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Delito de Opinião

O baile do acaso

Luís Naves, 31.08.19

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Sempre me fascinou aquela ideia de que existem almas gémeas para cada um de nós e nestes dias modernos até se escrevem algoritmos para tentar iludir o grande baile do acaso em que vivemos e onde é possível que dois parceiros ideais se cruzem muitas vezes no meio da multidão sem jamais se encontrarem de facto. Há quem se apaixone em numerosas ocasiões na vida, há quem infelizmente não tenha ilusões sobre o amor, cada um sofre à sua maneira. Um dia, de forma cruel, podemos encontrar a nossa alma gémea já em fase adiantada dos anos e podemos talvez pensar no que teria acontecido se o destino nos fizesse encontrar a ambos mais cedo, mas será demasiado tarde para desfazer o que foi, as crianças que nasceram e cresceram em vez das que nunca existiram, as memórias que ficaram em vez das que nunca foram inventadas. Sempre me fascinou este mito enraizado de se esconder na escuridão furtiva do tempo aquela pessoa perfeita que era só para nós. Sempre me fascinou o mito de que há uma estação do nosso caminho onde fatalmente nos devemos encontrar os dois, desviando cada um a sua linha de vida, para ser tudo divino até à estação terminal onde morreremos tranquilos, na beatitude do amor autêntico e completo, o único que não passando pelas coisas corriqueiras da biografia humana é, por isso mesmo, inatingível.

Outro livro fora do mercado

Pedro Correia, 31.08.19

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Há pouco mais de um mês fiz um apelo público - aliás motivado por um inquérito sobre leituras de Verão promovido pelo Sapo, em que participei - à aquisição do romance Trabalhos e Paixões de Benito Prada, de Fernando Assis Pacheco. Logo vários leitores, com inegável simpatia, me deram boas pistas para chegar ao livro, o que muito lhes agradeço. Li-o num instante e, como já esperava, é um romance que recomendo sem a menor dúvida - considero-o um dos melhores que se publicaram em Portugal nas últimas décadas do século XX. Julgo que terá sido editado inicialmente pela Asa, depois passou a integrar o catálogo da Assírio & Alvim. Estranhamente, encontra-se ausente das livrarias: nem na recente Feira do Livro de Lisboa consegui vislumbrá-lo.

Agora faço outro apelo, desta vez para encontrar outro romance que se encontra igualmente fora do mercado: Milagre Segundo Salomé, de José Rodrigues Miguéis. Dizem-me na Bertrand que não dispõem sequer de um exemplar em fundo de armazém. Desde a declaração de insolvência da Editorial Estampa, em 2017, as obras deste escritor - um dos maiores prosadores portugueses do século XX - deixaram de estar disponíveis ao público fora das bibliotecas. Ao que me garantem, por supostas desavenças entre os seus herdeiros, algo infelizmente bastante mais comum do que muitos imaginam.

É um delito de lesa-cultura. E eis-me agora, por via disso, à procura dos dois volumes deste Milagre Segundo Salomé. Quem souber fornecer-me alguma pista, será bem-vinda. E declaro-me muito grato desde já.

Os meus heróis têm nome

Sérgio de Almeida Correia, 31.08.19

21543802_Ewj0n[1].jpg(LUSA/KIMIMASA MAYAMA)

 

Um homem com a história de vida de Jorge Fonseca merece todo o respeito do mundo. Um homem com a coragem, a perseverança e o talento de Jorge Fonseca é um campeão. Um campeão para o ser não precisa de medalhas. Jorge Fonseca não precisava de nenhuma medalha para ser um campeão. Mas depois de tudo por que passou, e de tudo o que fez, se ainda consegue ser campeão do mundo de judo no Japão, batendo um outro campeão na final, e arrecadando uma medalha de ouro, isso é a conquista do universo. E um homem que consegue conquistar o universo de uma forma tão simples e humilde como ele o fez, que é como quem diz, conquistar a admiração de todos nós, dentro e fora de portas, é um homem que nos emociona, e que tornando-nos ainda mais pequeninos do que já somos nos faz sentir enormes. Quem tem este condão pode ser tu-cá-tu-lá com todos nós. E como isto não se explica, o Jorge Fonseca tem todo o direito de ser recebido como quer, com toda a gente a dançar, até mesmo pelos pés-de-chumbo. E qualquer que seja o resultado que venha a obter nos Jogos Olímpicos de Tóquio, ele entrou para a galeria exclusiva dos meus heróis. Porque os meus heróis têm nome. Este chama-se Jorge Fonseca e a única coisa que posso dizer-lhe é, na minha língua, que é também a dele, obrigado. Ficar-lhe-ei a dever a vida toda, tal como a muitos outros, mas não me importo, e peço-lhe desculpa pela franqueza. Tão simples quanto isto.

