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Delito de Opinião

Grandes romances (29)

Pedro Correia, 30.04.20

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OUVIR PARA CRER

A Tia Julia e o Escrevedor, de Mario Vargas Llosa

 

No Peru pobre e provinciano do início dos anos 50, o folhetim radiofónico emergia como rival directo do futebol e da tourada no entretenimento das multidões. Nós, portugueses, bem sabemos o que isto foi: as radionovelas chegaram a ser um dos maiores veículos de preenchimento do ócio numa sociedade com paupérrimos hábitos de leitura e oferta cultural incipiente. Aqui só viriam a ser destronadas em definitivo – com o atraso do costume – quando a RTP, ainda a preto e branco, exibiu a primeira telenovela, com sotaque do Nordeste brasileiro e o selo de qualidade da Globo. O impacto foi a tal ponto que certos episódios da Gabriela conseguiram parar o País.

Eram outros tempos. Que Mario Vargas Llosa recria com talentosa exuberância e um engenhoso sentido de humor neste feliz romance a que chamou A Tia Julia e o Escrevedor. Em alusão a duas das três personagens centrais. A terceira – imberbe jornalista radiofónico e nada esforçado estudante de Direito – é ele próprio, sem disfarce onomástico: os outros chamam-lhe Marito (algo que ele detesta, pois já tem 18 anos) e Varguitas. A família deseja vê-lo advogado, talvez futuro primeiro-ministro; ele alimenta o sonho de escrever romances numas águas-furtadas de Paris.

 

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Realidade e ficção cruzam-se aqui em doses sábias, confundindo o leitor ao ponto de já não imaginarmos onde começa a ficção e terminam os supostos factos reais, que aliás nos parecem inverosímeis. Vargas Llosa teve também uma tia, dez anos mais velha, igualmente chamada Julia: nesse final de adolescência, experimentou ao vivo o percurso e o destino de boa parte das figuras do mundo fictício das radionovelas, movidas por paixões exacerbadas, tingidas de pulsão dramática. Ela era «uma mulher atraente e até esplendorosa», como a recorda o ensaísta Armas Marcelo na sua obra Vargas Llosa – El Vicio de Escribir.

Até que ponto o mundo ficcional contamina o quotidiano em vez de se deixar influenciar por ele? Esta é uma interrogação que percorre todas as páginas do romance, surgido em 1977, quando o futuro Nobel da Literatura já tinha cumprido as suas aspirações de juventude: vivera como pobre aspirante a literato em Paris e tornara-se um escritor célebre, promovido a figura de proa de um selecto clube de novelistas da América de expressão castelhana apostados em mostrar aos fatigados eruditos europeus que a ficção literária permanecia viva e de saúde. A “morte do romance”, proclamada duas décadas antes em França, era manifestamente exagerada.

 

A Tia Julia e o Escrevedor demonstra, melhor que mil ensaios, a existência de vínculos próximos entre o antigo folhetim e a sofisticada novela contemporânea. Não por acaso, romancistas consagrados – Balzac, Tolstoi, Dumas, Dickens, Zola, Twain, Camilo, Eça – experimentaram e cultivaram a técnica do folhetim em várias das suas obras, originalmente publicadas na imprensa. Funcionou como uma excelente escola de aprendizagem para quem, como advertia Hemingway em relação ao jornalismo, soubesse retirar-se dela antes de ficar aprisionado por aqueles enredos submetidos ao “gosto do leitor”.

Dilema que o escrevedor de Llosa nunca sentirá. Pedro Camacho é um boliviano aterrado em Lima que vive para escrever sem jamais ler um livro: o único volume que traz sempre consigo é um dicionário de sinónimos, acompanhado de um caderno com citações. Tem um lema expressivo: «Para a arte não há horário.» Dedica-se a tempo inteiro à escrita de folhetins radiofónicos que também dirige e interpreta: assim molda os sonhos da população que o escuta, desde as pensões mais humildes até ao palácio presidencial, naqueles tempos anteriores à chegada da televisão ao Peru. A audição era o mais importante dos sentidos e não faltava quem acreditasse em tudo quanto ouvia pronunciado aos microfones da Rádio Central.

