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Delito de Opinião

Ecologistas da treta

Pedro Correia, 26.08.19

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Lançaram-se agora contra as beatas de cigarros na via pública, dedicando-se a um passatempo que adoram praticar: multiplicar impostos, taxas, coimas e um cortejo de proibições - da colheita mecanizada de azeitonas à noite ao "culto da vaca feliz" (seja lá o que isso for).

São livres de agir assim: cada partido escolhe as suas prioridades consoante a visão de sociedade que propõe aos portugueses e os instrumentos legais adequados para o efeito.

O que não faz o menor sentido é terem aproveitado a tribuna parlamentar, palco privilegiado de promoção política, para darem mais visibilidade a esta iniciativa... enquanto o dirigente máximo do partido, o deputado André Silva, exibia um vistoso garrafão de cinco litros em plástico. Precisamente o material que nos nossos dias provoca mais catástrofes ambientais.

Apetece-me chamar-lhes ecologistas da treta. E faço-o já, antes que concebam uma nova multa também para isto.

Criar memórias

Diogo Noivo, 26.08.19

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Meia hora de voo num teco-teco e outros 20 minutos em barca de pescador. Uma vez instalado na aldeia, percebo que a electricidade é episódica. O aldeão que me acolheu na sua casa sugere-me que não adoeça: não só é desagradável, como o hospital mais próximo está a quase duas horas de distância. Pela mesma razão, avisa que o melhor é não entrar no mar nem no rio: os tubarões-touro gostarão da companhia, mas o sentimento não será mútuo. Banho só no chuveiro. Pede desculpa por iniciar a conversa com avisos, mas esta parte da América Central é pouco meiga com europeus de cidade - não me quis chamar flor de estufa, foi amável.
Neste pedaço de natureza bruta ninguém quer saber de Trump, de Boris, da Comissão Europeia ou de bichos semelhantes. A única geringonça de interesse é a que permite sacar água doce do poço. O ritmo do dia e os afazeres são ditados pela altura do sol e pelas marés. Tudo o resto são realidades longínquas - ou até completamente ignoradas.
Estive caído do planeta e acho que nunca fui tão feliz.

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DELITO há dez anos

Pedro Correia, 26.08.19

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João Carvalho: «Edward Kennedy morreu com um cancro no cérebro, diagnosticado no ano passado e depois de ter sido operado há dois meses. Os EUA perderam um dos seus mais influentes políticos e mais antigos senadores.»

 

Jorge Assunção: «Estabilidade no emprego não é o Estado legislar de forma a garantir que o emprego que tenho é para a vida, utopia não possível de realizar, mas antes procurar soluções que permitam que uma pessoa quando vai para o desemprego possa sair dessa situação o mais rapidamente possível.»

 

Eu: «Outra conquista do regime cubano: os bois vão lavrar os campos, substituindo os tractores. Uma medida que permite poupar combustível e torna a ilha comunista muito mais ecológica, reinventando uma solução que remonta aos confins dos tempos. À atenção dos admiradores domésticos do modelo vigente em Havana desde 1959: meio século depois, eis enfim a materialização do socialismo - tendência Ápis. Uma verdadeira reforma agrária.»

Leituras

Pedro Correia, 25.08.19

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«Em arte não há mistério. Faz as coisas que possas ver, elas te mostrarão as que não podes ver.»

Isak Dinesen, citada por Javier Marías em Vidas escritas (1992)p. 41

Ed. Relógio d' Água, Lisboa, 2018. Tradução de Salvato Teles de Menezes.

Desafio "Museu Salazar"

Cristina Torrão, 25.08.19

Vivendo no estrangeiro, estou um pouco de fora do teor desta polémica, embora já tenha lido algumas alusões pela net. Como sou uma apaixonada pela História (porque acho que só nos conhecemos, se conhecermos a nossa História) e como Salazar e o Estado Novo fazem parte da História de Portugal, decidi dar a minha opinião, principalmente, depois de ler o Editorial do “Público”, por Manuel Carvalho.

