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Delito de Opinião

Sobre a cautela

Paulo Sousa, 31.03.20

No tempo em que se começou a ouvir CD's, um amigo explicou-me que os novos leitores dos auto-rádios de então tinham um dispositivo para evitar que quando o carro passasse num buraco o som fosse interrompido. A leitura por laser é tão delicada que à mínima sacudidela a música seria perturbada. Para evitar isso os engenheiros criaram um buffer, que é um amortecedor em tradução directa. Graças a isso o sinal do CD ia sendo acumulado nesse buffer durante uns segundos e se houvesse cortes o som continuaria a fluir nas colunas. A ideia é genial ao ponto de que sem esta explicação facilmente nem nos apercebemos da existência desse dispositivo.

O conceito no entanto é muito antigo. A lenha corta-se e arruma-se no Outono para gastar durante o Inverno, assim como as sementes são enterradas na Primavera para se colher no fim do Verão. No fundo é como quem faz uma poupança. Os mealheiros clássicos representam um porco exactamente porque criar um porco era noutros tempos também uma poupança, um investimento no futuro, um recurso para os contratempos.

A sabedoria popular recomenda isso mesmo, é razoável um esforço para constituir uma reserva. A fábula da formiga e da cigarra retrata bem a atitude de quem prepara o futuro e de quem se esgota no presente.

Todos nós conhecemos pessoas que são demasiado cautelosas e, pelo contrário, outras que são demasiado imediatistas, inconsequentes e até desmioladas, pois perante a mesma realidade cada pessoa faz escolhas diferentes. O mesmo passa-se com os países.

Há uns anos o governo de turno quis criar uma almofada financeira contra possíveis contratempos, um buffer como o dos leitores dos CD's. Por tal coisa ser aberrante essa ideia foi motivo de gáudio gozo.

Com a falta de cautela própria dos incautos, pouco tempo depois chamaram a obediente imprensa para lembrar a todos que gastar no curto prazo, em vez de poupar, tinha sido uma aposta ganhadora.

Nos dias de hoje já sabemos, ou pior ainda nem sabemos, o que está para vir mas sem buffer a música será interrompida.

As desculpas eram previsíveis. Já se encontraram culpados terceiros para a nossa falta de cautela. A culpa da nossa fragilidade é do repugnante holandês, que nem vogais tem no nome. As palmas estavam sempre garantidas.

Os donos da situação exigem solidariedade ao exterior, mas veremos se internamente existirá solidariedade entre trabalhadores do público e do privado.

Cercos do Porto, uma tradição

João Pedro Pimenta, 31.03.20

Batalha da Serra do Pilar durante o cerco do Porto (1832) | Porto ...

Quando se sabe hoje que afinal o Porto tem metade dos contaminados que nos atribuíam ontem, a ideia peregrina de fazer um "cerco sanitário" raia ainda mais o absurdo. Ainda por cima na cidade que mais depressa tomou medidas preventivas, como o fecho da maior parte dos serviços, ainda antes da pandemia ser declarada. Devem pensar que é algum tipo de tradição. Já estamos habituados ao método. De século a século, o Porto apanha sempre com um cerco (os dois últimos foram o célebre Cerco em 1833, na guerra civil entre liberais e absolutistas - e à falta de um Fernão Lopes tivemos Garrett e Herculano a testemunhá-lo - e o também cordão sanitário à peste bubónica em 1899). Mas lá porque já temos experiência não quer dizer que tenhamos de levar mais vezes com esta brincadeira, senhora DGS.

Achatamento da curva? Talvez, mas...

João André, 31.03.20

Quando falamos em números de casos e mortes da pandemia, eu normalmente sigo o site que a Johns Hopkins University criou. Ali eles colocam os números de casos e mortes por país, excepto em alguns países maiores e de maior interesse, onde dão também mortes por região ou estado. Tende a ser o site que a maior parte dos jornais que vou lendo vai usando.

Um dos gráficos mais interessantes é o de novos casos por dia. Pode ser visto globalmente, para o mundo inteiro, ou por país. O mesmo para o número cumulativo de casos. Também tem a opção de ver a evolução num gráfico (semi-)logarítmico mas vou deixar isso para outra altura.

Uma coisa que se começa a notar é o achatamento da curva quando olhamos para novos casos (o gráfico vem sob a forma de um histograma, mas não faz diferença para o caso) e parece que estamos a deixar a porção exponencial quando os vemos de forma cumulativa. Olhar para os gráficos da Coreia do Sul dá uma ideia melhor do que estou a falar.

