própria, e nós agradecemos-lhe o mote: o desatino de Fevereiro e Março, a homohisteria do pusilânime Sousa, no seu desvairado "gozo fininho" de semi-quarentena festiva; esse florentino MNE a preparar a sagrada "presidência" dizendo da inutilidade de fechar fronteiras e agora a apregoar retaliações ... fechando fronteiras; a pateta ministra da Agricultura (como estão as exportações portuguesas que ela prenunciava lucrarem com o Covid?), o desnorte errático da consabidamente incompetente Temido - essa tipa que acha que não devemos "mamar copos" e se vai saracotear desengraçadamente entre as barrascas do Cinco para a Meia-Noite, deslumbrada com a visibilidade que este Covid lhe trouxe - e mais da Dra. Freitas (ide visitar os idosos, sede solidários), catatuando contra a escola das netinhas que encerrava à revelia da inacção estatal. Depois nós, os fascistas/populistas/tóxicos/lusotropicalistas, a resmungarmos que não se fizessem festas políticas diante do boçal Rodrigues a recusar máscaras e contenção, a sinalizar o "degelo" com o afirmar da unicidade sindical na festarola do camarada Sousa, mais o festival "born in usa" dos demagogos da cidade universitária, resquícios putrefactos da imundície socratista, e nisto agora também o mariola do Benfica a pavonear-se, todos unidos no "o que o que é preciso é animar a malta" ...
 
Meses passaram nisto, mas prepararam o tal degelo?, reescalonaram os transportes públicos (Medina pavoneia as suas ciclovias, eu sei, gutural na sua cidade-para-turistas, onde estão os turistas agora?)?, e já agora, onde estão aquelas centenas de ventiladores comprados, já estão disponíveis?, reescalonaram os serviços de saúde pública?
 
Costa, que se rodeia desta pobre gente porque é esta que é fiel - lembrai-vos quando nós populistas/fascistas/tóxicos/lusotropicalistas contestávamos um poder carregadinho de gente das mesmas famílias? - tem agora esta primeira infecção grave. Ele que se cuide, e com antibióticos - isto não é um vírus, é mesmo bactéria residente, estava adormecida. Aloja-se na peçonha, esta estirpe PS.

Uma lição de vida

Pedro Correia, 30.06.20

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Por vezes, no mais inesperado dos lugares, despertam inimagináveis vocações. Aconteceu com José Saramago, o que é um - entre tantos outros - aspecto memorável da sua biografia. Impossibilitado de prosseguir os estudos para além do curso profissional de serralharia mecânica na escola industrial Afonso Domingues, o jovem Saramago passava os tempos livres recolhido na biblioteca municipal de Lisboa, no Palácio Galveias, ao Campo Pequeno. Enquanto os seus parceiros de geração optavam por folguedos, bailaricos e comezainas, ele cultivava-se com esmero, persistência e determinação naquelas salas austeras que lhe propiciaram o equivalente à formação universitária que formalmente nunca chegou a ter.

O Nobel de 1998 recorda esse período num admirável prefácio escrito para o livro De Volcanas Llena: Biblioteca y Compromiso Social (Gijón, Trea, 2007). «Era um lugar em que o tempo parecia ter parado, com estantes que cobriam as paredes do chão até quase ao tecto, as mesas à espera dos leitores, que nunca eram muitos (...). Não posso recordar com exactidão quanto durou esta aventura, mas o que sei, sem sombra de dúvida, é que se não fosse aquela biblioteca antiga, escura, quase triste, eu não seria o escritor que sou. Ali começaram a escrever-se os meus livros», anotou Saramago, lembrando os dias, meses e anos ali passados.

Uma lição de vida.

Futebol ou Saúde? Saúde!