Tal como Manuel Carvalho, acho que um "Museu Salazar" não pode ser nunca uma homenagem branqueadora e normalizadora do ditador. Por outro lado, nas democracias não pode haver temas tabus, personagens apagados das fotografias ou lugares de esquecimento, porque isto também serve para branquear a História, apagando, ou fazendo por esquecer, aquilo que nos incomoda. Aliás, Portugal tem muita necessidade de trabalhar certos momentos da sua História de forma rigorosa e o mais objectiva possível.

Um "Museu Salazar" nunca deve ter como propósito homenagear um “grande homem” (como parece afirmar o autarca socialista de Santa Comba Dão), mas deve possuir o objectivo de educar e informar. Isso, sim, seria um centro interpretativo do Estado Novo. Aliás, o nome da instituição devia ser este, por exemplo, ou Museu do Estado Novo, em vez de "Museu Salazar".

Um museu, ou centro, deste tipo, além de fazer um retrato da vida de Salazar, devia, obrigatoriamente, incluir:

- Uma secção sobre a Censura à Imprensa, praticada durante todo o Estado Novo, com imagens de notícias censuradas e informações sobre que tipo de artigos o eram (porque não eram apenas os políticos, também se censuravam notícias de suicídios, por exemplo, ou de crimes familiares).

- Uma secção dedicada ao Tarrafal (com imagens e artigos, talvez vídeos, se os houver) e à perseguição dos comunistas e sindicalistas.

- Uma secção dedicada à PIDE e às prisões de Caxias e Peniche, também com imagens, documentos, descrição das torturas, testemunhos, etc.

- Uma secção dedicada ao assassinato de Humberto Delgado (e a outros crimes que se tenham cometido em relação a opositores do regime).

- Uma secção dedicada à guerra colonial, com fotografias (que não faltam) e, proponho também, vídeos que mostrem, por exemplo, os embarques das tropas, ou as mensagens de Natal que os combatentes enviavam, todos os anos, pela televisão.

Estas são as minhas sugestões. Os historiadores especialistas desta época teriam mais e deviam ser contactados. Para que se fizesse, em Santa Comba Dão, um verdadeiro Museu ou Centro Interpretativo do Estado Novo, que nos oferecesse uma visão aberta da História. De visita obrigatória para estudantes!

Será que o autarca socialista de Santa Comba Dão tem arcaboiço para tal?

O comentário da semana

Pedro Correia, 25.08.19

«Há cerca de dez anos (talvez) ouvi um "labregote" endinheirado inglês, daqueles que vivem de clichés como "conceitos" e "paradigmas", julgo que ligado ao hotel que funciona em Gaia (Yeatman), dar entrevista à SIC (ou RTP?) dizendo qualquer coisa parecida com isto: o Porto, sendo uma cidade do terceiro mundo, ainda não estava apetrechado com as comodidades normais, mas tinha grande potencialidade turística, dado ter uma arquitectura medieval, que o tornava romântico. Nenhum reparo foi feito pelos jornalistas, ou por quem quer que fosse (presumo que o dito tenha achado - um pouco mais tarde -, que o Porto passou ao segundo mundo quando começaram a nascer como cogumelos hostels, bares e restaurantes com pinta de IKEA).

Achei o mesmo que continuo a achar hoje: merecemos. Passamos anos - as últimas décadas -, a desdenhar de nós mesmos e a prestar vassalagem ao que é de fora. A agirmos como "cachicos" subservientes. A desprezar a história e o antigo. A desprezar a tradição do conhecimento. Não podemos exigir que nos respeitem, se deixamos que um qualquer "piolho em camisa lavada", cujo must de civilização é subir a ao deck do septuagésimo segundo andar da "The Shard" para tirar uma selfie, nos venha dar lições sobre civilização.»

 

Da nossa leitora Isabel. A propósito deste texto da Maria Dulce Fernandes.

Blogue da semana.