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 31.08.19

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J. M. Coutinho Ribeiro: «As notícias sobre o crescendo de casos de gripe A preocupam-me. É que eu conheço muitas pessoas, mas não conheço ninguém que tenha contraído a doença. E também não conheço alguém que conheça alguém que esteja com gripe A. (...) Nada, de nada, por mais que até conheça pessoas que, deitadas no meu sofá, estarreciam, pedindo-me que lhes lesse na net os sintomas, para ver se convergiam com o mal-estar. Nada, outra vez. Com estas e com outras, fico na dúvida: será que não conheço as pessoas certas, ou será que ainda vai sobrar para mim?»

 

João Carvalho: «Que a TAP apresenta uma "situação financeira crítica" nada tem de novo, para lá da actualização dos números sobre o desastre do costume: no primeiro semestre deste ano, o grupo apresentava 247,2 milhões de euros negativos. Só que isto é bem mais do que os 171,7 milhões de euros negativos com que fechou 2008.»

 

Eu: «Hitler era um antigo admirador de Mussolini. Quando se encontraram pela primeira vez, o alemão ofereceu ao italiano as obras de Nietzsche, o seu filósofo preferido. Estaline, por sua vez, manteve laços diplomáticos com a Roma fascista durante cerca de uma década. E no início dos anos 30 mandou traduzir para russo o Mein Kampf, de Hitler, obra que leu atentamente. Churchill, embora detestasse o líder nazi, chegou a ser um notório admirador de Mussolini. Roosevelt e Estaline estimavam-se mutuamente.»

Férias

Maria Dulce Fernandes, 31.08.19

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Finalmente leve! Trauteio o "We all Stand Together" baixinho, talvez para mangar com os sapos que regressaram aos pântanos fétidos e me deixaram livre. Livre e leve.
Dou comigo a sorrir pelos cantos e penso "Tola, tola, ris de quê?" , de tudo e de nada... é só um sorriso que se rasga espontâneo só porque sabe que pode sorrir.
Azinha, arrumo o dia de hoje na mala à tiracolo e organizo as vitualhas necessárias à queima de energia.
Apesar dos ouvidos agigantarem as batidas fortes e rápidas do coração, não temo as horas que vêm. Sinto-me em paz. Sinto-me leve.
Até a rochosa musculatura que me sustenta, apesar de farta e pesada, esvoaça pela leveza quimérica das ideias, como uma pena com aparo de chumbo.

Boris para o fim-de-semana

jpt, 30.08.19

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(Texto longo, muito mais com o registo de conversa para blog individual mas já que o botei aqui o replico, até porque vamos para o fim-de-semana)
 
Não tenho grandes vínculos com o John Bull. Algum, broken, conhecimento da sua língua. E poucos britânicos contemporâneos realmente me marcaram - Berlin, Leach, Naipaul, Page, Popper, Richards, nenhum deles, e por diferentes razões, um verdadeiro arquétipo appointed by Her Majesty, com a óbvia excepção de Sir Edmund (esta agora foi à João Carlos Espada ...). Mas atrevo-me a opinar, e justifico-o: há mais de uma década que lá tenho família mui próxima queridos amigos, daqui a semanas a minha adolescente filha ali irá cursar a universidade.
 