João André, 30.06.20

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Quando se começou a história do "desconfinamento", vieram logo os clubes perguntar se poderiam jogar. Questões de dinheiro, está claro, especialmente para os maiores. Muita discussão houve sobre os jogos à porta fechada, se fariam ou não sentido. Aquilo que para mim não fez sentido foi recomeçar de todo os jogos. Não porque "futebol sem espectadores não é futebol", como dizem muitos do redondo das suas barriguinhas que devem ter dados os últimos toques na bola ao mesmo tempo que Maradona atava ingleses. Tão só porque o futebol, mesmo sem espectadores no estádio, não deixa de ter espectadores fora dele, espectadores que se juntam para ver jogos e, em certas alturas, para festejar desfechos.

As imagens acima demonstram o que se passou em Nápoles, cidade há muito privada de alegrias desportivas e também a sofrer das medidas italianas, e em Liverpool, onde o principal clube local (e possivelmente nacional) não vencia o campeonato há 30 anos, numa altura em que a competição ainda nem existia na forma actual. Os adeptos vieram à rua festejar e o distanciamento social resumiu-se a não conviverem com adeptos de outros clubes.

A Liga Belga decidiu cancelar o resto da época e atribuir o título ao clube que estava em primeiro lugar quando a interromperam. A Liga Holandesa abandonou a época, cancelou subidas e descidas de divisão e não atribuiu o título, apenas atribuindo as qualificações para competições europeias com base na classificação no momento da interrupção. Fizeram isto seguindo as ordens do governo holandês de cancelar eventos públicos até 1 de Setembro. A Liga Francesa também cancelou o resto da época e as classificações ficaram as do momento da interrupção, dando também título.

Talvez haja países onde as condições permitam continuar as ligas sem grandes problemas, como foi o caso da Alemanha, que prosseguiu o campeonato e após o final não se viram grandes celebrações pela cidade de Munique. Nos restantes países, a melhor solução talvez fosse simplesmente não se jogar mais (e o mesmo é válido para as competições europeias). No caso português, isso poderia passar por anular a competição como na Holanda ou cancelar o restante como na Bélgica e França. Eu teria preferido esta segunda opção, dando o título ao FC Porto (que liderava na altura da interrupção) e restantes lugares de acordo com as suas posições.

Não haveria soluções ideais, mas parece hoje claro que o COVID-19 está a regressar e a ganhar força. Ir pela solução que privilegiasse a saúde seria talvez a opção menos má.

 

PS - como benfiquista, tal escolha ter-me-ia poupado às tristes figuras do meu clube. Está claro que o Benfica não soube gerir a interrupção. Já o Sporting de vários dos meus colegas de blogue parece tê-lo feito bem.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.06.20

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Adolfo Mesquita Nunes: «O que é isso de interesse nacional? Quem o define? O governo? Um ministro? O interesse nacional varia então de ministro para ministro ou de governo para governo? Podem existir interpretações diversas sobre o que é o interesse nacional? E se sim, podemos então falar de um único interesse nacional? Pode alguém saber ao certo, e por todos, qual é o interesse nacional?»

 

Ana Cláudia Vicente: «No adeus português à competição em curso não podemos deixar de indicar este revigorante elixir, oriundo do extremo oeste ibérico. De extracção duriense, o mesmo combina de forma harmoniosa virtualidades atlânticas e meridionais, sendo particularmente indicado em situações de lacrimejamento inflamado, como as ontem acusadas por considerável parte da população nacional.»

 

Ana Vidal: «- Bom dia, é do Zezé World? Quero inscrever-me naquele curso de 15 dias grátis, de Kamasutra, com o vosso novo professor Zezé Littlebed.

- Não, não, espere aí... está a falar para o Wall Street Institute.

- E não é a mesma coisa?

- Não. Aqui só se ensina inglês.

- Só inglês?? Olhe, fique sabendo que vou queixar-me à DECO, por publicidade enganosa!»

 

André Couto: «Não sei se Sarah Palin colocou implantes, ou se Sarah Palin não colocou implantes. Sinceramente isso nem me interessa muito. Interessante, interessante, é imaginar esta discussão a surgir em Portugal, com figuras portuguesas, no rescaldo das pretéritas legislativas de 2009... Que pagode seria!»

