Já é noite e saio do centro comercial, aqui dito xópingue, sotaque do dialecto local, e rumo a casa, mesmo defronte. Quando me chego ao atravessar da rua noto que debaixo da torre de anúncios, falha de iluminação e com cromos em falta, espaços vazios que anunciam a pobreza que circunda, desavergonhada, encostado ao canteiro que lhe é base está um tipo deitado, protegido por um velho guarda-sol de praia, branco na noite. Vou até ele a perguntar-lhe “vai dormir aqui?” e ele que sim, “que é o meu lugar”, conclusão que será só dele, que nunca vi vagabundos por aqui aboletados. Está mal preparado, deitado num pequeno cartão, só um saco de plástico com um qualquer não sei o quê. Pergunto-lhe se já comeu, ele agita-se, sobreergue-se no cotovelo, e que sim e abana na mão esquerda um nota de dez euros, dobrada em quatro, como se ma quisesse dar, “não quero o teu dinheiro”, digo-lhe, abismado, “é o meu lugar este”, reafirma-me, até frenético, tartamudeia e nem o percebo, aterrado vendo-o vendo-me dele concorrente, eu ali, hirsuto todo já branco, uma t-shirt desbotada se calhar já não de hoje, calças de ganga sujas que federão a tabaco, que quando a adolescente nem está até esqueço de tudo isso e do resto, pois para quê?,
fujo dele, reentro no tal xópingue, estou teso demais para comprar uísque mas andarei um pouco, e ao meu encontro vem a minha amiga, afinal ainda ali, jantámos mesmo agora numa espelunca vizinha, eu nem comia há quatro dias, dieta dos achaques, pagou-me ela um qualquer sucedâneo de polvo, intragável e morno, que me soube às mil maravilhas, e toca música no centro, pretenders talvez, nem atento, e diz-me ela, risonha, ainda miúda, sempre bonita, nestes nossos 50s, “zézé, apetece-me dançar contigo” e logo a rodopio mesmo ali, pois claro, enlaçados, e os poucos clientes daquilo do pingo doce olham-nos estranhos, e quem são eles?, apenas clientes, nem sabem que onde são as caixas eram já as hortas dos Olivais bem antes destas construções, ali nos escaparates fui o King of the Pirates do Defoe, o Capitão Morgan e o Corsário Negro e, mais do que tudo, naqueles carreiros de esconder tesouros, onde estão talho padaria e peixaria, fui Jim Hawkins, sou aqui dono da terra, vão-se foder clientes de xópingue, posso bem dançar com as beldades locais, manas que sejam, e por esta o ser, enquanto nos meneamos conto-lhe a história vagabunda e ela ri-se, muito, e nisso perdemos o ritmo, que entre nós os dois também nunca foi muito do aconchegar mas muito mais do ombrear,
e segue ela à sua vida, ainda a rir-se, naquilo do “só a ti, zézé”, e eu, assim, no carinho dela, amornado, regresso a casa. Subo-me à gruta, ao meu quarto andar, a resmungar com o vagabundo e não descanso enquanto não o esqueço. Meia hora depois, filhodamãe do tipo, vou lá abaixo, levo-lhe uns cobertores, almofada e farnel. O gajo desconfia-me, estou irritado e digo-lhe, como se veterano, “estás mal preparado, não podes dormir na pedra”, que o homem está deitado na calçada portuguesa, ele agradece agora, “obrigado pai”, “pai é o caralho” respondo-lhe, que o gajo tem a minha idade, ou até mais, e insisto para que use os cobertores, e “já comeste? Trouxe comida”, mas isso agradece e recusa, diz que comeu e que tem mais, no tal saco de plástico, “trouxe cervejas”, desafio e ele nada, prefere vinho e tem-no. Mas está grato, pergunta-me agora se pode dormir ali e “sei lá eu, que não sou polícia” e nem lhe digo que ali tão exposto está mesmo à mão que o venham expulsar,
e começa ele na arenga dele, que vem de não sei de onde, de um abrigo onde lhe arranjaram uma complicação qualquer, querem-no matar, e bate no braço esquerdo para o realçar, com tal afinco que até o julgo prótese, que homem de braço de prata é muito provável que tenha sido, e queixa-se, que o expulsaram sem razão, e eu que não quero saber a história dele, e ele insiste que o querem matar, que isto é a “quinta guerra mundial”, já vai desabrido, e eu digo-lhe que não, que é mesmo a primeira, só que ainda não acabou.