O que se passará não será uma desgraça para a Grã-Bretanha, e daqui a uns tempos nem se lembrarão das angústias havidas. Mas esta finta ao parlamentarismo é politicamente significante, demonstrativa do processo europeu actual, sinal que vivemos "tempos interessantes". E é ainda mais significante que tal não aconteça na Grécia, Espanha ou Portugal, recentes democracias, ou nas ainda mais recentes das ex-(quase)colónias do Urso Soviético, algumas um bocado trapalhonas. Brota exactamente no cerne histórico da democracia parlamentar. Sinto que isto terá muito mais impacto do que a saída da Grã-Bretanha da União Europeia. "Tempos (ainda mais) interessantes" aí vêm.
 
Para enfrentar este aparente futuro muito haverá para pensar, e definir. Primeiro do que tudo, perceber quais são os problemas. Entre estes estão as formas de recrutamento dos colectivos das lideranças políticas. Num momento em que as capacidades de influenciar o rumo das sociedades se esvaem, em que a soberania efectiva se esgarça, devido à economia mundial e não aos projectos políticos agregadores, quem surge na política? Para simplicar, o problema não é Boris Johnson, nem o "mágico" Steve Bannon. O problema é o tipo David Cameron (quem?). Estes pequenos projectistas de cabotagem  que são recrutados, ascendem, influenciam, e se impõem, gente às vezes sans foi ni loi (como diriam os normandos) mas sempre sem rumo. Grassam, por todo o lado. E não por uma qualquer "crise" de valores, mas devido ao funcionamento do espaço político.
 
Por cá leio vários a defender o gambito de Boris Johnson. Dizem, pressurosos, que é uma acção positiva, tendente ao respeito pelo voto, o resultado do referendo. Correcto. Mas o parlamento também foi votado, donde este argumento é uma óbvia contradição, um pensamento a la carte. É legal, aplaudem. É. Mas não parece nada legítimo. E os ilustres doutos deveriam saber a diferença nada ténue entre os termos. Não haja dúvidas, o encanto com que esta medida de Boris Johnson é acolhida mostra, grita, uma coisa: os seus apoiantes (lusos e não só) não gostam de parlamentos.
 
E o júbilo diante desta versão boreal da Jangada de Pedra do comunista Saramago mostra bem que os seus apoiantes não gostam da União Europeia, querem-lhe a pele. Não a querem melhorar (intensificar ou aligeirar, redireccionar ou estancar), querem-na finda. Nunca percebi qual a razão de portugueses defensores da economia de mercado e da democracia parlamentar tanto detestarem a União Europeia. Talvez tenha sido aquela legislação adversa aos galheteiros públicos. Ou talvez seja a questão da (i)migração. É sempre interessante, no sentido de espantoso, ver doutos portugueses insurgirem-se contra os direitos dos emigrantes. Pois mostra bem que não vêm para além da ponta da respectiva pilinha, perorando que vão num país de emigrantes. Mas não deve ser por causa desta temática da (i)migração. Pois se o fosse discutir-se-iam mudanças nas regulamentações europeias: o livre-trânsito interno, a apetência por mão-de-obra exógena, etc. Mas esse não é o motivo, é apenas o pretexto. 
 
Desde o anúncio da trivela Johnsoniana li vários locutores lusos aplaudindo-a. Insisto, é gente que, de facto, não gosta do parlamentarismo e não gosta da União Europeia. Um destes dias estarão a perorar contra a NATO - de facto já o fizeram quando Trump chegou ao poder e polemizou sobre a organização. Pode-se sorrir e dizer que têm uma agenda política parecida com a do BE e a do PCP! Ou podemos ser um pouco mais analíticos, na senda das teorias da conspiração, e pensar que são teclados putinescos.
 
Mas de facto não são nada disso. São apenas uns ultramontanos "à antiga", uns reaccionários do piorio. Lendo-os - nas redes sociais - vê-se que muitos defendem novas alternativas políticas, como a Iniciativa Liberal, o partido do comentador Ventura, o Aliança (do agora desnorteado Santana Lopes, a fazer tristes figuras de "ocupa"). Eu não estou a dizer que o Iniciativa Liberal (no qual se calhar votarei) ou o Aliança (no qual teria votado se estivesse em Portugal nas últimas eleições) defendem estas posições. Estou a dizer que no seu interior têm estes núcleos, que poderão ser pequenos mas são audíveis - doutos num país de "doutores".
 
