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Delito de Opinião

O problema é que...

Luís Naves, 30.04.18

Entre nós, muitos autores continuam a olhar para Trump como uma perturbação ridícula, para Merkel como a líder do mundo livre, para o Brexit como uma calamidade, para os movimentos populistas como um fenómeno passageiro, para a Europa como um colosso. Julgo que se enganam e que, pelo contrário, vemos sinais de mudanças que ainda não entendemos em toda a sua complexidade, provavelmente em consequência de movimentos sísmicos mais profundos. No caso europeu, as razões da angústia eleitoral começam a ser mais claras: sociedades envelhecidas, com economias pouco dinâmicas ou estagnadas, enfrentam vagas migratórias em larga escala, perante a indiferença das suas próprias elites. Essas sociedades com demografia desfavorável têm de se adaptar depressa a rupturas tecnológicas que tornam a vida futura ainda mais imprevisível. Numa revista alemã, dizia-se quase em nota de rodapé, mas citando números oficiais, que em 2016 uma em cada quatro crianças nascidas na Alemanha tinha mãe estrangeira. Em 2022, a mesma revista estará a escrever que uma em cada quatro crianças na primária tem mãe estrangeira. Em 2034, será um em cada quatro recrutas nas forças armadas (admitindo na imaginação que regressa um improvável serviço militar obrigatório).

O drama de Alfie transformado numa questão fracturante

Alexandre Guerra, 30.04.18

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James Evans, pai de Alfie, recebido pelo Papa Francisco no Vaticano/Foto:Alfies Army/Facebook

 

Alfie Evans não chegou a completar dois anos de vida. Morreu no Sábado de manhã no Hospital pediátrico de Alder Hey, em Liverpool, não conseguindo resistir mais a uma doença degenerativa rara no cérebro, que o tinha condenado a um estado semi-vegetativo. Alfie esteve cerca de um ano nesta condição, ligado a uma máquina de suporte vital, sem qualquer sinal de recuperação. Pelo contrário, os vários exames mostraram que quase todo o cérebro do bebé estava destruído. Para os médicos, nenhum tratamento existente poderia reverter o estado de Alfie e assegurar-lhe uma vida minimamente digna. Por isso, tomaram a difícil decisão de desligar a máquina de suporte vital. Mas o amor imenso dos pais pelo filho sobrepôs-se a qualquer evidência científica, com a esperança a imperar sobre a racionalidade. Dificilmente para um pai ou para uma mãe, poderia ser de outra maneira. E embora a lei inglesa dê aos pais o direito de procurarem o melhor tratamento para os seus filhos, não se trata de um princípio absoluto, visto que se uma entidade pública considerar que essa decisão possa implicar riscos significativos para a criança, então esse mesmo direito parental pode ser contestado.

 

E foi isso que aconteceu a 20 de Fevereiro quando o “High Court” deu razão ao hospital e reconheceu as provas médicas que foram apresentadas, ou seja, de que o pequeno Alfie não tinha salvação e que a ligação à máquina representava um prolongamento artificial da vida, com dor e sofrimento. Os pais do bebé acabaram por recorrer aos tribunais, incluindo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e é partir deste momento que a tragédia do pequeno Alfie começa a assumir contornos fracturantes no seio da sociedade inglesa.

 

No passado dia 23, depois de os pais terem perdido todos os recursos que interpuseram, os médicos desligaram a máquina de suporte vital. Desde então, o debate intensificou-se, com o Papa Francisco e o Estado italiano a prontificarem-se para receber a criança, defendendo que os pais estavam no direito de procurar novos tratamentos para o Alfie. As autoridades inglesas recusaram a possibilidade do bebé viajar para fora do país, apesar das insistentes diligências feitas pelo chefe do Vaticano.

 

Naturalmente, o lado humanista de Francisco impeliu-o a tomar uma posição sobre este assunto, a envolver-se, a sensibilizar-se, mas enquanto chefe da Igreja Católica teve que, obrigatoriamente, assumir este “combate”, perante o primado da ciência e da lei sobre aquilo que, para um crente, pode ser considerado um acto de fé, o de depositar o destino da vida de uma pessoa nas mãos de Deus. Aliás, Francisco, em jeito de aviso, enunciou um princípio conservador e imutável desde a fundação da Igreja: só Deus pode criar e tirar vida. E nas alas mais conservadoras, do outro lado do Atlântico, Newt Gingrich, num artigo na Fox News (onde podia ser mais?) não perdeu tempo ao afirmar que o pequeno Alfie foi “condenado à morte” pelo “assustador Estado britânico secular”. Neste texto particularmente agressivo, Gingrich, uma voz sempre activa em matérias fracturantes nos EUA, volta a lembrar que por causa das correntes progressistas que instituíram governos seculares de esquerda, os “our God-given rights” estão a dar lugar a “direitos” contratualmente estabelecidos com governos tiranos. Embora seja radical no tom, a verdade é que a posição de Gingrich não é (nem podia ser) muito diferente daquela que Francisco e a Igreja adoptaram no âmbito da problemática em torno do drama de Alfie Evans.

