Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Blogue da semana

Alexandre Guerra, 02.09.18

Seja na blogosfera, mas sobretudo nas "redes sociais", os assuntos internacionais (e não só) são muitas vezes abordados de forma leviana e sem qualquer sustentação. Na maior parte dos casos ao sabor dos preconceitos e ideias pré-concebidas de cada um. Aliás, o fenómeno da propagação das "fake news" é um bom exemplo de como os utilizadores e leitores se limitam, muitas vezes, a replicar conteúdos sem qualquer espírito analítico e crítico. Que ninguém se engane, a contra-informação e as "fake news" alimentam-se da ignorância. Por isso, em matéria de relações internacionais, é cada vez mais fundamental deixar de lado o imediatismo fácil da "espuma" das notícias e procurar informação de qualidade em plataformas credíveis, como é o caso da secção de blogues do E-International Relations. Mas há muitas mais, sobretudo associadas a think tanks. 

O comentário da semana

Pedro Correia, 02.09.18

250x[1].jpg

 

«É a própria autora, se bem recordo texto seu ou entrevista sua, quem se coloca razoavelmente à margem do tempo presente e a ele prefere, como referência, esse final do século XIX. Tendo em conta o que foi o século XX português (e não apenas) e o que está a ser o século XXI, pelo menos quanto aos líderes e ao geral e arrogante triunfo da estupidez, do embrutecimento, da venalidade e da superficialidade, essa opção: uma visão oitocentista - sem ignorar as imensas insuficiências e injustiças desse tempo, e sem esquecer o que a evolução tornou básico -, não é necessariamente inferior.

Há evidentemente preconceitos, ideológicos desde logo, que (e será legítimo tê-los) podem barrar liminarmente, resistindo a qualquer argumentação, a aceitação de um autor ou de uma obra. E há a visão portuguesa do antigo - patente por todo o país, nas mentes e no visível - que o toma não como legado, património que enforma também o presente e revela pistas para o futuro, mas como "velho", coisa na melhor hipótese inútil e mero estorvo. E um povo (voluntariamente) sem passado e entregue à bola e pouco mais é coisa que dá imenso jeito.

Há muito século XIX e século XX até essa década de 70 (e até depois), nesse livro? Há, sim senhor. Mas não vem mal ao mundo, creio, em conhecer um pouco mais desses períodos, de gentes desses tempos e da interpretação que deles faça a autora. E concordar e discordar onde isso se nos imponha.

Não será certamente pior do que ignorar, tomando por velharia sem préstimo o que desses tempos nos seja revelado.»

 

Do nosso leitor Costa. A propósito deste meu postal.

Pensamento da semana

Sérgio de Almeida Correia, 02.09.18

Ao longo da vida tenho tido alguma dificuldade em distinguir os cínicos dos hipócritas. Das vezes com que tenho sido confrontado com esses espécimes, normalmente concluo que os primeiros são mais petulantes, mais atrevidos, menos escrupulosos.

Os hipócritas são mais do tipo cobardola, não assumem, disfarçam.

Os cínicos riem muito, gostam da gargalhada fácil, gostam de fazer uma espécie de humor. Por vezes tornam-se mal educados, ordinários, em especial com os que consideram inferiores, porque também gostam de dar nas vistas, de impressionar. E depois riem-se.

Os segundos são mais do tipo sorriso amarelo, sem nunca se comprometerem, gente de meias-palavras, de acordo mas nada de os incluir na lista. Estes não costumam perder a compostura e de preferência silenciam. Que diabo, um tipo tem de ganhar a vida.

Numa linguagem crua e sem rodeios os cínicos são os do género "filho da puta". Não olham a meios para atingirem os seus fins. Os hipócritas assemelham-se mais ao "chico-esperto". Se puderem lá chegar também chegam procurando com todas as suas forças disfarçar a moscambilha. E evitam prejudicar. Os outros não.

São ambos igualmente nojentos, mas só os cínicos são perigosos. Em termos sociais e políticos.

Os cínicos são inteligentes. Os hipócritas normalmente devem pouco à inteligência. Há sempre um pormenor que lhes escapa.