 

Leonor Barros: «Não é só o futebolês, essa linguagem única, cheia de prognósticos depois do jogo ou quadrados que se fazem com três. O que me inquieta neste desporto que há quem diga rei, não é apenas isso, porque como se sabe sou uma republicana empedernida e sou contra cargos que não sejam eleitos por essa massa desalmada chamada povo.»

 

Eu: «Adoro ouvir falar futebolês na televisão. Adoro aqueles neologismos muito giros debitados pelos locutores do desporto-rei. Adoro o léxico muito típico de quem tem por missão relatar jogos de futebol no pequeno ecrã. É um idioma tão moldável que até podemos falar futebolês sem estarmos propriamente a falar de futebol.»

Do meu baú (2)

Pedro Correia, 29.06.20

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As crises, à partida, são péssimas. Mas em jornalismo são óptimas: ficam sempre bem em qualquer manchete. Sobretudo quando surgem com a vaga avassaladora da que foi desencadeada pelo colapso do centenário Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimento dos EUA. Uma queda que provocou um abalo à escala planetária, bem revelador da fragilidade dos circuitos económicos do mundo contemporâneo.

No dia seguinte, 16 de Setembro de 2008, a manchete do DN dizia quase tudo em apenas cinco palavras: «A pior crise desde 1929». Foi preciso aguardar oito décadas - e haver uma guerra mundial de permeio - para ocorrer uma derrocada financeira comparável à da tristemente célebre queda da Bolsa novaiorquina que mergulhou os EUA numa década de depressão. 

Consequências para o nosso país? Não havia problema, apressou-se a garantir a nossa suprema autoridade financeira, então gerida pelo inefável Vítor Constâncio: «Em Portugal, a exposição ao Lehman não é significativa, segundo o Banco de Portugal», lia-se na última frase do texto que acompanhava esta manchete.

Lá dentro, na página 7, outra declaração igualmente tranquilizadora: «Estamos a avaliar, mas a nossa exposição ao Lehman Brothers é absolutamente módica, muito pouco expressiva.» De um tal Ricardo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo, esse admirável modelo de sagacidade e lisura.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.06.20

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André Couto: «Alguém viu o último anúncio do Santander-Totta? Refiro-me ao que nos brinda com um "lá lá lá Solid! Solid as a rock!" e desagua na fundamentação da afirmação com a avaliação feita pela Standards & Poor's e outra agência internacional de rating. Giro, giro é vermos ainda no anúncio moedas a afundarem-se mar adentro... Qual é a parte da transmissão de tranquilidade e segurança que me escapa?»

 

Bandeira: «O truque consiste em parar de tentar encontrar o parceiro certo e começar a fugir dos errados.»

 

João Carvalho: «Portugal tem mais de cinco milhões de pobres declarados e pobres envergonhados, o que corresponde a mais de metade da escassa população. Ora, como o primeiro-ministro anda há cinco anos a afirmar a pés juntos que a pobreza está a diminuir, haja quem tenha paciência para o fazer ver que os portugueses viviam melhor há cinco anos.»

 

Eu: «Portugal despediu-se hoje do Mundial da África do Sul. Um golo de Villa aos 63', culminando uma excelente combinação com Iniesta e Xaví, bastou para os espanhóis derrotarem os portugueses nesta partida dos oitavos-de-final disputada na Cidade do Cabo. Minutos antes do golo, Carlos Queiroz tirou do campo Hugo Almeida, o mais eficaz dos atacantes portugueses. Esta inexplicável substituição, conjugada com o golo sofrido, bastou para desnortear a selecção das quinas, que até aí conseguira anular as jogadas ofensivas dos espanhóis e praticara bons lances de contra-ataque, equilibrando a partida. A partir daí, foi o descalabro: o meio-campo português praticamente deixou de existir. E os espanhóis só não marcaram mais porque na baliza estava Eduardo, um dos melhores guarda-redes deste Mundial.»