 

As questões fracturantes, por norma, tendem a polarizar-se em campos extremos, sendo que é possível encontrar argumentos válidos (ou pelo menos compreensíveis) em ambos os lados do debate. É assim há séculos: progressistas vs conservadores, ciência vs religião, lei vs fé, paixão vs razão… Seja como for, a convivência em sociedade vai-se fazendo através de cedências e negociações, mas não nas questões fracturantes. Para quem as vive e as sente, não há meios-termos, não há compromissos possíveis. Consoante o lado em que se está, há o certo ou o errado, há o moral ou o imoral, há o aceitável ou o inaceitável, há o preto ou o branco… Estes temas assumem contornos dramáticos e emocionais, onde há um vencedor e um perdedor, porque, de certa maneira, reflectem formas de estar em sociedade, das quais as pessoas não podem nem querem abdicar. E quando se trata de legislar sobre as mesmas, muitas das vezes é dada liberdade de voto aos legisladores, sob o argumento de se tratarem matérias de “consciência” individual. 

 

Se partirmos de um modelo de análise em que admitimos que, para as correntes mais conservadoras, a política faz-se sob o primado dos valores, da ética e da moral, e para as áreas mais progressistas, o fenómeno é visto sob a perspectiva positivista e científica – aceitando-se o primado da técnica e da razão –, então é possível enquadrar e antecipar determinados debates. Problemáticas, essas, que na Europa nem sempre são tão inflamadas como nos EUA, mas mesmo assim são fracturantes e criam rupturas. Veja-se, por exemplo, em Portugal, onde nos últimos tempos, temas como a eutanásia ou as “barrigas de aluguer” vieram para o topo da agenda política e mediática. Aliás, se considerarmos o pressuposto acima enunciado, é possível prever, com algum grau de certeza, a tendência de voto de alguns dos legisladores quando o assunto da eutanásia descer ao Parlamento. É também muito provável que, à medida que o dia da votação se aproxime, as diferentes correntes na sociedade façam ouvir a sua voz e se manifestem de forma emocional em diferentes campos.

 

O drama do pequeno Alfie Evans, e todo o debate intenso que suscitou, demonstra que as chamadas questões fracturantes continuam a despertar as convicções mais primárias que existem em cada um de nós, enquanto seres sociais, e que, apesar de uma certa uniformização comportamental nas sociedades ocidentais, há matérias que, pela sua natureza específica, enfatizam apaixonadamente as diferenças dos vários modelos de pensamento.

Azul, que te quero azul

Maria Dulce Fernandes, 30.04.18
“Para vermos o azul, olhamos para o céu. A Terra é azul para quem a olha do céu. Azul será uma cor em si, ou uma questão de distância? Ou uma questão de grande nostalgia? O inalcançável é sempre azul.” 

Clarice Lispector





Fecho os olhos e deixo-me levar. Vou ao sabor da maré do sentimento. Flutuo num caudal pardacento. Vou com a corrente para onde a corrente me levar. Não quero saber. Não me interessa. Não quero acordar nesta realidade  a que a própria realidade me obriga . 

Mudar de espaço físico não é deixar para trás os males do mundo e os meus. É apenas não pensar neles enquanto os sentidos absorvem a novidade.

Cansa a monotonia carregada de um cinzento desespero.








Quero cor.
Quero vida.
Quero azul.


Quase a bater no fundo

Pedro Correia, 30.04.18

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Ao saber-se - ou presumir-se, com base em forte indícios, aliás alimentados com o chocante silêncio do visado - que o antigo Dono Disto Tudo indicou, como figurante no Conselho de Ministros, alguém do seu redil que foi alimentando com choruda prebenda mensal, estamos a um passo de ver a III República bater no fundo. Não é preciso muito mais para fazer cair um regime, já desacreditado por ver um antigo primeiro-ministro, vários gestores de topo e o banqueiro mais influente da nação conduzidos em fila indiana ao banco dos réus.