Luís Menezes Leitão, 25.08.19

Há dez anos que o Ephemera anda, conforme nos diz, literalmente aos papéis, recolhendo com minúcia para memória futura uma documentação imprescindível sobre política e campanhas eleitorais, fazendo-nos recordar na blogosfera os sinais de um tempo passado, que de outra forma facilmente se perderiam. Por esse magnífico trabalho de documentação e pela exposição de imagens de campanhas passadas que todos os dias nos proporciona, o Ephemera é a minha escolha para blogue da semana.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 25.08.19

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Adolfo Mesquita Nunes: «O Estado deve manter o casamento e a união de facto como dois tipos contratuais distintos. No entanto, venho defendendo que esses contratos, no respeito dessa distinção, devem estar abertos à vontade do casal, num sistema de geometria variável, permitindo que um casal em união de facto possa ter o regime que pretende, que pode são ser igual ao casal em união de facto que vive na porta do lado.»

 

João Carvalho: «Fernando Pessoa dizia: «Sê todo em cada coisa. Põe o quanto és no mínimo que fazes.» Isto devia ser seguido por todos nós, como é evidente, mas teria especial importância se fosse levado em conta pela classe política, visto cuidar da coisa pública e ter uma visibilidade a que era suposto corresponder o melhor dos exemplos. Infelizmente, não é assim. Hoje em dia, tenho até por provável que haja muita gente em funções políticas que nunca leu uma linha de Pessoa e alguma com dúvidas sobre quem ele teria sido.

 

Sérgio de Almeida Correia: «Este pequeno texto a recordar Jorge Luís Borges devia ter entrado ontem, dia em que passou mais um aniversário do seu nascimento na Rua Tucumán, de Buenos Aires. Mas como ele é intemporal e há muito conquistou a imortalidade cósmica, aqui fica a sua lembrança. Borges nunca vem tarde.»

 

Eu: «A autoconfiança é um atributo fundamental num político. John Kenneth Galbraith notou certa vez que nunca tinha conhecido um homem tão confiante em si próprio como John Fitzgerald Kennedy – o que serve para explicar grande parte do sucesso do 35º presidente norte-americano, ainda hoje uma das personalidades mais aclamadas do século XX. No fascinante livro The Best and the Brightest, dedicado aos bastidores da presidência Kennedy, David Halberstam mostra-nos outra característica do jovem presidente que acabaria por ser assassinado em Dallas: ele era exactamente como parecia. Ao contrário de outros políticos, que fazem tudo para parecer o que não são, Kennedy tinha uma autenticidade que empolgava os seus adeptos e desarmava os seus adversários.»

Efemérides históricas à volta da formação de Portugal (12)

Cristina Torrão, 24.08.19

Paio Mendes da Maia - Galeria dos arcebispos de Br

Representação de D. Paio Mendes da Maia na Galeria dos arcebispos de Braga

No Verão de 1122 (mais uma vez, não se sabe a data, mas Agosto é um bom símbolo para esta estação do ano), D. Teresa mandou prender o arcebispo de Braga, D. Paio Mendes da Maia. No ano anterior, o clérigo não regressara a Braga, depois de participar no Concílio de Sahagún, optando por se refugiar em Zamora. É de presumir que, já nessa altura, D. Teresa ameaçara mandar prendê-lo, o que denuncia conflitos graves entre os dois.

Paio Mendes, tutor de Afonso Henriques e a quem haveria de ficar sempre muito ligado, era um grande opositor à relação de D. Teresa com Fernando Peres de Trava. O arcebispo de Braga fez acusações muito graves à “rainha”: adultério e incesto duplo, dando assim legitimação religiosa à oposição dos barões portucalenses em relação ao conde galego.

A revolta de D. Teresa é bem notória ao dar a ordem para prender o arcebispo, assim que ele pusesse os pés em Braga, o que aconteceu, no Verão de 1122. Nada se sabe sobre as condições da prisão, mas suponho que não seria um calabouço. Talvez D. Paio Mendes tenha ficado confinado ao seu paço, numa espécie de prisão domiciliária.