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Gráficos para a Coreia do Sul. Acima o cumulativo, abaixo o diário.

Os gráficos demonstram bem a evolução. Como existiram poucos casos a início, houve depois um rápido aumento, seguido de estabilização e depois uma dimiuição de novos casos, o número dos quais tem sido mais ou menos constante nos últimos tempos. Em parte isto mostra o aumento súbito de casos, mas também aponta para a possibilidade de esse aumento súbito ter surgido de forma mais articial, e ser resultado do aumento do número de testes feito.

Para o caso português, vemos que estaremos agora a estabilizar o número de novos casos diários (ver gráficos). Isto poderia indicar que estamos a atingir o pico de casos no nosso país.

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Gráficos para Portugal. Acima o cumulativo, abaixo o diário.

Há contudo precauções a tomar. Da mesma forma que os casos na Coreia do Sul poderão ter reflectido a súbita disponibilidade de testes, em Portugal o número máximo de casos poderá reflectir apenas o número máximo de testes que o país é capaz de fazer por dia. Se o máximo de testes que for possível fazer em Portugal num único dia andar pelos 800 a 1.000, será esse o número máximo de casos que aparecerão nas estatísticas, mesmo que o número real de novos casos seja de 1.200, 3.000 ou até de meio milhão.

O mesmo pode ser visto para Itália, Espanha ou EUA (gráficos abaixo).

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Gráficos para Espanha. Acima o cumulativo, abaixo o diário.

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Gráficos para a Itália. Acima o cumulativo, abaixo o diário.

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Gráficos para os EUA. Acima o cumulativo, abaixo o diário.

O melhor exemplo de como isto provavelmente será real é o dos EUA. Houve um aumento rápido do número de novos casos diários a início e de repente atingiu-se quase como que um patamar por volta dos 18 a 20 mil casos diários. Certamente que os EUA estarão a testar mais que 20 mil pessoas por dia, mas apenas uma parte terá contraído o vírus. Se a percentagem de pessoas com COVID-19 for mais ou menos estável, o número de novos casos poderá então estar na mesma limitado pelo número de testes administrados. Por exemplo: se 400 mil pessoas forem testadas diáriamente e apenas 5% tiverem o vírus, apenas 20 mil novos casos surgirão. Se fossem 4 milhões, poderíamos ter 200 mil casos diários.

Obviamente que isto é apenas uma hipótese, mas na ausência de outros dados (número de testes por dia, número de testes negativos, etc), é um cenário plausível e, com as notícias que há constantemente pedidos para mais testes, até mesmo provável. Não contemplo aqui as pessoas que terão contraído o vírus e estarão assimptomáticas ou com sintomas muito ligeiros e completamente indistinguíveis dos da gripe, dado que esas pessoas provavelmente não serão testadas.

Concluindo. Devemos ter cuidado com notícias que falam em achatamento da curva ou em estarmos a atingir o pico da crise. É possível (assim o desejo) mas há mais situações a considerar. Vamos vendo caso a caso.

Aprender como (não) se faz

Pedro Correia, 31.03.20

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Os exemplos devem vir de cima. Mas convém que os espanhóis duvidem das boas práticas daqueles que pretendem pastoreá-los. Como se não bastasse haver três membros do Governo infectados com o coronavírus, além da própria mulher do presidente do Executivo, agora até o director do Centro de Coordenação de Alerta e Emergência Sanitária, Fernando Simón, ficou de quarentena por ter sido declarado portador de Covid-19

Vários dos habituais protagonistas das conferências de imprensa diárias sobre a pandemia emitidas a partir do Palácio da Moncloa têm revelado inoportunos assomos de tosse. Pior ainda: por vezes esquecem-se por completo de cumprir as normas sanitárias que eles mesmo proclamam. Aconteceu com o director-adjunto da Polícia Nacional, José Ángel González, que no domingo começou a tossir e de imediato reagiu como a imagem documenta.

Hoje aconteceu o mesmo, também na Moncloa, ao general Miguel Villarroya, chefe do Estado Maior do Exército. Confirma-se: os maus hábitos são contagiosos do lado de lá da fronteira.

Já recomendava o Frei Tomás: façam o que ele diz, não façam como ele faz.

 

ADENDA, às 23.30: José Ángel González, submetido ao teste do coronavírus, acusou positivo. Outra baixa no combate em Espanha. E motivos acrescidos de preocupação a quem estava com ele quando tossiu repetidamente no Palácio da Moncloa. 