Assim, no registo de conversa que é o deste postal (e, a bem verdade, o de todos os postais), o que é necessário é recrutar boas lideranças políticas nos partidos democráticos, gente com algum tino e cuja ambição não seja apenas voluptuosa. E que tenham algum tipo de projecto, nacional e internacional. Um "desígnio", para usar um termo que os seguidores do pensamento de Inês Pedrosa abominam. Seja nos partidos democráticos tradicionais, seja nestes novos. Que não venham Camerons. E cameronzinhos. Que se defenda a democracia parlamentar dos gambitos, trivelas e fintas adversários. E que se defenda a União Europeia, modificando-a, intensificando-a, aligeirando-a, imigrando-a ou não.
 
O que significa, também, refutar, pontapear, o comunismo identitarista, sempre empenhado na demonização da tradição democrática europeia, invectivando o "ocidente", propondo-se a "rever conteúdos culturais", querendo traumatizar para, de facto, apoucar, nisso desfazendo.
 
No nosso país o primeiro passo para isto é simples: arranjar alguém para liderar o PSD, que anda aí aos caídos, decerto que muito devido à tralha militante. Já agora, convém que seja alguém que não surja, a um mês e picos das eleições, em abraços sorridentes ao sucessor de José Sócrates. E em começando por aí continue-se, despertando o CDS da sua condição hospitalar. Ou, porque não?, desliguem-no da máquina. 
 
Pois o estertor dos partidos democráticos, que até pode ter piada para quem ande cansado dos tropeções e aleivosias correntes na política, só terá um desfecho. Piores partidos, piores gentes, piores soluções.
 
Vamos seguir o caso britânico. Ou, como já muitos anunciam, vamos ver o caso inglês. Wait and see ...

Cheeese!

Teresa Ribeiro, 30.08.19

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Muito antes das redes sociais, que nos empurram para uma noção de felicidade mais concorrencial, já nos fotografávamos a sorrir. Há puristas que consideram mentirosas essas fotos sociais e de família, mas eu fui sempre benevolente em relação à questão. Se fotografar é parar o tempo, então é natural que se deseje ter dele o ângulo mais favorável.

Nunca valorizei tanto as mentirosas fotos de família como quando comecei a perder as pessoas que me faziam mais falta. A minha família, como tantas famílias normais, era disfuncional, mas o que preciso reter dela são as imagens que mais combinam com as minhas saudades e essas, são as felizes.

O reflexo de fotografar tudo o que mexe, 365 dias no ano, que veio com os telemóveis, retirou, de alguma forma, estatuto às fotografias. São muitas, demasiadas, acumulam-se, anulam-se, esquecem-se demasiado depressa. É pena. O tempo não gira com mais vagar só porque somos vorazes a fixá-lo. Mas o hábito de mentir para a fotografia mantém-se incólume. A velha necessidade de recriar os momentos que vivemos e de sorrir, sorrir sempre. 

Começou

Sérgio de Almeida Correia, 30.08.19

Estava esta manhã no The Standard. Depois confirmei-o.

Quando um país de 1400 milhões, com um Partido Comunista de 87 milhões de militantes, que governa com pulso de ferro, sem oposição e apoiado num dos maiores e mais sofisticados aparelhos de repressão à escala mundial, precisa de prender um miúdo de 22 anos que ainda há poucas semanas foi libertado da prisão, isso deve querer dizer alguma coisa.

As manifestações da Frente Cívica programadas para o próximo fim-de-semana foram proibidas, a guarnição do Exército Popular de Libertação mudou, e a ameaça de serem colocadas em vigor as leis de emergência do tempo colonial, que serviram para lidar com a crise de 1967, subsequente aos acontecimentos do Star Ferry do ano anterior, volta a estar na ordem do dia. 