Como “rainha”, D. Teresa pretendia dar um sinal da sua autoridade, mas recebeu uma bula do papa Calisto II, ordenando a libertação do arcebispo, sob pena de excomunhão contra si e os seus cúmplices. A seguir, dá-se uma série de acontecimentos, sobre cuja explicação só podemos conjecturar.

A 3 de Novembro desse ano, D. Paio Mendes, já liberto, confirmou a doação do castelo de Soure a Fernando Peres de Trava, pelos bons serviços que a rainha recebera dele, cedendo-lhe ainda o castelo de Santa Eulália e a Villa de Quiaios, em troca do castelo de Gogia (c. Arganil), que, por sua vez, era doado à Sé de Coimbra. Fernando Peres de Trava deixou depois de aparecer nos documentos oficiais da corte portucalense, só voltando a surgir cerca de dois anos mais tarde, em Março de 1125, no foral de Ponte de Lima. Durante este interregno, o infante Afonso e o arcebispo D. Paio Mendes assinaram todos os documentos de D. Teresa (doações, forais, etc.). Os nobres portucalenses, porém, mantiveram-se afastados. Tentemos analisar a situação, escolhendo três pontos essenciais:

Primeiro ponto: D. Teresa liberta D. Paio Mendes. Não lhe restava outra hipótese. Nesta libertação, porém, está implícito o começo de uma amizade, ou, pelo menos, de uma colaboração, pois o arcebispo passa a assinar os documentos oficiais. Terá D. Teresa, na altura da libertação, pedido o perdão do arcebispo, prometendo modificar a sua vida, em troca do apoio do clérigo? E teria o arcebispo imposto, como condição, a sua separação do amante galego?

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Segundo ponto: o afastamento de Fernando Peres de Trava. Segundo Marsilio Cassotti (2008) Fernando e Bermudo Peres de Trava teriam ido em peregrinação à Terra Santa, a fim de mostrar o arrependimento por grandes pecados cometidos. Isto justificaria realmente uma ausência de cerca de dois anos. E como explicar as doações que se fizeram ao conde galego, antes da sua partida, com o beneplácito do arcebispo? Na verdade, estas doações soam a liquidação de serviços prestados a D. Teresa, no fim de uma colaboração à frente dos destinos do condado Portucalense. E consideremos que o castelo de Soure, que lhe era doado, estaria muito devastado, em sequência de ataques almorávidas alguns anos antes, e necessitaria de alguém que o recuperasse. Além disso, reparemos que o castelo de Gogia, até aí, na posse do conde galego, era doado à Sé de Coimbra. Resta saber se esta separação foi exigência do arcebispo, ou se já teria sido combinada entre D. Teresa e D. Fernando Peres. O facto de ele regressar à corte do condado parece indiciar esta última hipótese, ou seja, uma separação temporária, para que a rainha pudesse, entretanto, recuperar aliados.

Terceiro ponto: o regresso de Fernando Peres de Trava. Como foi referido, ele confirmou, em Março de 1125, o foral de Ponte de Lima, assinado igualmente pelo infante Afonso e pelo arcebispo de Braga. Porém, e apesar de se tratar de documento muito importante (a criação de uma vila no coração do Entre-Douro-e-Minho), os maiores magnates do condado mantiveram-se afastados da cerimónia. Aliás, eles mantiveram-se igualmente afastados durante a ausência do conde galego. Se D. Teresa esperava recuperá-los, enviando D. Fernando em peregrinação, enganou-se. Os barões que a tinham abandonado não mudaram de ideias. E, depois do regresso de Fernando Peres, muito menos. A Batalha de São Mamede dar-se-ia três anos mais tarde.

Grandes romances (27)

Pedro Correia, 24.08.19

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ESTA LISBOA DE OUTRAS ERAS

A Escola do Paraíso, de José Rodrigues Miguéis

 

Não é fácil escrever sobre o imaginário infantil sem cair na tentação de recorrer a um fraseado condescendente e pueril. José Rodrigues Miguéis (1901-1980) supera com distinção o teste neste admirável romance em que regressa à sua mais remota infância, decorrida numa Lisboa em grande parte já só existente no nevoeiro das recordações.