Os hipócritas, como pobres diabos, toleram-se. Os cínicos são insuportáveis. Pela petulância. Devem ser desmascarados, sempre que possível. Sem contemplações. E se possível com alguma perfídia.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana

Não vos queria deprimir

Luís Naves, 01.09.18

Tenho lido numerosos artigos sobre a Hungria com graves erros de interpretação, a ponto de não haver, neste momento, qualquer coincidência entre a realidade e a percepção da nossa opinião pública. Com a lenda à solta, torna-se difícil explicar factos básicos.
Estive recentemente um mês na Hungria, atento ao que se conversava e publicava. O acontecimento mais relevante foi o anúncio, pela BMW, da intenção de construir em Debrecen uma grande fábrica de automóveis. Em 2016, existia no país uma única fábrica automóvel de grande dimensão (Daimler-Benz) e três médias (Audi, Opel e Suzuki). Entretanto, a Audi alargou a sua unidade, que já é maior do que a da Mercedes, e esta última marca começou a construir uma nova fábrica, separada e da mesma dimensão, ao lado da primeira. Com a da BMW, haverá quatro Auto-Europas na Hungria. A partir de 2020, serão exportados mais de um milhão de automóveis por ano, eléctricos e convencionais.
Há seis mil empresas alemãs na Hungria. As razões para este interesse são diversas. O famoso regime ‘iliberal’ do primeiro-ministro Viktor Orbán inclui IRC de 9%, impostos baixos, energia barata, trabalhadores qualificados, ética de trabalho, escolas de engenharia de qualidade, a taxa social única que em Portugal quase derrubou um governo; também se introduziu por lá um flat tax, combateram-se as rendas excessivas, há pouca burocracia, justiça célere, pleno emprego e grande facilidade em despedir. O país está perto dos mercados e muitos trabalhadores falam alemão. Outro factor é a estabilidade: a classe média nunca esteve tão satisfeita, a economia cresce a ritmo superior a 4% e algumas das políticas mencionadas estão na Constituição.
Os fundos comunitários não foram gastos apenas em projectos nacionais, mas têm servido para construir ligações que permitem integrar depressa toda a região. Refiro-me a autoestradas, ferrovias, aeroportos, redes eléctricas, gasodutos, englobando Áustria, Croácia, Eslovénia, Roménia, Eslováquia e Polónia (também Sérvia e Ucrânia). É evidente que dentro de dez anos estaremos a falar de uma zona com mais de cem milhões de consumidores, que irá de Varsóvia a Atenas, de Viena a Istambul, de Milão a Kiev; ou, se quiserem, do Adriático ao Báltico e ao Mar Negro. Isto não são sonhos, mas planos concretos, já em andamento.
Também tive a oportunidade de ver uma lista das cinquenta maiores empresas (muitas são subsidiárias de multinacionais; a Audi, por exemplo, estava em segundo e a Mercedes em terceiro). Havia nesta lista um indicador que considerei extraordinário, o de aumento de capital em 2017: dessas 50, 21 tiveram aumentos de dois dígitos, portanto, mais de dez por cento, e só onze empresas diminuíram o volume de negócios. A lista incluía uma dezena de produtores de componentes de automóvel, onde ainda não estavam as duas gigafábricas de baterias em construção; o resto era indústria farmacêutica, química e energia, muito pouco de serviços, ou seja, tudo muito ‘iliberal’ e ‘putinista’. Julgo que estes dados permitem afirmar que, em Portugal, há comentadores que estão a ver o filme errado.

Srebrenica

Alexandre Guerra, 01.09.18

20180827_144038.jpg

Memorial/cemitério de Srebrenica no passado dia 27/Foto: Alexandre Guerra 

 

Embora há uns anos já estivesse estado num país dos Balcãs, ainda como jornalista numa visita a uma central nuclear na Bulgária, a verdade é que desde os anos 90, com o desmembramento da ex-Jugoslávia e o eclodir do conflito balcânico, o meu interesse por aquela região foi crescendo. Estudei na universidade com alguma intensidade o enquadramento histórico e político daquela zona, numa altura em que se começava a colocar em prática os Acordos de Dayton, celebrados no final de 1995. Há muito que tinha particular vontade de ir conhecer aquela realidade de perto, mais concretamente a Sérvia e a Bósnia, esta última composta por duas entidades: a Federação Bósnia (croata-muçulmana) e a República Srpska (sérvia ortodoxa). Perceber coisas que os livros não me diziam e tentar compreender alguns contornos na relação entre pessoas que outrora fizeram parte de um mesmo país evoluído cultural e industrialmente, mas que não foram capazes de evitar a maior barbaridade na Europa desde a IIGM. E nessa óptica, Srebrenica ficará para sempre com a maior vergonha europeia dos últimos 70 anos, como o maior falhanço da comunidade internacional em solo europeu.  