Em 1967 morreram 51, pelo que se o objectivo for o de chegar a 1 de Outubro, quando se celebrarem os 70 anos da RPC, com tudo tingido de vermelho ou na prisão, então a estratégia deverá estar certa

A falta de liderança, de bom senso e de inteligência política pagam-se muito caro. Em qualquer lado. E levam décadas a recuperar.

 

(Actualização: Começou e não vai parar tão cedo)

DELITO há dez anos

Pedro Correia, 30.08.19

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Paulo Gorjão: «O que farão os apoiantes de Manuela Ferreira Leite, que andam por aí a dizer de José Sócrates e do PS o que Maomé não disse do toucinho, se a líder do PSD aceitar fazer parte ou liderar um governo de Bloco Central? Nesse mesmo dia demitem-se do PSD (ou assumem a ruptura, no caso dos independentes), ou é apenas mais um sapo -- a juntar a outros -- que engolirão em nome do acesso ao poder, a bem de Portugal, claro?»

 

Eu: «Pina Moura, ex-ministro socialista, elogia o programa do PSD. Paulo Mota Pinto, vice-presidente de Manuela Ferreira Leite, não exclui uma coligação com o PS. A futura política de alianças vai fazendo o seu caminho, entrevista a entrevista. Simplex. Jamais digas jamais.»

O Síndrome do Robocop

Maria Dulce Fernandes, 29.08.19

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O plástico é uma praga.
A máxima de Lavoisier está incompleta. Nem tudo se transforma. Depois de convertida em plástico, a natureza perde a degradabilidade e consequentemente a capacidade de criar vida a partir do pó em tempo útil. Nenhum de nós tem o poder de viver mais de 500 anos para ver extinto todo e qualquer vestígio de pegada ecológica deixada pela poluição devastadora provocada pelo descarte de artefactos de plástico e derivados.
No nosso afã para mantermos a durabilidade das coisas pela arte da plastificação, deixamos de parte a única variável fundamental a qualquer equação em que a incógnita seja a introdução no corpo humano de matéria orgânica polmérica sintética, ou qualquer outra preparação criada in vitro que permita obter uma melhoria no desempenho e na longevidade do corpo.
Qualquer tentativa de plastificar a vida tem apenas resultado na sua anulação.
Qualquer “arte" plástica a que se submeta o corpo tem somente o sucesso efémero que a gravidade lhe permite. É tão normal a nova e renovada forma ficar disforme em curto tempo.
É por isso que, numa época em que toda a informação está disponível em tempo real para quase toda a gente, como se explica o uso e abuso de substâncias “plastificadoras" que incrementam a fisicultura, ao ponto de se morrer por ela?

Ausências

Rui Rocha, 29.08.19

Ontem, quando confrontado por cidadãos com temas concretos, Costa patinou. Na parte conduzida por jornalistas mais interessados na intrigazinha política, passou entre os pingos da chuva. Falta realidade e assertividade na interpelação do poder. A culpa não é só da oposição.

Murmúrios e sussurros

Luís Naves, 29.08.19

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Não me interpretem mal, o sol brilha até com excesso de intensidade e vemos pessoas felizes ou em boa disposição; abrimos as redes sociais e chegam numerosos ecos de vidas satisfeitas e preenchidas; pelas televisões encontramos gente cheia de certezas e os políticos falam com confiança sobre o futuro, que tratam por tu. No entanto, por todo o lado há certos sinais ligeiros de inquietação, como se estivéssemos dentro de um romance negro, um mau romance, digo eu, pois o autor não soube colocar na paisagem brumas perturbadoras, nem o barulho alternado de remadores que se aproximam por um mar invisível, nem vozes sussurradas capazes de despertar receios. Esta história mal contada tem apenas alguns sinais ambíguos de pessoas desconhecidas que nos aparecem de súbito à frente, aparentemente desesperadas ou já sem fôlego; ou aqueles fantasmas que se arrastam sem destino pelos centros comerciais em busca do ar condicionado; ou aqueles velhos muito pobres, tão pobres que nunca fazem de pedintes. Por todo o lado vemos estes pequenos sinais que já não são notícia, da empresa em dificuldades que provavelmente terá de fechar, das vidas gastas, dos alucinados que se põem aos gritos na via pública, enquanto o mundo satisfeito mergulha nas importantes discussões da influência e no triunfo da futilidade.