Publicado em 1960 pela Editorial Estúdios Cor, a que se manteve fiel durante o longo exílio norte-americano, o autor de Páscoa Feliz devolve-nos nestas páginas à Lisboa em que nasceu e cresceu: foram anos cruciais da nossa vida colectiva, desenrolados na turbulenta década final da monarquia e na convulsa agitação do regime republicano nessa fase em que a palavra “revolução” se banalizara no quotidiano alfacinha.

 

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O pequenino José, o mais novo de três irmãos, assistia ao espectáculo do mundo circunscrito da humilde mansarda onde a família residia, na colina de São Vicente, com o Tejo em fundo. E nós assistimos com ele ao incomparável desfile de personagens que vão entrando e saindo de cena à irregular cadência de um tropel de recordações, em páginas de uma admirável limpidez descritiva, percorridas por diálogos saborosíssimos que o escritor manteve em pousio durante meio século antes de as partilhar connosco.

O enredo não necessitou de ser inventado: foi recriado a partir das minuciosas lembranças daquele país que permaneceu intacto na memória do escritor enquanto Miguéis ganhava a vida como colaborador de jornais e copy desk das Selecções do Reader’s Digest em Manhattan, onde viria a falecer em 1980, com 79 anos incompletos. É, de algum modo, o livro de um expatriado – neste caso de alguém marcado pelo duplo exílio do espaço e do tempo, consciente de que a Lisboa palpitante e popular das suas digressões nostálgicas já pouco se assemelhava à Lisboa enfastiada e burguesa da época em que publicou o livro.

A extensa discrepância temporal entre o experimentado e o fruto dessa experiência revivida em escrita traz um interesse acrescido a este singular romance que Rodrigues Miguéis, fiel ao seu cânone realista, chamou A Escola do Paraíso, em expressa homenagem ao modesto estabelecimento escolar onde aprendeu a juntar as primeiras letras, situado em Alfama, precisamente na Rua do Paraíso. «Por extraordinário que pareça, o Paraíso existe e está ao nosso alcance: ao cimo da calçada, quase ao encontro das três ruas, mas recolhido e ausente.» (p. 37 da 6.ª edição, Editorial Estampa, 1984).

 

aescoladoparaiso[1].jpgÉ um romance edificado a partir de fragmentos desse remoto quotidiano lisboeta – no fundo, um conjunto de crónicas que compõem um mosaico consistente como matéria ficcional e muito revelador enquanto testemunho histórico.

Tudo temperado pelo olhar infantil: arrisco até dizer que, neste sentido A Escola do Paraíso será o melhor romance português centrado na infância – com a sua linguagem muito própria, as suas pequenas alegrias, os seus temores, as suas inquietações, a sua natural ingenuidade, a sua peculiar mundividência construída a partir de experiências alheias e absorvida no incessante processo de aprendizagem dos labirintos da vida.

Esta construção romanesca torna-se ainda mais aliciante devido a um engenhoso artifício de estilo pontuado de pequenos saltos cronológicos e de alternância das formas verbais, fixando o relato numa espécie de presente intemporal que envolve o leitor num abraço cúmplice, tornando-o participante da narrativa. Como se fôssemos contemporâneos destes enredos, como se fôssemos íntimos destas personagens. Começando pelo pequeno Gabriel, falsa terceira pessoa, que por vezes deriva para a primeira do singular, em evidente identificação existencial com o narrador.

Miguéis, excepto na alteração dos nomes, não quer marcar distâncias com a matéria concreta que lhe serve de inspiração romanesca: cá estão o irmão Santiago, a irmã Águeda, a mãe Adélia, o pai-herói Agustín - porteiro de hotel natural da Galiza e desembarcado muito jovem em Lisboa, como tantos da sua região, para fugir à incorporação militar em Espanha e ao consequente envolvimento em conflitos bélicos em Marrocos, Cuba e Filipinas. Mais o esquivo avô Colmeal, que só uma vez rumou lá da terra, em Pombal, para visitar a filha e os netos na capital do reino, quando já dissipara a fortuna acumulada em tempos idos. E o avô Callante, natural de São Tiago de Borbén (Redondela, Pontevedra), que de quando em vez descia da Galiza a Lisboa, distribuindo pelos netos «aquele maravilhoso chocolate galego, negro e duro, em pranchas quadriculadas no papel gorduroso, que a mãe ralava e fervia com leite» (p. 93).

