Grandes romances (29)
OUVIR PARA CRER
A Tia Julia e o Escrevedor, de Mario Vargas Llosa
No Peru pobre e provinciano do início dos anos 50, o folhetim radiofónico emergia como rival directo do futebol e da tourada no entretenimento das multidões. Nós, portugueses, bem sabemos o que isto foi: as radionovelas chegaram a ser um dos maiores veículos de preenchimento do ócio numa sociedade com paupérrimos hábitos de leitura e oferta cultural incipiente. Aqui só viriam a ser destronadas em definitivo – com o atraso do costume – quando a RTP, ainda a preto e branco, exibiu a primeira telenovela, com sotaque do Nordeste brasileiro e o selo de qualidade da Globo. O impacto foi a tal ponto que certos episódios da Gabriela conseguiram parar o País.
Eram outros tempos. Que Mario Vargas Llosa recria com talentosa exuberância e um engenhoso sentido de humor neste feliz romance a que chamou A Tia Julia e o Escrevedor. Em alusão a duas das três personagens centrais. A terceira – imberbe jornalista radiofónico e nada esforçado estudante de Direito – é ele próprio, sem disfarce onomástico: os outros chamam-lhe Marito (algo que ele detesta, pois já tem 18 anos) e Varguitas. A família deseja vê-lo advogado, talvez futuro primeiro-ministro; ele alimenta o sonho de escrever romances numas águas-furtadas de Paris.
Realidade e ficção cruzam-se aqui em doses sábias, confundindo o leitor ao ponto de já não imaginarmos onde começa a ficção e terminam os supostos factos reais, que aliás nos parecem inverosímeis. Vargas Llosa teve também uma tia, dez anos mais velha, igualmente chamada Julia: nesse final de adolescência, experimentou ao vivo o percurso e o destino de boa parte das figuras do mundo fictício das radionovelas, movidas por paixões exacerbadas, tingidas de pulsão dramática. Ela era «uma mulher atraente e até esplendorosa», como a recorda o ensaísta Armas Marcelo na sua obra Vargas Llosa – El Vicio de Escribir.
Até que ponto o mundo ficcional contamina o quotidiano em vez de se deixar influenciar por ele? Esta é uma interrogação que percorre todas as páginas do romance, surgido em 1977, quando o futuro Nobel da Literatura já tinha cumprido as suas aspirações de juventude: vivera como pobre aspirante a literato em Paris e tornara-se um escritor célebre, promovido a figura de proa de um selecto clube de novelistas da América de expressão castelhana apostados em mostrar aos fatigados eruditos europeus que a ficção literária permanecia viva e de saúde. A “morte do romance”, proclamada duas décadas antes em França, era manifestamente exagerada.
A Tia Julia e o Escrevedor demonstra, melhor que mil ensaios, a existência de vínculos próximos entre o antigo folhetim e a sofisticada novela contemporânea. Não por acaso, romancistas consagrados – Balzac, Tolstoi, Dumas, Dickens, Zola, Twain, Camilo, Eça – experimentaram e cultivaram a técnica do folhetim em várias das suas obras, originalmente publicadas na imprensa. Funcionou como uma excelente escola de aprendizagem para quem, como advertia Hemingway em relação ao jornalismo, soubesse retirar-se dela antes de ficar aprisionado por aqueles enredos submetidos ao “gosto do leitor”.
Dilema que o escrevedor de Llosa nunca sentirá. Pedro Camacho é um boliviano aterrado em Lima que vive para escrever sem jamais ler um livro: o único volume que traz sempre consigo é um dicionário de sinónimos, acompanhado de um caderno com citações. Tem um lema expressivo: «Para a arte não há horário.» Dedica-se a tempo inteiro à escrita de folhetins radiofónicos que também dirige e interpreta: assim molda os sonhos da população que o escuta, desde as pensões mais humildes até ao palácio presidencial, naqueles tempos anteriores à chegada da televisão ao Peru. A audição era o mais importante dos sentidos e não faltava quem acreditasse em tudo quanto ouvia pronunciado aos microfones da Rádio Central.
«Começou com quatro folhetins por dia, mas, tendo em vista o êxito, foram aumentando até dez, que eram transmitidos de segunda a sábado, com uma duração de meia hora cada capítulo (…). Nunca aceitava um convite, nunca o ouvi dizer que tinha estado num cinema, num teatro, num desafio de futebol ou numa festa. Nunca o vi ler um livro, uma revista ou um jornal (…). Escrevia com dois dedos, muito rapidamente. Via e não acreditava: nunca parava para procurar uma palavra ou contemplar uma ideia, nunca aparecia naqueles olhinhos fanáticos e saltitões a sombra de uma dúvida.» (pp. 132-134 da versão portuguesa, chancela D. Quixote, com tradução de Cristina Rodriguez).