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 31.03.20

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João Campos: «Alguém quer explicar como é que se deixa adolescentes acamparem na rua em plena cidade de Lisboa durante dez dias por causa de um concerto, ou isto afinal é a coisa mais normal do mundo e eu (que não tenho filhos, nem me prestaria a tanto para ver uma banda) é que sou antiquado?»

 

João Carvalho: «Chama-se Isabel Moreira e escreve aqui. Escreve, por exemplo, sobre a «dignidade da pessoa humana» (o itálico é meu). Ou seja: escreve sobre a dignidade daquele grupo especial de gente que consegue essa coisa extraordinária de juntar a qualidade de pessoa à qualidade de ser humano. Sim, sim, essa gente especial que não devemos confundir com pessoas que são simples mortais e não seres humanos e menos ainda confundir com seres humanos confrangedoramente vulgares e que nada têm de pessoas

 

Sérgio de Almeida Correia: «Inunda-nos de campanhas de marketing e publicidade. São anúncios fedorentos, logos nas camisolas dos jogadores, jovens a baterem-nos à porta quase diariamente, chamadas telefónicas a oferecerem-nos serviços excepcionais, uma velocidade supersónica na Internet, pacotes e mais pacotes e depois um tipo vai a uma loja da PT, tira uma senha, vê que tem 20 pessoas à frente e ao fim de 10 minutos apercebe-se que durante esse período só terminou o atendimento de uma das pessoas que já estava a ser atendida. Quando se trata de prestar os serviços de que efectivamente necessitamos a PT ou a ZON são iguais. Isto é, são ambas más.»

 

Eu«Defesa do investimento público para afinal se assumir como defensor da privatização dos CTT e da área seguradora da Caixa Geral de Depósitos? Autor de uma série de frases soltas que têm o condão de ser contrariadas pelos factos? Necessidade de uma agenda que o obriga a dizer o mesmo e o seu contrário? "Artificialidade da pose"? "Culto da imagem"? "Ligação ao aparelho"? "Saiu da Jota [JSD] mas a Jota nunca conseguiu sair dele"? Este artigo de Constança Cunha e Sá no Correio da Manhã pretendia visar Pedro Passos Coelho. Mas eu, confesso, li-o como se fosse uma descrição perfeita de José Sócrates.»

A Nação agradece penhorada ao seu Querido Líder

Rui Rocha, 30.03.20

A comunicação social anuncia com grande comoção que o governo patriótico liderado por Costa, o Belo, vai realizar testes "massivos" em lares. Há 10.000 testes para o efeito e far-se-ão 300 (trezentos) por dia. Ou seja, esta grandiosa operação vai demorar 33 (trinta e três) dias. Isto, se este esforço colossal também se realizar aos Sábados, Domingos, Feriados e Dias Santos de Guarda. Caso contrário, será coisa de 40 (quarenta) a 50 (cinquenta) dias. É certo que, decorridos os tais 50 (cinquenta) dias, ainda faltará testar os outros 90.000 velhotes que vivem em lares. Mas, como diria Graça Freitas, nesses casos até pode ser vantajoso porque os negativos dão-nos uma falsa sensação de segurança, né? Isto, tudo somado, não sei se a certa altura não seria melhor que viesse por aí o tal meteorito.

Ficai em casa

jpt, 30.03.20

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Não quero tornar o blog num sucedâneo das mais imediatistas redes sociais, acumulando "mêmes". Mas a esta imagem que encontrei ontem no facebook sinto-a como verdadeira delícia. E uma pérola de propaganda - termo muito desvalorizado e que esta maldita pandemia exige que seja recuperado. 

Ficai em casa! Mesmo que seja óptima a razão para vos juntardes.

 

Conselheiro de Estado

jpt, 30.03.20

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1. Num dia indignamo-nos com as declarações de um ministro holandês sobre as finanças do Estado espanhol, em plena crise desta temível pandemia.

2. No dia seguinte, o Professor Francisco Louçã, conselheiro de Estado e vulto-mor da esquerda "urbana" diz-nos, sobre a referida temível pandemia, que "A Alemanha gosta desta situação", pois "beneficia com estas crises". A tal "esquerda urbana" que o subscreve, e tantos deles seus colegas, anuiu pelo silêncio e - imagino, pois sigo confinado - num "o Louçã tem razão, sim senhor ...".