 

500x.jpg«Começou com quatro folhetins por dia, mas, tendo em vista o êxito, foram aumentando até dez, que eram transmitidos de segunda a sábado, com uma duração de meia hora cada capítulo (…). Nunca aceitava um convite, nunca o ouvi dizer que tinha estado num cinema, num teatro, num desafio de futebol ou numa festa. Nunca o vi ler um livro, uma revista ou um jornal (…). Escrevia com dois dedos, muito rapidamente. Via e não acreditava: nunca parava para procurar uma palavra ou contemplar uma ideia, nunca aparecia naqueles olhinhos fanáticos e saltitões a sombra de uma dúvida.» (pp. 132-134 da versão portuguesa, chancela D. Quixote, com tradução de Cristina Rodriguez).

Camacho, que merece figurar numa galeria das melhores personagens literárias do século XX, «era um ser pequenino e miúdo, mesmo no limite entre o homem de baixa estatura e o anão, com um nariz grande e uns olhos extraordinariamente vivos, onde bulia algo excessivo». Com cerca de 50 anos, confessava nunca ter amado «uma mulher de carne e osso». E não se deixava capturar nas teias do melodrama, que só tecia para consumo externo: «A maior parte das vezes, as chamadas penas do coração, etc, são más digestões, feijões teimosos que não se desfazem, peixe estragado, prisão de ventre. Um bom purgante fulmina a loucura de amor.» (p. 162)

Vargas Llosa, como se parafraseasse Pessoa, chega a fingir ser roteirista de radionovelas para melhor exprimir um certo fascínio pela rudimentar inocência do imaginário folhetinesco. Imita-lhes o estilo, em capítulos alternados deste romance. Com um vocabulário muito próprio, carregado de emoções fortes e de adjectivos extravagantes que se vão intensificando à medida que decorre a leitura. Em divertido contraste com a linguagem comum que predomina naquele quotidiano sem fantasia, ainda assim percorrido por figuras dignas de folhetim: Javier, «um desses homens que conseguem antepor a paixão à vaidade», eternamente embeiçado pela desdenhosa Nancy, prima de Marito, o seu melhor amigo e confidente; Pascual, noticiarista radiofónico, que se limitava a copiar o que lia nos textos da imprensa acrescentando-lhes vários adjectivos; o Grande Pablito, um cinquentão asmático que chega a redactor do Serviço de Informação da rádio sem saber ler nem escrever.

 

Quando o livro foi publicado, alguns críticos de lâmina afiada apressaram-se a designá-lo como «obra menor» no currículo do autor de Conversa na Catedral e A Cidade e os Cães, vergastando-o por ter recorrido a doses imoderadas de amor e humor, mais próprias da literatura de cordel. Incapazes de ler para além da superfície. Incapazes, portanto, de perceber o meticuloso trabalho de reconstituição do imaginário folhetinesco em quase metade dos 20 capítulos deste livro que funcionam como contos autónomos e lhe conferem inegável originalidade no plano formal.

Não apenas tempera esta sucessão de narrativas com os ingredientes clássicos do melodrama como lhes vai conferindo intensidade em galope contínuo. Culminando no desaparecimento de protagonistas e figurantes, engolidos por um terramoto numa sessão radiofónica que emocionou o Peru. E conduzindo ao manicómio, por exaustão cerebral, o autor daquele desvairado tropel, a quem só na loucura prestam a devida homenagem: «Um tipo capaz de matar todas as personagens de uma história é digno de respeito.»

 

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A mestria de Llosa, neste festivo romance sulcado por um fio de ironia que nos lembra o melhor Eça, é recorrer à sinuosa via da ficção mais popular como veículo destinado a celebrar a vida «tal como ela é», para empregar uma expressão popularizada por Nelson Rodrigues, outro escritor com alma de folhetinista. Contrastando a modorra burguesa de estreitos horizontes que caracterizava a capital peruana naqueles anos infestados de proibições decretadas pela ditadura militar com as delirantes efabulações do forasteiro boliviano que punha todo o país colado à telefonia para acompanhar enredos que funcionavam como sucedâneo da realidade.