Adivinhe a que país me refiro

Tiago Mota Saraiva, 29.08.19

1. País em que um primeiro-ministro não eleito pede a um Chefe de Estado não eleito que suspenda o parlamento eleito, em conformidade com a sua constituição.
Dica: não é a Venezuela.

2. País em que um presidente do parlamento decide autoproclamar-se presidente interino, é apoiado por uma parte significativa da comunidade internacional, e procura destituir o Presidente eleito a partir de um acto inconstitucional.
Dica: não é o Reino Unido.

Tempos difíceis

Pedro Correia, 29.08.19

Vivemos tempos difíceis. A todo o momento temos gente a policiar os nossos gestos, os nossos olhares, as nossas palavras, as nossas expressões de escárnio ou de enfado, os nossos hábitos alimentares.

As patrulhas andam aí. Mais ferozes e autoritárias que nunca. Tratam-nos como se vivêssemos em regime de internato, impondo os dogmas da correcção política com fúria punitiva.

Devemos falar como elas falam, comer o que elas comem, desfraldar as mesmas bandeiras, idolatrar os mesmos ídolos. Só assim receberemos atestados de idoneidade que nos salvaguardam do banimento cívico.

 

Vale-me a prosa iconoclasta e dissolvente de Aquilino Ribeiro, que frequento por estes dias, em elegias constantes à boa mesa e à boa cama.

Em trechos como este:
«Estavam de morrer por mais, os infalíveis bolinhos de bacalhau sobre o vinagre, e digno de D. João VI, grande papa-frangos, o polho de grão assado no espeto. Comeram e untaram a barbela, fazendo-lhes dignas honras um palhetinho alegrete e gajeiro de Leitões, colheita do Corregedor

E este:

«O que mais lisonjeia a mulher de parte dum homem em matéria de finezas é que ele a deseje. Desejada de lábios contra lábios, de braços nos braços, de poros nos poros a comunicarem-se toda a lia de que é feita a atracção universal.»

E mais este:

«Capaz de todas as tontarias, sabia por experiência o perigo que há em esbarrar quer na timidez improdutiva quer na audácia espalha-brasas, situações por igual contraproducentes no plano da sedução. Sempre tivera uma certa confiança em si e na imperiosidade de que se acompanham as leis da natureza. Não é que tudo entre homem e mulher se reduz a sexo?»

 

Parágrafos recolhidos desse magnífico romance que é A Casa Grande de Romarigães, esplendoroso tributo à língua portuguesa.

Se escrevesse hoje, estava mestre Aquilino bem tramado.

Efemérides históricas à volta da formação de Portugal (13)

Cristina Torrão, 29.08.19

No Verão de 1184, D. Afonso Henriques deu a mão da filha, a infanta D. Teresa, a Filipe da Alsácia, conde da Flandres.

A história à volta desta filha de D. Afonso Henriques e do conde da Flandres é deveras curiosa. Por vezes, penso que, não se tivesse ela passado em Portugal, mas, por exemplo, na Inglaterra, o romance já teria sido transformado em filme, ou em série, ou nas duas coisas, tornando-se a infanta D. Teresa de Portugal e o conde Filipe da Flandres num dos mais famosos pares amorosos da época medieval.

Afonso Henriques parece ter tido uma relação muito especial com esta filha, que ostentava o nome da avó. Ela permaneceu ao lado do pai até aos trinta e três anos, incomum numa época em que as princesas costumavam casar muito cedo, algumas, ainda crianças. Sobre as razões, nada se pode dizer.