Felizmente a justiça funciona em Portugal: ela é, neste momento, o principal dique contra o aparecimento de movimentos extremistas e populistas semelhantes aos que proliferam por essa Europa fora e acabarão por desembocar neste cantinho ocidental do continente.

Mais um motivo para que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa reconduza Joana Marques Vidal como Procuradora-Geral da República. Seria arrepiante imaginá-la neste momento a dar lugar a alguém com um perfil idêntico ao de quem a antecedeu neste cargo, que só é prestigiante para quem realmente o sabe prestigiar.

O nosso livro (3)

Pedro Correia, 30.04.18

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«Com algumas excepções, verifico que o "Delito" é escrito por gente de uma geração bem diferente da minha, creio que, na maioria, já oriundos de experiências anteriores na blogosfera. Para quem, como eu, tinha voltado a viver fora de Portugal, neste caso há mais de uma década, o "Delito", até pelo seu saudável hábito de citar e fazer links para outros blogues, sempre funcionou como uma janela sobre um país digital que me era alheio.»

 

Do prefácio de F. Seixas da Costa, intitulado "Palavras Liminares"

O comentário da semana

Pedro Correia, 29.04.18

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«Em Portugal o problema põe-se com a Autoridade Tributária (AT). Muitas vezes é preferível pagar multa por delito inexistente.
Para mim o problema da justiça é a lentidão. Conheço uma senhora que esteve nove anos em processo de partilhas com o ex-marido. Mas ela casou em regime de separação de bens, e os bens que tinha antes do matrimónio foram devidamente inventariados notarialmente, para realizar o acordo antenupcial. Devia ser um processo rápido. Não foi. E durante os nove anos ela ficou impedida de dar o uso que entendesse àquilo que era comprovadamente seu. Não pôde trocar de carro, de casa, vender ou doar património, e mesmo as contas bancárias tiveram limitações. Como tinha meios de arcar com as despesas não cedeu, e ganhou o processo - e colocou o Estado em tribunal, porque pode. Já lá vão uns anos que o processo se arrasta nas instituições europeias.


Alguém com menos meios termina num acordo extrajudicial porque não pode ter a vida “congelada” tanto tempo. A lentidão da justiça beneficia o infractor, e castiga quem não tem meios. Que o diga quem já intentou processos contra o Estado ou grandes corporações.
Quanto a confessar, é apenas parte do processo. A confissão só é aceite como prova se o autor da mesma revelar detalhes que só podiam ser do conhecimento do criminoso. Não é o mesmo que admitir culpa na sequência da investigação.


Em teoria temos um bom sistema judicial. A AT é que mete medo. Se esses, por engano, ou por outra razão, me acusarem de lhes dever 5 milhões, para eu contestar tenho de colocar 5 milhões à ordem da AT. Não tendo eu nem 1 milhão, como contesto?

Na prática só me resta ficar sem nada e ir preso.

Fui intimado pela AT porque comprei uma casa e nesse ano fiscal não tive rendimentos que me permitissem comprar uma casa. É surreal. Por um acaso de sorte cósmica, os Inspectores ouviram-me - eu tinha vendido uma casa no ano anterior e comprei outra mais pequena e com menos despesas. Nem foi o caso de ganhar 1000€ mensais e comprar um apartamento de 4 milhões. Se fosse, teria que justificar cada cêntimo, e era escusado alegar que um amigo me emprestou o dinheiro.»

 

Do nosso leitor António. A propósito deste meu texto.

O nosso livro (2)

Pedro Correia, 29.04.18

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«Gosto de lugares de encontro onde se cruzam maduros que, sobre o processo de secessão da Catalunha, têm a opinião correcta, por acaso a minha, com outros de opinião oposta (como é possível?!). Gosto de um tuga que andou por Moçambique a indignar-se com o esquecimento a que foi votado o angolano Ruy Duarte de Carvalho, por acaso nascido português. E gosto de uma mulher que, tendo lá em casa uma dor, não fez dela uma dor, nem um troféu, fez uma filha com réplicas marotas.»

 

Do prefácio de Ferreira Fernandes, intitulado "Uma Forma de Ser Agradecido"

a liberdade não se faz com ordenados de 600 euros

Patrícia Reis, 28.04.18

Ontem celebrámos a liberdade, mas a que liberdade podem aspirar aqueles que hoje não têm nem memória do 25 de Abril, nem condição económica para ter direito ao sonho?