«Tenho uma espécie de mania realista. Ocorreu-me a ideia de produzir um contraponto à história absurda e delirante das radionovelas de Pedro Camacho. Uma história que fosse muito realista, uma história pessoal, que fosse uma âncora do romance fincada na realidade vivida», justificaria anos depois o escritor, à conversa com o jornalista brasileiro Ricardo A. Setti (Conversas com Vargas Llosa, 1986).

Acontece que a sua história pessoal, sendo verdadeira, parecia trama de ficção. Puro radioteatro. Impensável confusão entre biografia e folhetim. Quanto mais inverosímil, mais emocionante ou divertida – e, num certo sentido, mais verdadeira. Lembrando-nos que a vida é um romance - percorrido por momentos delirantes ou lancinantes de riso e choro, varrido por horas alternadas de partilha e solidão.

 

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Anteriores textos desta série:

 

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de outras eras

O Anjo Mudo - Sem tecto, entre ruínas

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.04.20

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Ana Margarida Craveiro: «A legitimidade popular pode ser usada para evitar a responsabilidade pelos erros políticos cometidos.»

 

Ana Vidal: «Interrompo os clássicos para dar-vos conta de um episódio (recorrente em mim, como já aqui expliquei) que voltou a acontecer-me recentemente. Desta vez, num concerto do grupo Deolinda. Gostei de vê-los/ouvi-los ao vivo e percebi que o seu grande trunfo é a comunicação directa com o público. Não sendo o tipo de música que oiço em casa, reconheço que Ana Bacalhau tem uma fortíssima presença em palco e pôs toda a gente a cantar e a dançar.»

 

José Gomes André: «O Governo recusa-se a cancelar os projectos faraónicos do TGV e do novo aeroporto. No momento actual, esta atitude deve-se a pura teimosia: não só seria demasiado custoso ao PS dar a mão à palmatória, como quase humilhante explicar ao eleitorado o porquê de mais uma traição ao seu programa eleitoral. Nesta contabilidade, o Governo socialista volta a colocar as suas prioridades político-eleitorais à frente dos interesses do país. Que se registe, para memória futura.»

 

Luís M. Jorge: «A blogosfera de Sócrates reconhece que o PSD ultrapassou o PS nas sondagens, mas sublinha que os portugueses não querem eleições antecipadas. Pois não. Não querem os portugueses, nem quer Pedro Passos Coelho. O primeiro-ministro é para cozer em lume brando, até atingir uma consistência levemente cremosa, que cubra o fundo da colher. Chama-se uma redução

"No trates de escribir bonito"

Pedro Correia, 29.04.20

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Um dos melhores conselhos, em matéria de técnica de escrita, foi dado certa vez pelo escritor e pedagogo colombiano Tomás Rueda ao jovem Eduardo Caballero Calderón, que na década de 30 do século XX ensaiava os primeiros passos na literatura.

Disse-lhe o mestre: "No trates de escribir bonito. No dejes que se te vea la gramática."

É um conselho que vale para todas as épocas, para todas as latitudes. A escrita tem muito de pessoal. Tem de irromper sem artifícios. Límpida como a de Borges, depurada como a de Pessoa, torrencial como a de Kerouac. Mas sem pomposidades, sem adstringências.

O estilo diz tudo sobre o seu autor.

Para escreveres bem, evita as frases feitas, as frases batidas, as frases de efeito fácil mas vazias de conteúdo.

Arruma as ideias, escreve como pensas, desvenda-te em cada parágrafo.

Assimila as regras gramaticais evitando sempre a prosa canhestra de mestre-escola.

Escrever é isto.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 29.04.20

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Ana Margarida Craveiro: «Acho muito bem que Passos Coelho mande José Sócrates dar uma volta ao bilhar grande. O entendimento do PSD, enquanto partido de centro-direita, não pode passar por mais socialismo. Foi isso, em parte, que nos meteu nesta embrulhada, e o PSD não pode, nem deve, pactuar com uma solução que, afinal, é parte do problema. Quanto a mais negociações, é como o povo diz: à primeira todos caem, à segunda só quem quer. Qualquer futuro entendimento tem de ter um caderno de encargos e linhas vermelhas bem explícitas por parte do PSD.»