3. No dia seguinte suicida-se Thomas Schafer, ministro das finanças de Hesse, um dos estados da Alemanha Federal, e seu provável futuro ministro-presidente. Pois, e para além de outros hipotéticos problemas pessoais, se encontrava avassalado com os efeitos económico-financeiros desta ... temível pandemia.

Conselheiro de quê? ..

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.03.20

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João Campos: «Em 2005, nas legislativas antecipadas, votei em Santana Lopes - ganhou José Sócrates. Em 2009, queria que Santana Lopes (uma vez mais) vencesse a corrida à câmara de Lisboa - ganhou António Costa. Preferia que Paulo Rangel tivesse ganho as directas do PSD - venceu Pedro Passos Coelho. À câmara de Odemira, a santa terrinha, votei PSD - venceu PS; na aldeia, votei CDU - venceu o PS. Nas eleições americanas, queria que tivesse ganho McCain - venceu Obama.»

 

Luís M. Jorge: «Durante toda a minha adolescência, e uma boa parte da idade adulta, não desconhecia que no parque Eduardo VII alguns meninos pobres trocavam favores com senhores importantes. Lisboa inteira tratava pelo petit nom deputados e ministros que divagavam à noite entre as alamedas frondosas, aspirando o perfume vivificante das acácias. Quem travou amizades na mailing list do circuito Lux-Frágil pôde discorrer entre vodkas-tónicos sobre as orgias homossexuais de um figurão das noites Lisboetas — eventos cuidadosamente encenados, dizia-se, em que os mais jovens não iam para a cama com o Vitinho.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Saiu hoje a 10ª alteração ao Decreto-Lei n.º 555/99. Dá uma média de uma alteração por ano num regime tão sensível como é o da urbanização e da edificação. Só em papel e tinta é um desperdício. Não há maneira de se estabilizar a produção legislativa neste país. O próximo programa de Governo devia incluir um capítulo sobre isto, devia mesmo ser um ponto de honra do titular da pasta da Justiça. Bem sei que as leis não são imutáveis, mas assim os únicos que ganham com esta situação são os editores de livros jurídicos.»

Aos repugnados dos últimos dias

Paulo Sousa, 30.03.20

A existência ou não dos Corona Bonds dependerá de equilíbrios vários, sendo que, independentemente da abertura que possa vir a haver nos órgãos europeus, cada governante terá de regressar a casa e justificar ao seu eleitorado o que ali terá aceite.

A força política de quem conta, nomeadamente a Alemanha, está limitada não só pela situação politicamente frágil da CDU como pela trajectória eleitoral dos partidos eurocepticos que cada vez estão mais perto do poder.

A existência desse instrumento financeiro tornaria os estados-membros solidariamente responsáveis por essa nova dívida, e isso ainda por cima não encaixa nos tratados europeus. Ultrapassar essa questão formal exigiria uma montanha de formalidades, mas nisso os eurocratas são exímios.

O ponto que se levantaria seria sobre que garantias orçamentais adicionais seriam exigidas aos países financeiramente mais frágeis para que isso alguma vez fosse possível. Não muito metaforicamente o nosso orçamento passaria a ser feito pelos nossos credores.

João Marques de Almeida explica isso com clareza neste artigo do Observador (acesso com assinatura), e quem já cá anda há algum tempo sabe bem que os que mais convictamente agora pedem solidariedade são exactamente aqueles que no dia seguinte se iriam revoltar com a ainda maior interferência de Bruxelas nas nossas contas públicas.

Sol na eira e chuva no nabal é que era mesmo bom. Quem é que não queria?

PS: Estava a escrever o título e lembrei-me de uma certa seita religiosa. E no fundo são mesmo isso, uma seita.

O comentário da semana

Pedro Correia, 29.03.20

«Penso que, como bom funcionário público, está em casa resguardado da peste.

Não é o meu caso.

Hoje tive uma senhora de 94 anos que entrou de cadeira de rodas acolitada pelo filho e pelas duas filhas para se fazerem movimentadores da conta da senhora.

"Sabe, não é por nós, mas com o vírus é melhor para a mãe ter alguém que lhe possa mexer na conta se acontecer alguma coisa."

Acontecendo alguma coisa "à mãe" penso que ela não estará preocupada com o assunto.

Penso que depois de mortos não nos preocupamos com nada.

 

Acho de uma irresponsabilidade tremenda o Banco do Estado (de todos nós como contribuintes) não tomar medidas drásticas, inequívocas.

