O liberalismo não é uma ideologia, não é uma doutrina fechada que suscite aplausos acéfalos ou seguidores incondicionais. Em tempo de trincheiras, potenciadas pelas chamadas redes sociais, um liberal à moda antiga – cultor da tolerância, da moderação, da justa medida, da liberdade apenas condicionada ao império da lei – é menos mobilizador do que um populista incendiário apelando ao encerramento das fronteiras. Mas nem por isso deixa de ter a razão do seu lado.
Disto nos fala Mario Vargas Llosa num livro já transformado num marco editorial deste ano em Espanha, onde foi originalmente publicado. La Llamada de la Tribu [“O Apelo da Tribo”] é a autobiografia intelectual do escritor hispano-peruano, galardoado em 2010 com o Nobel da Literatura, desde a sua inicial sedução pelo marxismo até ao seu presente combate contra as tiranias de todos os matizes. Passando pela ruptura com o Partido Comunista, em que chegou a militar durante um ano, na década de 50, enquanto estudante universitário em Lima.
As ideias contam
O autor de obras-primas da literatura universal como Conversa na Catedral e A Guerra do Fim do Mundo é daqueles para quem as ideias contam. E não se inibe de confessar que o seu ideário político foi modificado por influência de um conjunto de pensadores, todos afins ao liberalismo clássico: Adam Smith, Ortega y Gasset, Friedrich von Hayek, Karl Popper, Raymond Aron, Isaiah Berlin e Jean-François Revel. Rende-lhes homenagem num conjunto de ensaios aqui reunidos sob um fio condutor comum, sem esquecer o contributo de escritores antitotalitários que, como ele, foram mestres da ficção enquanto mantinham intervenção cívica e política: Albert Camus, Arthur Koestler e George Orwell.
«O liberalismo é uma doutrina que não tem respostas para tudo, como pretende o marxismo, e admite no seu seio a divergência e a crítica, a partir de um corpo pequeno mas inequívoco de convicções. Por exemplo, que a liberdade é o valor supremo, sem ser divisível nem fragmentária, que é una e deve manifestar-se em todos os domínios – económico, político, social e cultural – numa sociedade genuinamente democrática.» Palavras do Nobel no prefácio a esta obra de leitura imprescindível (tradução minha, a partir do original em castelhano, aguardando-se para breve a edição portuguesa).
Popper e Berlin
O autor de Como Peixe na Água presta especial tributo a dois vultos desta galeria de referências máximas do pensamento liberal: Popper (1902-1994), nascido no Império Austro-Húngaro, naturalizado cidadão do Reino Unido, e Berlin (1909-1997), judeu russo nascido na Letónia nos anos crepusculares do império czarista, igualmente convertido à cidadania britânica na idade adulta.
Chegou a conhecer ambos pessoalmente. Elogia o primeiro por «fazer do exercício da liberdade crítica o fundamento do progresso». Destaca o segundo por lhe ter ensinado que «a tolerância e o pluralismo são, mais do que imperativos morais, necessidades práticas para a sobrevivência da espécie humana». De ambos reteve o conceito de justa medida na relação do indivíduo com a sociedade. Sem esquecer, como lhe ensinou Berlin, que a irrestrita liberdade económica, no século XIX, «encheu de crianças as minas de carvão».
Afastado das cartilhas que o empolgaram na juventude, Vargas Llosa insurge-se hoje contra a ascensão – com novo nomes – do velho «espírito tribal, fonte do nacionalismo», que foi, a par do fanatismo religioso, uma das causas dos mais sangrentos morticínios que a História registou. O melhor antídoto contra as tentações totalitárias, a seu ver, está plasmado em obras como A Riqueza das Nações (de Smith), A Rebelião das Massas (de Ortega), O Caminho da Servidão (de Hayek), A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos (de Popper), O Ópio dos Intelectuais (de Aron) Quatro Ensaios Sobre a Liberdade (de Berlin) ou Como Acabam as Democracias (de Revel).
Autores incómodos, impopulares, que ousaram navegar contra a corrente. Mas a reler sempre, até por isso.
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La Llamada de la Tribu, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara, Barcelona, 2018). 313 páginas.
Classificação: *****
Publicado originalmente no jornal Dia 15