 

João Carvalho: «Um dos convocados para hoje pela comissão de inquérito parlamentar sobre o caso PT/TVI é Zeinal Bava, o homem que tanto dá cartas no mundo da portugalização linguística como no da gestoralização empresarial. Parece que o Parlamento ia aproveitar para testar o novo sistema de tradução simultânea, mas está em apuros: até à hora de fecho deste post, ainda não tinha encontrado um tradutor de portuguesing para língua-de-genting

 

Eu: «Mourinho transformou a sua equipa [Inter de Milão] num intransponível muro de betão. Dando mau espectáculo e condenando ao fracasso o futebol de ataque. Mas carimbou o passaporte para a final. E é por isto que o futebol me parece uma metáfora da política. Não interessa se o espectáculo é feio ou se o desfecho é "injusto". Só os resultados contam.»

A morte, essa perigosa socialista

Teresa Ribeiro, 28.04.20

A turma do resfriadinho está a ficar nervosa. Quer o povo na rua, a bulir, que é para isso que o povo serve, mas o mundo continua paralisado. Muito religiosa, esta seita sempre sacrificou tudo ao seu deus todo poderoso. O deus universal a quem na América chamam dólar e por cá é conhecido por vários nomes: massa, carcanhol, pilim, papel, taco, pastel, graveto, caroço, bago, guito... Quase tudo designações carinhosas, pois como diz a canção, "money makes the world go around".

De facto não há quem o possa negar, até os corações mais empedernidos, que teimam em colocar a vida humana acima da vida empresarial, admitem que não se pode viver muito tempo sem facturar. E é neste equilíbrio de prioridades que agora se está a jogar tudo. Só que não é fácil, pois estamos a falar de uma quadratura do círculo, em que ir trabalhar pode ser um perigo, apesar de ser perigoso não ir trabalhar. Mas já divago...

A turma musculada do resfriadinho considera que já se perdeu demasiado tempo com este choradinho. A Covid-19, afirmam a brandir estatísticas, mata menos que uma gripe vulgar. De facto os números, esses sonsos, servem para provar tudo e o seu contrário, portanto quando a turma do resfriadinho apresenta as suas contas, bate tudo certo.

O problema é quando a senhora da foice chega e lixa tudo. Contra factos não há estatísticas que valham e na pantalha nunca se viu nada assim. Gatos pingados sem mãos a medir, valas comuns abertas em Nova Iorque (dá para acreditar?). No Brasil já se viu familiares enterrar os seus próprios mortos por falta de coveiros disponíveis e até já houve defuntos a sair da pista em hora de ponta e a aterrar no funeral errado. Itália, Espanha, França, Reino Unido, o mundo dito civilizado ficou de joelhos e tudo por culpa dessa senhora que se veste de negro, mas cuja lingerie só pode ser vermelha.

Essa perigosa socialista que - já se percebeu - tem ligações óbvias ao lobby dos ambientalistas, com a sua foice (onde será que pôs o martelo?!), anda a gozar com quem só quer voltar ao business as usual, desacreditando a sua versão dos factos. Mas que estúpida!

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 28.04.20

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Adolfo Mesquita Nunes: «Não é este consenso que salvará Portugal. Nem o acordo político de regime apregoado pelo Presidente da República. Nenhum deles resiste à força da realidade que vivemos.»

 

Ana Margarida Craveiro: «Trinta e seis anos depois, temos um sistema nacional de educação que tem por objectivo a desigualdade de facto. Quem é rico, foge e compra um futuro com mensalidades de ouro; quem é pobre, sujeita-se à falta de respeito pelo trabalho, mérito e esforço. Pobres professores, pobres alunos, pobre país.»