O blogue da semana

João Pedro Pimenta, 28.06.20

É já um velho conhecido do Delito, e não é a primeira vez que aparece nesta coluna. Pudera, é um dos pioneiros da blogosfera portuguesa, e tendo já mudado de "casa" algumas vezes, permanece incansável, com alguns intervalos, como os dos últimos dias, ou de quando resolveu experimentar o Governo. Dos últimos tempos, aconselho-vos este post de despedida de Luís Sepúlveda.

A Origem das Espécies, de Francisco José Viegas, é o blogue da semana.

Botar Abaixo o Hemingway?

jpt, 28.06.20

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Há em várias cidades um punhado de estátuas de Hemingway. Deixo um excerto do autobiográfico "As Verdes Colinas de África", escrito em 1935. Talvez seja um exemplo apropriado para uma era em que as sensibilidades pretéritas andam a ser avaliadas. A preto e branco ...

"M'Cola foi, aos saltos, pela montanha abaixo e, através do riacho, mesmo no lado oposto ao nosso, surgiu um rinoceronte a correr, num trote ligeiro, pela parte de cima da margem. Quando o observávamos, apressou o passou e correu, em trote rápido, perpendicularmente à beira da estrada. Era de um vermelho sujo, o chifre muito visível, e não havia nada de pesado nos seus movimentos, rápidos e deliberados. Ao vê-lo, senti-me excitado. 

- Vai atravessar o regato - observou Pop - Está ao alcance do tiro.

M'Cola pôs-me a Springfield na mão. Abri-a para me certificar de que estava carregada. O rinoceronte estava fora da minha vista, mas distinguia-se o agitar do capim alto. 

- A que distância julga que pode estar?

- A uns quatrocentos metros.

- Hei-de apanhar esse malandro.

Conservei-me alerta, procurando deliberadamente acalmar-me, fazendo cessar a excitação como quem fecha uma válvula, entrando naquele estado impessoal que se atinge ao fazer pontaria. 

O animal surgiu no regato baixo e pedregoso. Naquele momento apenas pensava em que era perfeitamente possível alvejá-lo, mas que para isso era necessário alcançá-lo e ultrapassá-lo. Alcancei-o, ultrapassei-o e disparei. Ouvi o ruído da bala e, como animal seguia a trote, esta pareceu-me ter explodido mais à frente. Com um resfolegar sibilante, caiu prostrado, esparrinhando água e roncando. Disparei de novo, levantando uma coluna de água atrás dele. Como tentasse escapar-se para a relva, voltei a disparar. (...)

Droopy correu. Carreguei a espingarda e corri atrás dele. Metade dos homens do acampamento estavam espalhados pelas colinas (...). O rinoceronte tinha-se dirigido precisamente para debaixo do lugar onde eles se encontravam e subia o vale em direcção ao sítio onde se perdia na floresta. (...)

O rinoceronte estava no capim alto, atrás de uma qualquer moita. Enquanto avançávamos, ouvimos um roncar surdo, quase um gemido. O ruído voltou a ouvir-se, terminando desta vez com um suspiro sufocado pelo sangue. Droopy ria.  (...) Sabíamos onde estava o animal e, ao aproximarmo-nos, lentamente, abrindo passagem pelo mato alto, descobrimo-lo. Estava morto, caído sobre um dos flancos. (...)

Quando chegou o grupo todo, voltámos o rinoceronte de forma a ficar como que numa posição de ajoelhado e cortámos o capim em volta para tirarmos fotografias. (....) ali estava com a sua comprida carcaça, pesados flancos, de aspecto pré-histórico, a pele como borracha vulcanizada e vagamente transparente, com a cicatriz de uma ferida causada por uma cornada e depois picada pelos pássaros, a cauda grossa, redonda e aguçada, carraças de mil patas formigando-lhe no corpo, as orelhas franjadas de pêlos, olhinhos de porco, com musgo na base do chifre, que lhe saía da parte de frente do focinho. (...) Era um animal dos diabos! (...)