Depois pergunta-me se pode confiar em mim, e eu que experimente ele, e não é que experimenta?, puxa outra vez da nota de dez euros, e pede-me que lhe vá comprar um maço de tabaco, e “porque não vais tu?”, que não pode, senão roubam-lhe os haveres, o tal guarda-sol, o saco de plástico e o cartão, porra, e afinal era isso que ele queria ao princípio, uma pobre alma que lhe fosse comprar cigarros. E eu lá vou, mas é para trazer um “camel dos verdadeiros, dos amarelos”, sim, dos genuínos, que não me engane eu. Sigo à tabacaria, ainda aberta, ao Camel original, 4, 70 euros. Volto e dou-lho, e ao troco, a nota dos 5 euros e as moedas dos trinta cêntimos. Despeço-me, regresso a casa com o farnel recusado mas o tipo insiste em dar-me os 30 cêntimos, e eu que “não quero o teu dinheiro” e ele empurra-o, quase já em pé, que lho aceite que é “para lhe dar sorte à casa”, àquele recanto de canteiro.
Vou para casa, envergonhado, cabrão de burguês, um poucochinho preocupado, é o que se arranja, uma caridadezinha, mas incapaz de dar tecto ao homem, uma noite que seja, e sei bem que se o levar para casa as mulheres que me visitam me matarão o juízo, e até eu, se num dia menos deprimido, não me perdoarei. A meio da noite estou mesmo lixado com o gajo, que não me deixa dormir, vou à janela, que o tipo está mesmo à frente do meu prédio, e lá está ele, o cabrão, se calhar a dormir, e nem sei onde estão os meus binóculos, aqueles para o Kruger, nem a colecção das velharias, dos avós, militares, mais o de ópera de uma qualquer avoenga, porcelana e isso, onde estarão os binóculos, agora que eu preciso deles?, para o espreitar, que se lixe, vou mas é lá abaixo, desço e “ouve lá” e ele acorda, estremunhado, “quero as minhas coisas, dá-mas de volta”, estou lixado com o gajo, não aceitou o meu farnel, não bebeu as minhas cervejas, “mas porquê?, deste-mas …”, resmunga, até assustado, “não quero o teu dinheiro”, resmungo, e quero devolver-lhe as duas moedas, e ele “é para dar sorte”, e eu, ateu, “não te dá sorte nenhuma” mas já desisti, não quero as coisas de volta, os cobertores e a puta da almofada, mas “quero um Camel dos teus”, e isso já está bem, puxa ele do maço e dá-me um cigarro, e outro para ele, eu sento-me na laje do canteiro e ele alumia-nos com fósforos. Fumo ávido, se calhar como quem já não fuma, e ele “estás doente?” e eu que sim, que “querem-me matar” mas não bato no braço. “Ya!”, e solavanca, “é uma guerra mundial”. “A quinta!, caralho, é a quinta guerra mundial”, respondo-lhe, veemente, irritado, como se ele não perceba tudo isto, vagabundo distraído. “É isso mesmo, é o que eu digo”, defende-se.
Os cigarros acabam e o sacana diz-me que “agora vou dormir”, despacha-me, assim sem mais, e eu fico ali, sem-jeito, ainda a insistir no “toma lá o teu dinheiro”. E ele que nada, que lhe dê eu sorte. Uma nesga que seja, penso, e desisto, todo eu ainda mais. E subo. Para a insónia.