Sobre a cautela
No tempo em que se começou a ouvir CD's, um amigo explicou-me que os novos leitores dos auto-rádios de então tinham um dispositivo para evitar que quando o carro passasse num buraco o som fosse interrompido. A leitura por laser é tão delicada que à mínima sacudidela a música seria perturbada. Para evitar isso os engenheiros criaram um buffer, que é um amortecedor em tradução directa. Graças a isso o sinal do CD ia sendo acumulado nesse buffer durante uns segundos e se houvesse cortes o som continuaria a fluir nas colunas. A ideia é genial ao ponto de que sem esta explicação facilmente nem nos apercebemos da existência desse dispositivo.
O conceito no entanto é muito antigo. A lenha corta-se e arruma-se no Outono para gastar durante o Inverno, assim como as sementes são enterradas na Primavera para se colher no fim do Verão. No fundo é como quem faz uma poupança. Os mealheiros clássicos representam um porco exactamente porque criar um porco era noutros tempos também uma poupança, um investimento no futuro, um recurso para os contratempos.
A sabedoria popular recomenda isso mesmo, é razoável um esforço para constituir uma reserva. A fábula da formiga e da cigarra retrata bem a atitude de quem prepara o futuro e de quem se esgota no presente.
Todos nós conhecemos pessoas que são demasiado cautelosas e, pelo contrário, outras que são demasiado imediatistas, inconsequentes e até desmioladas, pois perante a mesma realidade cada pessoa faz escolhas diferentes. O mesmo passa-se com os países.
Há uns anos o governo de turno quis criar uma almofada financeira contra possíveis contratempos, um buffer como o dos leitores dos CD's. Por tal coisa ser aberrante essa ideia foi motivo de gáudio gozo.
Com a falta de cautela própria dos incautos, pouco tempo depois chamaram a obediente imprensa para lembrar a todos que gastar no curto prazo, em vez de poupar, tinha sido uma aposta ganhadora.
Nos dias de hoje já sabemos, ou pior ainda nem sabemos, o que está para vir mas sem buffer a música será interrompida.
As desculpas eram previsíveis. Já se encontraram culpados terceiros para a nossa falta de cautela. A culpa da nossa fragilidade é do repugnante holandês, que nem vogais tem no nome. As palmas estavam sempre garantidas.
Os donos da situação exigem solidariedade ao exterior, mas veremos se internamente existirá solidariedade entre trabalhadores do público e do privado.