 

Ana Vidal: «Ainda bem que já não estamos "orgulhosamente sós". Mas a verdade é que, pelo caminho, entre as muitas vantagens que ganhámos, alguns princípios fundamentais se perderam. Um deles, para mim o mais importante, é a "velha" noção de Honra. Como se constata pelas escandaleiras nacionais que nos invadem diariamente, em que até as instituições mais sagradas são postas em causa e perderam todo o prestígio, a Honra - tanto a nível particular como colectivo - transformou-se num conceito ultrapassado.»

 

João Carvalho: «A situação é favorável? Não é. É razoável e está controlada? Também não. É má? É. Estamos perigosamente parecidos com a Grécia? Não sei. Acho que estamos parecidos com o barco que se afunda e em que o comandante tranquiliza os passageiros.»

 

Luís M. Jorge: «A culpa das nossas dificuldades é das agências de rating/do Guterres/dos especuladores internacionais. Agora, isto já só lá vai com mais investimento público/mais cortes na despesa. Em qualquer caso, a Alemanha devia pagar-nos.»

 

Eu: «Enquanto o PSD de Passos Coelho trava um ameno diálogo com Sócrates, dispondo-se a encontrar soluções de convergência com o Governo para reduzir o gigantesco défice português, o PSD de Manuela Ferreira Leite continua a conduzir um inquérito parlamentar destinado a demonstrar que o chefe do Governo é um indivíduo que mente, não tem carácter nem merece confiança. Uma situação de pura esquizofrenia política, bem reveladora das duas faces que os sociais-democratas persistem em exibir aos portugueses.»

Associativismo tuga

José Meireles Graça, 28.04.20

Há muitos anos, geria uma fábrica que se dedicava ao fabrico de móveis frigoríficos, que exportava para uma dúzia de países.

Um dia, comecei a ouvir falar do buraco de ozono e dos grandes malefícios que os gases que então se usavam em refrigeração causavam àquele precioso gás, decompondo-o.

A pressão para a substituição do gás acentuou-se e complicados procedimentos para recuperar o gás antigo e não o deixar escapar para a atmosfera, o maldito, em aparelhos velhos, foram sendo postos em prática. Entretanto, apareceram no mercado novos gases que requeriam outros compressores, outros evaporadores e outros condensadores. Tudo era mais caro e implicava investimentos, mas os móveis passaram, com orgulho, a ostentar etiquetas verdes, muito parecidas com as que a concorrência chinesa usava para o mesmo efeito sobre equipamentos com as antigas características – povo empreendedor, não queria desperdiçar os stocks que tinha, que bem os compreendia.

O problema está hoje esquecido, o buraco diminuiu consideravelmente entretanto, não sendo talvez de excluir que o ozono, ou o nível de outra porra qualquer, suba ou baixe anormalmente quando as patentes dos novos gases estiverem perto de caducar, ou quando um laboratório prestigiado vislumbrar uma tragédia ao dobrar da esquina e encontre nas seitas ecológicas eco para estas cavalgarem uma causa fresquinha.

A empresa era sócia da associação do sector. Mas já então tinha sobre o associativismo a mesma opinião que tenho hoje e, podendo sem inconvenientes de maior pôr-me ao fresco para assistir a conferências, workshops, e comparecer a confraternizações e almoçaradas, e mesmo não tendo dúvidas da grande utilidade que semelhantes convívios podiam ter para o efeito de conhecer gente com interesse para lobbying (o nome fino da cunha e do tráfico de influências), não me sobrava a paciência para ouvir teóricos da gestão, bancários, políticos, especialistas disto e daquilo e treteiros sortidos.

De modo que raramente pus os pés fosse no que fosse. Ademais, estas iniciativas do maior interesse (segundo os promotores) tinham lugar invariavelmente em Lisboa. Ora, na altura ainda não havia GPS, absolutamente necessário no meu caso por me acontecer por razões misteriosas, quando me deslocava àquela cidade por outros motivos, ir parar a Queijas.

Sucedeu que no auge da pressão para os industriais do sector se modernizarem, a tal associação enviou uma circular significando a grande necessidade, que cientificamente demonstrava com abundância de explicações, de nos livrarmos do freon, concluindo pela urgência de mudarmos (nós, os empresários) de mentalidade.