 

Por esta razão, das minhas andanças pela Sérvia e Bósnia na última semana, a visita a Srebrenica (que outrora tinha sido um enclave muçulmano) representou algo de especial. Não apenas pelo interesse histórico e político, mas sobretudo pelo lado humano. Muito teria para escrever, tanta foi a informação recolhida e que desconhecia (nada como ir aos sítios). Mas, vou deixar os factos de lado, porque o ímpeto para transmitir o que me perpassou pela alma, depois de tudo o que vi e ouvi, é mais forte. Das aulas da universidade, das leituras que tinha feito, das notícias que fui acompanhando ao longo dos anos, conhecia bem a história do genocídio de Srebrenica, uma localidade remota na parte sérvia (República Srpska) da Bósnia, onde há muito queria ir pelo que lá aconteceu e que jamais deve ser esquecido. Entre 11 e 16 de Julho de 1995, naquele enclave muçulmano em zona sérvia ortodoxa, foram assassinados mais de 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks), num massacre sistematizado, comandado militarmente por Ratko Mladic, sob as ordens políticas de Radovan Karadzic. Tudo aconteceu perante a impotência do tristemente célebre contigente holandês de capacetes azuis da ONU estacionado em Potacari, a poucos quilómetros de Srebrenica (para a história, o contingente holandês ficou associado negativamente a estes acontecimentos e ainda hoje, por um certo sentimento de culpa, muitos dos seus soldados acompanham a título pessoal as famílias das vítimas. O próprio Governo holandês apoia diversos projectos solidários. Mas vale a pena estudar com muita atenção tudo o que falhou ao nível da hierarquia de comando da ONU, para se perceber que muito podia ter sido feito para se evitar aquele genocídio, já para não falar que as "rules of engagement" dos soldados holandeses nem sequer lhes permitia disparar em legítima defesa).

 

Desde a II GM que o mundo não via imagens daquelas, uma campanha brutal de limpeza étnica em nome de um projecto nacionalista. Tenho bem presente aqueles terríveis acontecimentos e, por isso, o que mais me impressionou foi confrontar as imagens que tinha guardadas na memória com os locais aparentemente normais onde estive e pensar que tudo aconteceu só há 23 anos, bem perto do coração da Europa (Viena a Sarajevo não chega a 800 quilómetros). Por aqueles locais cometeu-se um extermínio em massa e é muito inquietante lidar com essa "normalidade". Até a empresa de autocarros que transportou sistematicamente centenas de bosniaks para os locais de extermínio ainda opera. Está lá! E perguntamo-nos: Como é possível? É difícil explicar essa "normalidade"... A verdade é que nada pode ser normal numa cidade quase fantasma, onde dantes viviam 40 a 50 mil pessoas e depois da limpeza étnica, através do extermínio ou de abandono forçado, ficaram apenas 12 mil.

 

Impressionou-me o que vi e emocionou-me o testemunho doloroso, ao longo de mais de uma hora, de um homem, na altura criança, que escapou à morte, mas perdeu o pai e o irmão no genocídio. E o mais tocante é que o mesmo surge de passagem num documentário, onde se mostram imagens da altura, com colunas de centenas de pessoas a fugirem de Srebrenica para localidades circundantes. E lá está ela, uma criança assustada, no meio de um conflito que servia apenas um propósito de Slobodan Milosevid: criar entre a Sérvia e a República Srpska uma homogeneidade étnica e religiosa. E o mais dramático é que comparando-se os mapas demográficos de antes de 1992 e depois de 1995, constata-se que a ideia de "grande" Sérvia protagonizada por Milosevic fez uma parte do caminho.

 

Hoje, com uma certa descontracção e ignorância, muito se fala de nacionalismos e de líderes nacionalistas e, por isso, é que trago aqui este texto, porque as pessoas esquecem rapidamente e, muitas vezes, pouco aprendem com a História. O memorial e cemitério das vítimas do genocídio de Srebrenica é impressionante e coloca-nos perante o resultado da mais vil e perversa obra de projectos políticos nacionalistas. Todos os anos, em Julho, são enterrados novos corpos identificados que, entretanto, vão sendo exumados das muitas valas comuns que circundam a área de Srebrenica. Depois de ver Srebrenica e em memória aos que morreram, é cada vez mais forte a minha convicção de que extremismos e nacionalismos devem ser combatidos com todas as nossas forças. Para que, como disse o imã de Potacari na inauguração do memorial/cemitério a 11 de Julho de 2001, "That Srebrenica never happen again, to no one and nowhere".