Enquanto for seguro ir passear para o Banco (não se pode estacionar em Monsanto mas podemo-nos deslocar, alegremente, para uma instituição bancária com 68, 70, 73 e 94 anos de idade para estarmos num ambiente não desinfectado a contaminar e a sermos contaminados.)

A responsabilidade é do Estado.

 

Se é seguro um Banco ter atendimento normal, tudo o resto, também, é seguro.

Qual a lógica de não poder estar dois minutos numa cafetaria para tomar um café e poder estar duas horas num Banco a alterar titularidades de conta?

O "estado de emergência" neste país é uma anedota; como quase tudo.»

 

Do nosso leitor Pedro Oliveira. A propósito deste meu texto.

Diário do coronavírus (5)

Pedro Correia, 29.03.20

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Saio de casa para uma longa volta a pé. Cerca de uma hora a desentorpecer as pernas. Curioso: noto mais gente na rua agora, que vivemos em estado de emergência, do que naqueles dias de reclusão voluntária, antes de ser emitido o decreto presidencial. Se não é, parece. Também o tráfego automóvel aumentou a olhos vistos. Para alguns portugueses, o "exercício físico" esgota-se nos passos que dão para chegar ao carro. 

Há várias mudanças visíveis aqui no bairro - desde logo o encerramento de grande parte dos estabelecimentos comerciais. Outros, como a emblemática geladaria Conchanata, só vendem para fora. Noto, pela primeira vez desde o início da crise sanitária, um par de farmácias sem clientes à porta. Vejo enfim gente nas varandas - algo impensável até há poucas semanas nestes bairros burgueses de Lisboa que mantêm uma relação esquiva com a rua.

Vão surgindo letreiros nas fachadas dos apartamentos, anunciando que estão para arrendar. Há pouco mais de um mês havia enorme pressão da procura, fazendo subir os preços no mercado de arrendamento. Agora a pressão ocorre em sentido inverso. Como as coisas mudam...

 

As pessoas vão reformulando hábitos enraizados. Liga-me um amigo distante, cuja voz é sempre bem-vinda mas há muito não escutava. Lembrou-se de fazer um telefonema por dia a antigos companheiros de várias lides - hoje tocou-me a vez. Palramos mais de meia hora ao telemóvel. Felicito-o pela iniciativa. Vale a pena ser replicada. 

Oportunidade também para pôr leituras em dia. No meu caso, continuando a revisitar autores portugueses do século XX - quase sempre com grande proveito, no capítulo estético e no domínio das ideias. Um destes livros é o magnífico O Malhadinhas, de mestre Aquilino, com a sua saborosíssima e original linguagem vinda dos confins de um Portugal que já morreu: «O bicho homem, quem quer que seja e o quer que faça, tem sempre consigo a mesma peçonha. E esta peçonha sabes o que é? É nunca estar contente com a sua sorte. Quanto mais tem mais apetece, deseja e torna a desejar para logo ou amanhã aborrecer. Como não há-de cansar-se da vida nesta alcatruzada de aborrecer e desejar?»

 

Na minha caminhada matutina, vejo algo inusual: alguém a transportar um gato pela trela. Conheci em tempos um cavalheiro, ali para as bandas do Liceu Camões, que todos os dias dava uma volta assim com o seu tareco. E em Tavira há outro, que até já fotografei. É curioso ver os bichanos domésticos imitarem com tanta fleuma felina os seus rivais canídeos nestes passeios higiénicos. 

Observo cada vez mais gente com máscara. Mas alguns insistem em trazê-la no alto da testa ou descem-nas até ao queixo, como se fosse uma atitude cool ou fashion. Neste põe-e-tira, como se aquilo fosse brinquedo, vão afinal baixando a guarda no combate ao vírus assassino.

Noto ainda que as pessoas tendem a desviar o olhar das outras ao passar por elas. Como se o Covid-19 se transmitisse por contágio visual. É fatal que muitos dos nossos pequenos comportamentos quotidianos perdurem muito para além da presente crise. Arrisco prever que não será para melhor.

 

Mas subsistem sinais de esperança. Num piso térreo, estende-se um lençol com pinturas feitas por crianças que nos garantem: «Vai ficar tudo bem.» Logo depois, no frondoso parque do Inatel, cruzo-me com um jovem casal de sorrisos estampados nos rostos, alheados das dores do mundo.

Vão de mãos dadas, o que me leva a concluir: serão estes os novos gestos subversivos a partir de agora.

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