À moça que assinava o papel respondi rebatendo ponto por ponto os seus argumentos “científicos” com outros do mesmo jaez mas de fontes diferentes e antagónicas; esclarecendo que já estava a fazer as alterações necessárias, por razões estritamente comerciais; e que me recusava formalmente a permitir que me alterassem a mentalidade com a qual, à época, já convivia pacificamente há mais de três décadas.

Quando chegou a altura de renovar a pertença, declinei; e só voltei a ser sócio de uma associação (outra) muitos anos depois, numa altura em que era conveniente para ter acesso a informação que doutro modo não teria.

A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares apresentou ao Governo, diz a SicN, uma inacreditável proposta de regras (“já validada pela ASAE”) para os restaurantes que inclui delírios como a tomada da temperatura dos clientes, a desinfecção das mãos destes, a obrigatoriedade de marcação prévia e a escolha do menu pelo telemóvel ou em tablet do estabelecimento .

Fui ver ao site para descobrir quem era esta extraordinária gente, mas não se aprende muito: a apresentação é a vulgar declaração sobre os nobres propósitos da agremiação, em prosa da escolaridade obrigatória; e as personalidades que povoam os órgãos dirigentes são naturalmente desconhecidas, mas não aparentam ser gente de avental de serviço e com familiaridade com tachos e panelas.

Vossas Senhorias não percebem o vosso papel: para estabelecer regras de saúde pública que ofendem e humilham as pessoas, ou que dão trabalho escusado, ou que implicam despesas que não seriam necessárias, ou que acrescem à carga de trabalho dos empregados, ou que limitam a quantidade de refeições que se podem servir, não é precisa uma associação: basta um grupo de burocratas qualquer da DGS capaz de copiar normas importadas de outros países, escolhidos de entre os de língua inglesa (francês não entendem e inglês também não, geralmente, mas julgam que sim) que se distingam pela minúcia da regulamentação, somar tudo, acrescentar algumas rodilhices imaginativas, salpicar com multas e fiscalizações,  e servir no legalês prolixo que o político abelhudo de serviço assina de cruz.

Uma associação empresarial, se está do lado do Estado, não está do lado certo. O lado certo é contra o Estado, no vosso caso a defender ferozmente a viabilidade dos restaurantes – os que sobrarem depois do golpe que lhes deram o medo das pessoas, as paragens compulsivas, a insuficiência dos apoios e o descalabro do turismo.

Representais os restauradores, é, anedotas tristes? Valeis ainda menos do que o advogado oficioso que ofereça, em defesa do seu cliente, o merecimento dos autos. Porque este ainda pode contar com a imparcialidade do juiz, que não tem de engolir necessariamente as fabricações do ministério público; e vós, ao Governo que diz mata!, acrescentais esfola.

Diário do coronavírus (9)

Pedro Correia, 27.04.20

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Quando tantos de nós fomos condenados a esta espécie de prisão domiciliária, ainda antes da imposição do inédito estado de emergência, percebi que muita gente amiga se congratulava - dentro da lógica de que devemos ver sempre o que possa haver de bom naquilo que é mau. Gente que se sentia animada por «ter finalmente oportunidade de passar mais tempo em casa», por poder «fazer coisas para que costuma faltar a disponibilidade e a paciência», por «conseguir enfim pôr as leituras em dia».

Afinal, decorridas sete semanas, vou verificando que muitas destas metas ficaram pelo caminho. Porque as pessoas não conseguem desligar-se da necessidade de estarem sempre "conectadas com o mundo", seja lá isso o que for. Porque, mesmo fazendo dieta alimentar, são incapazes de fazer uma dieta de notícias - quase sempre as mesmas, e agora sobre um tema só, repetido até à exaustão dia após dia e trazendo a palavra "morte" sempre a reboque para suscitar o pânico, indutor de gordas audiências. Porque, em matéria de leituras, optam quase em exclusivo por navegar horas sem fim nas chamadas "redes sociais", lendo sobretudo o lixo, reencaminhado pelo cunhado da prima do vizinho da conhecida. 