A descoberta definitiva do mal

Pedro Correia, 01.09.18

250x[1].jpg

 

Houve umas décadas fugazes em que a “paz perpétua” antevista por Kant parecia possível. Na viragem do século XIX para o século XX, floresciam as artes e as letras e as ciências no benigno reinado do Imperador Francisco José (1830-1916). A partir de Viena congregava-se um dos maiores potentados económicos do planeta, com a mais vasta extensão territorial europeia (exceptuando a Rússia, euro-asiática), doze línguas oficiais, cinco religiões reconhecidas, direitos constitucionais consagrados.

 

Das décadas irrepetíveis do multinacional Império Austro-Húngaro, formado em 1867, nos deixaram testemunho grandes autores como Stefan Zewig (em forma memorialística, com o seu monumental O Mundo de Ontem) ou Joseph Roth (em forma de ficção, com o seu excelente romance A Marcha de Radetzky). Naquele mosaico de etnias e culturas emergiram escritores de projecção universal como Arthur Schnitzler, Karl Kraus, Rainer Maria Rilke, Robert Musil, Franz Kafka, Hermann Broch e Sándro Márai, pintores mundialmente consagrados como Gustav Klimt, Oskar Kokoschka e Egon Schiele, compositores aplaudidos nos cinco continentes como Gustav Mahler, Arnold Schoenberg e Alban Berg, pensadores e filósofos tão determinantes como György Lukács, Ludwig Wittgenstein, Karl Mannheim e Karl Popper.

 

Dos dias crepusculares desta efémera idade de ouro que trouxe progresso económico e florescimento cultural ao coração da Europa nos fala uma obra imprescindível, desde já um dos acontecimentos editoriais do ano em Portugal: A Língua Resgatada, primeiro dos três volumes de memórias de Elias Canetti, galardoado em 1981 com o Prémio Nobel da Literatura.

 

Raízes ibéricas

 

Nascido na Bulgária em 1905, numa família de judeus sefarditas com seculares raízes na Península Ibérica (descendente, pela linha materna de apelido Arditti, de astrónomos e médicos judeus da corte de Afonso IV de Aragão), viveu até aos seis anos na cidade natal, Ruse, à beira do Danúbio: ali ouvia diariamente seis diferentes línguas que aprendeu a identificar sem dificuldade. Em casa, a família falava ladino-espanhol, que funcionava como traço identitário dos judeus sefarditas expulsos da Península no século XVI.

 

A tradicional errância judaica marcou a família Canetti (originalmente Cañete, com origem em Cuenca). Aos seis anos, o pequeno Elias rumou com os pais e os dois irmãos mais novos para Manchester. Mas a morte prematura do pai nesta cidade britânica levou a família a transferir-se para Viena, a partir de 1913. Entre a capital do Império Austro-Húngaro e Zurique dividiram-se os anos seguintes do futuro Nobel, que haveria de exprimir-se essencialmente em alemão. Anos de aprendizagem – das primeiras leituras, dos primeiros ensaios literários, do crescimento numa família cheia de ramificações e em larga medida disfuncional. Anos marcados pela sombra da guerra em Viena, que apagaria para sempre as luzes do Império Austro-Húngaro. Anos de uma «plenitude feliz» na neutral Suíça, porto de abrigo de um velho clã marcado pelo êxodo: «Toda a nossa história assentava na nossa expulsão de Espanha.»

 

O centro do mal

 

O centro do mundo visto pelo olhar de uma criança tornada adolescente com maturidade precoce: assim pode ser resumida esta envolvente autobiografia, inicialmente publicada em 1977 e traduzida do alemão original por Maria Hermínia Brandão. A Língua Resgatada suspende-se em 1919, tinha o autor apenas 14 anos: a mais absurda de todas as guerras terminara, com o seu cortejo de 20 milhões de mortos, aquele mundo onde faiscavam luzes tão singulares não voltaria a ser o mesmo: dera-se a descoberta definitiva do Mal.

 

Aguardam-se os próximos dois tomos desta trilogia memorialística onde não se detecta uma palavra a mais. Herança da mãe, que tanto marcou Canetti: «Tinha uma raiva de morte ao palavreado, falado ou escrito, e quando eu ousava dizer alguma coisa inexacta dava-me uma forte reprimenda, sem contemplações.» Um Nobel pode nascer assim

 

............................................................... 
 
A Língua Resgatada, de Elias Canetti (Cavalo de Ferro, 2018). 345 páginas.
Classificação: *****
 
Publicado originalmente no jornal Dia 15

Pág. 10/10