- Estou louco de satisfação - confessei."

(Ernest Hemingway, As Verdes Colinas de África, Livros do Brasil, 77-81. Tradução de Guilherme de Castilho. Edição original em inglês de 1935)

 

O passeio dos tristes

Cristina Torrão, 28.06.20

O Venturinha lá andou pelas ruas de Lisboa, com a sua meia dúzia de gatos pingados, atabafadinhos nas suas bandeiras, coitadinhos, que estava frio e não tinham casaquinho. Deve ser a isto que chamam o passeio dos tristes.

Entretanto, prático como só ele é, o grande líder arranjou uma nova utilidade para as máscaras: protecção da barbicha contra a poluição. "Portugal não é racista", terá ele dito, "mas poluído é, sim, um bocadinho".

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Imagem Expresso

Do meu baú (1)

Pedro Correia, 28.06.20

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Se há manchetes que me fazem sorrir é esta. «Túnel debaxo do Tejo entre Beato e Montijo», titulava o Diário de Notícias a 2 de Agosto de 2007. Prevendo já a chamada "terceira travessia" em Lisboa do maior rio português, com base no estudo de avaliação do empreendimento encomendado pela Confederação da Indústria Portuguesa. Segundo esta notícia - publicada vai fazer 13 anos - a travessia, «através de túnel ou ponte», iria situar-se no eixo Beato/Montijo, «em alternativa à [suposta] travessia entre Chelas e Barreiro, permitindo oferecer melhores acessos, sobretudo ferroviários, a um futuro aeroporto naquele local». O estudo resultou da encomenda a um «consultor internacional» cuja entidade não era revelada. 

O primeiro-ministro, à época, era José Sócrates. Que também figurava nesta capa do jornal, em notícia com menor destaque, sob o título «Curso de Sócrates livre de ilegalidades»: a Procuradoria-Geral da República acabara de arquivar um inquérito à licenciatura do chefe do Governo, concluindo que «não houve tratamento de favor». 

Pensamento da semana

Paulo Sousa, 28.06.20

O racionalismo e o ateísmo andam de mão dada.

Só abdicando do princípio racionalista de que a razão é o caminho para a verdade é que um crente se pode definir como tal.

A razão e a ciência no entanto respondem ao "Como funciona" e ao “Como funcionamos” mas não ao "Porquê existe" nem ao “Porquê existimos”.

Estarão as respostas a que a razão não responde apenas à espera de novos avanços científicos, ou existem factos que nunca terão um explicação racional?

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.06.20

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João Campos: «Aquilo que escrevem não é um poste (que diabo, um poste não se escreve!), mas sim um post (em inglês), ou, se quiserem uma tradução gratuita, um artigo. Podem chamar-lhe crónica, também - dá à coisa um ar mais importante. Eu sei que estas coisas são tramadas, que as terminologias vêm todas em inglês, que raramente há traduções directas. Mas se blog passou a blogue de forma mais ou menos pacífica, não será por isso que post passará a poste. Em caso de dúvida, há sempre o itálico.»

 

Eu: «A Desaparecida é o melhor western de todos os tempos - obra-prima absoluta. Um filme sobre um amor impossível, um filme sobre o inapelável peso da solidão. Começa com uma porta aberta, rasgada para a beleza em estado bruto de Monument Valley, quando Martha vê Ethan a cavalgar no horizonte, e termina com o mesmo enquadramento. Só que Martha já não existe. Wayne, que chegara com atraso, parte agora, rumo ao desconhecido. Missão cumprida, é tempo de levantar âncora. Nunca saberemos de onde veio, nunca saberemos para onde vai. Sabemos apenas que, na guerra como no amor, ele se manteve fiel ao que jurou. Quantos poderão dizer o mesmo nas várias vidas que uma vida tem?»

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