 

Contra a corrente, imponho a mim próprio uma rigorosa selecção de consumo noticioso. Só escuto quem comprovadamente merece ser escutado, dispenso os sermões dos novos tele-evangelistas agora em voga, mudo de canal assim que me soa a propaganda seja do que for, reservo um tempo máximo para o fluxo informativo. Que, pelo que me vou apercebendo, equivale ao tempo mínimo para muitos outros.

Passo ao lado das opiniões arrebanhadas das "redes sociais", não consumo nem partilho os incontáveis memes que me chegam das mais diversas proveniências, não gasto um minuto com "cenários" que reproduzem outros "cenários", quase sempre de teor apocalíptico, em obediência à mesma lógica de alinhamento dos telediários cá do burgo. Há três meses, ninguém era capaz de prever o que tem vindo a suceder em toda a parte e a directora-geral da Saúde até comunicava ao País que «não há grande probabilidade de um vírus destes chegar a Portugal». Para quê, portanto, dar dois tostões pelo papo furado de tudólogos em risco de desemprego?

 

E, sim, vou conseguindo pôr leituras em dia. Não a "leitura" de vídeos com gatinhos ou das novivelhas anedotas a circular na Net. Nestas sete semanas li doze livros completos - não incluindo, portanto, trechos ou capítulos seleccionados de outros. Sete de autores nacionais, prosseguindo a maratona iniciada há quase um ano. E romances ou novelas que há muito constavam da minha lista de prioridades - títulos como Longe da Multidão, de Thomas Hardy, A Tia Julia e o Escrevedor, de Vargas Llosa, ou O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena.

Verifico agora que cinco destes doze foram releituras. Confirmando uma tendência que tem vindo a acentuar-se: gosto cada vez mais de revisitar livros que noutras épocas me tocaram por algum motivo que pode ou não repetir-se. E elaborando a minha lista muito pessoal de clássicos, sem necessidade de que outros me debitem cânones. Com a certeza antecipada - como garantia Italo Calvino - de que «um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer».

Assim consigo, em boa parte das horas destes meus dias de recluso, colocar o Covid-19 numa prateleira de difícil acesso. Parafraseando o outro, há vida para além do vírus.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 27.04.20

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Ana Margarida Craveiro: «Não sou jurista, nem li o acórdão. Ouvi, como todos, a versão jornalística sobre a absolvição de Domingos Névoa. E, naturalmente, fiquei chocada. A ser exactamente verdade aquilo que foi dito, confirma-se que em Portugal a corrupção não é crime. Ou antes, é um crime impossível de condenar, porque por mais boa vontade que a classe política até possa ter na sua função legislativa, esbarra contra juízes pouco interessados na verdade dos factos.»

 

Luís M. Jorge: «Aqui no salão estamos tod@s contentes. / O Névoa safou-se, o Rui Pedro calou-se / e já há sapatinhos Bottega Lasanha. // @s noss@s amig@s estão em liberdade, / Foi-se o Cravinho e a bruxa da verdade. / Quer preservativos, sua santidade? // O Névoa safou-se, o Rui Pedro calou-se, / e há sapatinhos Bottega Lasanha

 

Eu: «Seis meses depois de ter tomado posse à frente do seu segundo governo, José Sócrates sabe melhor que ninguém que não chegará ao fim da legislatura. A culpa não é dos outros: é dele mesmo. Depois de ter governado quatro anos e meio com maioria absoluta, o primeiro-ministro foi incapaz de perceber que a política é a arte do possível. Ora é impossível governar durante outros quatro anos com a oposição simultânea da esquerda e da direita. E a benevolência do Presidente da República, seja quem for a partir do próximo ano, tem os dias contados.»

Leituras

Pedro Correia, 26.04.20

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«Alguma vez a palavra teria sido inventada se o seu inventor tivesse tido medo de causar problemas? Criar vida significa criar problemas. Só há uma maneira de evitar problemas: é matar as coisas à nascença.»

George Bernard Shaw, Pigmalião (1913)p. 136

Ed. Diário de Notícias, 2003. Tradução de Mário César de Abreu

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