 

Vale a pena seguirmos o percurso desta família residente na velha Lisboa de outras eras, recriada pela talentosa pena de um prosador a que nem o longo desterro de quase meio século desviou da devoção ao idioma materno.

«Não se pode ter nascido ali, viver a ver chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas e o esvoaçar de adeuses no azul, nem ouvir noite e dia estas vozes, sem ficar impregnado de irremediável nostalgia. Tudo isto, o rio imenso, os cais, o mar, os horizontes, se integra nele e ficará para sempre dentro dele como um apelo de longe e uma saudade, anseio de partir de voltar» (p. 23). Miguéis escreve como se falasse de outro, mas é dele mesmo que fala. Do menino que na vida adulta, a partir de 1933, se tornou desterrado por opção profissional e política. À cidade natal foi regressando fisicamente, ancorando aqui por três períodos breves (1946-47, 1957-59, 1963-64) antes do retorno definitivo a Manhattan.

Mas do ponto de vista afectivo e sentimental nunca de cá saiu. Como este livro bem comprova: A Escola do Paraíso é uma declaração perene de amor a Lisboa.

 

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Tornamo-nos íntimos de um incomparável cortejo de personagens: o capador anunciado pelo som da gaita, que bastava para afugentar os gatos; as manas Parreirinhas, frequentando a missa diária sempre de mantilha negra; a tia Zulmira, entoando baladas tristes; o Manuel da Margarida, dono da mercearia, que oferece ao miúdo pirolitos e bolachas Maria; o Zé do Adro, tolhido dum braço; o vizinho Torres, homem de grande estatura para condizer com o apelido; as manas Perliquitetes, «solteiras, levianas, com chapéus arrendados e floridos»; o alfaiate Geadas; a corista Miquelina, que dá que falar na vizinhança; o general Belchior, «sempre atrás das costureirinhas»; o médico António José, «de barba em bico espetada, voz nasalada e quente», que viria a ser Presidente da República.

Enfim, deparamos com uma sucessão de quadros vivos e vibrantes, renascidos na pena arguta do romancista: os moços-de-fretes galegos cruzando as ruas «a carregar andores de trastes empilhados a uma altura assustadora» durante a «estação das mudanças», quando a capital amanhecia «coberta de escritos» nas janelas. Os primeiros automóveis que aceleravam nas ruas alfacinhas, envoltos em nuvens de fumarada e popularmente conhecidos por «mata-gente». Jantares domésticos em dias de festa com ementa assim descrita: «Puré de feijão encarnado com nabiças, lombo de porco assado no forno, arroz doce enfeitado a canela, saúdes com vinho fino.» 

Dando assim consistência à conclusão de David Mourão-Ferreira, atento leitor deste romancista. Na sua perspectiva, Miguéis é «o ficcionista que mais pessoalmente vem realizando, neste século, através da memória e da fantasia, uma íntima, sortílega e variada "reedificação" da própria cidade que lhe serviu de berço.»

 

O menino que se tornava rapaz a tudo assistia, gravando cada imagem, cada som, cada odor nos confins recônditos da memória. Sempre «de olhos abertos para o invisível», como se no mais fundo de si se adivinhasse fadado a plasmar em livro aquelas fugidias reminiscências da primeira infância, conferindo uma segunda vida a tantas figuras há muito desaparecidas da nossa paisagem urbana, hoje cada vez mais semelhante à de tantas outras capitais.

Gente morta e renascida, conferindo-nos a certeza sempre renovada nuns dos méritos da grande literatura: a de ser capaz de nos elevar a patamares de eternidade.