Camacho, que merece figurar numa galeria das melhores personagens literárias do século XX, «era um ser pequenino e miúdo, mesmo no limite entre o homem de baixa estatura e o anão, com um nariz grande e uns olhos extraordinariamente vivos, onde bulia algo excessivo». Com cerca de 50 anos, confessava nunca ter amado «uma mulher de carne e osso». E não se deixava capturar nas teias do melodrama, que só tecia para consumo externo: «A maior parte das vezes, as chamadas penas do coração, etc, são más digestões, feijões teimosos que não se desfazem, peixe estragado, prisão de ventre. Um bom purgante fulmina a loucura de amor.» (p. 162)
Vargas Llosa, como se parafraseasse Pessoa, chega a fingir ser roteirista de radionovelas para melhor exprimir um certo fascínio pela rudimentar inocência do imaginário folhetinesco. Imita-lhes o estilo, em capítulos alternados deste romance. Com um vocabulário muito próprio, carregado de emoções fortes e de adjectivos extravagantes que se vão intensificando à medida que decorre a leitura. Em divertido contraste com a linguagem comum que predomina naquele quotidiano sem fantasia, ainda assim percorrido por figuras dignas de folhetim: Javier, «um desses homens que conseguem antepor a paixão à vaidade», eternamente embeiçado pela desdenhosa Nancy, prima de Marito, o seu melhor amigo e confidente; Pascual, noticiarista radiofónico, que se limitava a copiar o que lia nos textos da imprensa acrescentando-lhes vários adjectivos; o Grande Pablito, um cinquentão asmático que chega a redactor do Serviço de Informação da rádio sem saber ler nem escrever.
Quando o livro foi publicado, alguns críticos de lâmina afiada apressaram-se a designá-lo como «obra menor» no currículo do autor de Conversa na Catedral e A Cidade e os Cães, vergastando-o por ter recorrido a doses imoderadas de amor e humor, mais próprias da literatura de cordel. Incapazes de ler para além da superfície. Incapazes, portanto, de perceber o meticuloso trabalho de reconstituição do imaginário folhetinesco em quase metade dos 20 capítulos deste livro que funcionam como contos autónomos e lhe conferem inegável originalidade no plano formal.
Não apenas tempera esta sucessão de narrativas com os ingredientes clássicos do melodrama como lhes vai conferindo intensidade em galope contínuo. Culminando no desaparecimento de protagonistas e figurantes, engolidos por um terramoto numa sessão radiofónica que emocionou o Peru. E conduzindo ao manicómio, por exaustão cerebral, o autor daquele desvairado tropel, a quem só na loucura prestam a devida homenagem: «Um tipo capaz de matar todas as personagens de uma história é digno de respeito.»
A mestria de Llosa, neste festivo romance sulcado por um fio de ironia que nos lembra o melhor Eça, é recorrer à sinuosa via da ficção mais popular como veículo destinado a celebrar a vida «tal como ela é», para empregar uma expressão popularizada por Nelson Rodrigues, outro escritor com alma de folhetinista. Contrastando a modorra burguesa de estreitos horizontes que caracterizava a capital peruana naqueles anos infestados de proibições decretadas pela ditadura militar com as delirantes efabulações do forasteiro boliviano que punha todo o país colado à telefonia para acompanhar enredos que funcionavam como sucedâneo da realidade.
«Tenho uma espécie de mania realista. Ocorreu-me a ideia de produzir um contraponto à história absurda e delirante das radionovelas de Pedro Camacho. Uma história que fosse muito realista, uma história pessoal, que fosse uma âncora do romance fincada na realidade vivida», justificaria anos depois o escritor, à conversa com o jornalista brasileiro Ricardo A. Setti (Conversas com Vargas Llosa, 1986).
Acontece que a sua história pessoal, sendo verdadeira, parecia trama de ficção. Puro radioteatro. Impensável confusão entre biografia e folhetim. Quanto mais inverosímil, mais emocionante ou divertida – e, num certo sentido, mais verdadeira. Lembrando-nos que a vida é um romance - percorrido por momentos delirantes ou lancinantes de riso e choro, varrido por horas alternadas de partilha e solidão.
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