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Afonso I - Óleo de Carlos Alberto Santos

Corria o ano de 1177, quando uma frota de cruzados flamengos, a caminho da Terra Santa e comandada pelo próprio conde Filipe da Flandres, ancorou na cidade do Porto. Afonso Henriques conhecera o pai de Filipe, Teodorico da Alsácia, que, vinte anos antes, passara, pelas mesmas razões, pela costa portuguesa e participara num ataque a Alcácer do Sal. Em 1177, o nosso primeiro rei, com cerca de setenta anos, estava bastante debilitado, devido ao desastre de Badajoz, em que teria ficado gravemente ferido. Já quase não saía de Coimbra, era o seu filho, o futuro D. Sancho I, que se deslocava pelo reino em seu nome. Mesmo assim, decidiu viajar ao Porto, a fim de se encontrar com o conde da Flandres. Afonso Henriques ficara eternamente grato pela ajuda dos cruzados na Conquista de Lisboa. A rota marítima, que passava pela costa portuguesa, continuou a ser muito frequentada e o nosso primeiro rei não perdia uma oportunidade de contactar com os cruzados que fizessem escala num dos portos portugueses.

A infanta D. Teresa, com cerca de vinte e seis anos, acompanhou o pai ao Porto (presume-se que praticamente não saísse do seu lado). E, estando o pai debilitado, foi ela que fez de cicerone a Filipe da Alsácia, mostrando-lhe a cidade e a região. Parece certo que, durante uma semana, a infanta portuguesa e o conde da Flandres conviveram muito. Ter-se-á estabelecido simpatia entre eles? Ou algo mais? Enfim, Filipe da Alsácia era casado. E, passada essa semana, despediu-se da infanta e de seu pai e seguiu viagem.

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Jovem medieval copiada de um anúncio numa revista medieval alemã, há vários anos (o vestuário não é muito compatível com o do século XII, mas serve hoje para representar a infanta D. Teresa, da qual não encontrei imagens)

Cerca de seis anos mais tarde, o conde da Flandres enviuvou. E, sete anos depois da sua passagem pelo Porto, sem nunca mais ter visto Teresa, enviou uma frota a Portugal, pedindo a infanta em casamento e, caso o pai o aceitasse, solicitando que ela viajasse para a Flandres nessa mesma frota.

Historicamente, não existem fontes que expliquem as razões que levaram a este casamento e alguns historiadores admitem que o conde da Flandres tenha ficado bem impressionado com a figura e o porte da infanta. O próprio Afonso Henriques a chegou a apontar como sua sucessora, caso o infante D. Sancho falecesse sem filhos. Em 1172, ao doar o castelo de Monsanto à recém-criada Ordem de Santiago da Espada, Afonso Henriques declarou que os Mestres da Ordem deveriam aceitar nesse castelo a soberania de seu filho Sancho e de sua filha Teresa, si regnum meum tenuerit («se vier a ter o meu reino»). Era a prova de que considerava a infanta, e mais ninguém, como a sucessão alternativa ao filho Sancho.

A infanta D. Teresa partiu para a Flandres nesse ano de 1184 e o rei seu pai morreria no ano seguinte. Já se previa que o seu fim estava próximo. Aquela filha, de trinta e três anos, que nunca se havia separado dele, não o confortou, nos seus últimos momentos, nem assistiu à sua morte. A separação deve ter sido muito difícil para os dois.

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Filipe da Alsácia, Conde da Flandres - estátua na Basílica do Sangue Sagrado, em Bruges. Filipe da Alsácia, que fez várias viagens à Terra Santa, foi um dos cruzados mais famosos do século XII.

Teresa e Filipe não tiveram filhos. E a união acabou por durar apenas seis anos. Filipe embarcou numa nova cruzada, em Setembro de 1190, e morreu, sem ter regressado ao lar, de uma epidemia que atingiu os cruzados durante o cerco a Akkon. Teresa, ou Matilde, como ficou conhecida por aquelas paragens, por identificação com sua mãe, governou a Flandres sozinha durante mais de vinte anos (uma verdadeira representante da avó, de quem herdou o nome). Morreu em 1216, sem filhos, e eu acho uma pena que os governantes da Flandres, a partir do século XIII, não tivessem sido descendentes de D. Teresa e de D. Afonso Henriques. A sorte acabou por calhar a Balduíno V de Hennegau, um parente do falecido Filipe.

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