 

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Anteriores textos desta série:

 

O Fim da Aventura - Efémero amor eterno

O Anão - O Infra-homem

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 24.08.19

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João Carvalho: «A tragédia em Albufeira fez aparecer aos olhos do País o ministro do Ambiente. Não uma vez, mas duas vezes. À segunda, chamou a atenção para essa atitude muito nossa de não dar importância à sinalização e declarou: «Quando há um sinal a dizer que uma falésia oferece risco, é porque ela oferece risco.» Nunes Correia (assim se chama o ministro do Ambiente) tem razão. No aviso dito provisório que estava no local do desmoronamento, lia-se: "Zona de perigo". Portanto, quando um aviso diz que uma zona é de perigo, é porque ela é de perigo.»

 

Eu: «ANTÓNIO JOSÉ SEGURO foi considerado o melhor deputado do ano legislativo que agora termina na votação que decorreu de sexta-feira a domingo aqui no DELITO DE OPINIÃO e também no Corta-Fitas. Houve 45 votos, distribuídos desta forma:

António José Seguro (PS) 19
Paulo Rangel (PSD) 13
Nuno Melo (CDS) 9
Francisco Louçã (BE) 4
 
Foi igualmente proposto o nome do deputado comunista Honório Novo, que não teve nenhum voto.»

Poderia Bolsonaro ser deputado do PS?

Tiago Mota Saraiva, 23.08.19

Miranda Calha - deputado eleito nas listas do PS à Assembleia Constituinte, à Assembleia da República nas I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X e XI legislaturas eleito por Portalegre, à XII legislatura eleito pelo Porto e à XIII legislatura eleito por Lisboa - subscreveu com mais 85 deputados do PSD e CDS-PP um pedido de fiscalização sucessiva da lei sobre o direito à autodeterminação da identidade de género. Miguel Morgado, o seu mais destacado promotor, tem vindo a defender que se trata do início de um combate contra a "ideologia de género" termo que, como se sabe, é uma criação da máquina de propaganda de Bolsonaro e enferma de um "ligeiro" problema de rigor científico sobre o qual não me deterei neste escrito.

 

Leonel Gouveia foi eleito em 2013, nas listas do PS, como presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão e é, como se sabe, o grande defensor da ideia que o Estado deve construir um Museu Salazar. Não sei se será a mesma coisa mas, para 2019, já anunciou a realização, com dinheiros municipais, da "requalificação da Escola Cantina Salazar em Centro Interpretativo do Estado Novo".


Sabe-se que, num e noutro caso, a posição oficial do PS é, como seria natural, contrária ao que estes dois destacados militantes defendem. Por outro lado, o PS sempre defendeu que é um partido que aceita a diversidade de opiniões e faz disso uma bandeira. Ora em boa verdade, em todos os partidos há diversidade de opiniões e de formas diferentes elas são, mais ou menos, expressas no espaço público ou no seio do partido. O problema destes dois casos, e haverá outros no PS, não é a sua opinião mas a partir de uma posição pública alcançada nas listas do partido tomarem uma posição política e ideológica (e não opinativa) antagónica e que não pode, nem deve, deixar de comprometer o partido.
Esta qualidade de que o PS se orgulha é uma liberalidade que desrespeita e descredibiliza o voto popular. Quantos votantes do PS no distrito de Lisboa gostarão de saber que o seu voto serviu para eleger um deputado que se juntou à luta contra a "ideologia de género"? Quantos militantes do PS, ideologicamente anti-fascistas, gostarão de saber que um presidente de Câmara eleito nas suas listas é o principal defensor do Museu Salazar?
Um partido não deve ser meramente uma agremiação e gestão de interesses diversos, nem deve ter representantes ou militantes que defendam tudo e o seu contrário. Se é certo que deverá haver margem, maior ou menor, para acolher a diversidade de opiniões em qualquer partido também há que definir limites e fronteiras que o PS parece não ter.
Daí a questão que lanço no título deste post: poderia Bolsonaro ser deputado do PS?