Há uns dias, a celebrar a liberdade, com o sol a dizer-nos que há esperança, repletos de sonhos por cumprir e sem se atreverem a tanto, dois jovens almoçavam num pequeno café de bairro. O almoço era composto pelo menu da casa, no valor  de seis euros: pataniscas de bacalhau com arroz de legumes, garrafas de água. Um dos homens não deveria ter mais de 23 ou 24 anos, percebi que tinha uma licenciatura e mestrado e que fazia um estágio numa empresa ligada à engenharia civil. Dizia: “Pois, acho que vou ficar a fazer estágios até aos 30 anos”. E o outro, de idade similar, acrescentava com desgosto: “Não vamos sair de casa dos nossos pais. Nunca conseguiremos”.

Sim, a ganhar 600 euros nunca conseguirão, pensei eu enquanto fazia contas rápidas. Mesmo que optem por ir viver para os arredores da grande cidade – não lhes resta mesmo qualquer outra hipótese –, a verdade é que não têm como assegurar renda, transportes, comida para o frigorífico. O rendimento não chega.

A educação que nos distinguia, pelo menos na minha geração, não faz qualquer diferença nos dias que correm. Três anos de licenciatura, dois anos de mestrado, fluentes em inglês e com vontade de liberdade, de autonomia, os jovens ficam em casa dos pais num esforço inglório de conseguir “fazer-se à vida”. Um destes jovens explicava que a namorada estava nas mesmas circunstâncias e que o rendimento conjunto não ia dar para nada. “E agora pensa: queres ter filhos? Deve ser idiotamente caro!”. Sim, ter filhos não é barato. Nada o é, nos dias que correm (nunca foi, na realidade).

Na televisão do dito café mostravam-se sucessivas imagens da Revolução de 1974, as comemorações, as cerimónias solenes. Os jovens não espreitaram nenhuma das reportagens, estavam alheados do mundo, um pouco deprimidos, diria, disponíveis apenas para não comemorar a pouca liberdade de um ordenado que não cumpre com as expectativas criadas. E, um deles, rejeitando a oferta de café do empregado, adianta em tom sarcástico. “Nem sei por que carga de água fui tirar a carta de condução. Foi dinheiro atirado à rua”. Depreendi que não tem carro, nem possibilidades de o ter. Pagaram a conta, cada um o respectivo menu, e foram pela rua, lambidos pelo sol, a ver se conseguiam ir mais longe.

Ontem celebrámos a liberdade, mas há quem seja demasiado novo para ter memória do que foi viver a ditadura e esteja apenas focado nos dias que correm, na forma como a vida se desenha agora.

Há 44 anos, no dia extraordinário “inicial inteiro e limpo” sobre o qual escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen, tínhamos em nós todos os sonhos do mundo. Hoje, quem tem vinte e poucos anos, dificilmente consegue alimentar os seus desejos, porque a vida é madrasta e as condições de empregabilidade são o que está à vista de todos. Só não vê quem não quer.

vasco graça moura

Patrícia Reis, 28.04.18

no que escrevi me traduzi
e traduzi outros também
e traduzindo me escrevi
e a escrever-me fui eu quem
das várias coisas que senti
fez sofrimento de ninguém.
depois risquei, depois reli
e publiquei: assim porém
havia sempre mais alguém
para o chamar então a si,
também vivendo o que menti
mas como seu, mas como sem
ter sido meu o que escrevi
fosse por mal, fosse por bem.
é sua a vez. e que mal tem?
no que escrevi sobrevivi.

(Moura, Vasco Graça, Testamento, Lisboa: ASA, 2001)

O nosso livro (1)

Pedro Correia, 28.04.18

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Ei-lo, enfim. Começou ontem a ser distribuído por todos os leitores que o reservaram e pagaram com antecedência. Tem 244 páginas, traz a chancela editorial da BookBuilders e resulta de um mecanismo de financiamento colectivo que contou com o apoio entusiástico de quem nos acompanha há vários anos - alguns mesmo do início, há quase dez anos.

 

É a nossa selecção de textos publicados no DELITO DE OPINIÃO desde a fundação, em 5 de Janeiro de 2009. Textos de todos os autores que entenderam participar nesta iniciativa - e passo a citá-los por ordem alfabética: Adolfo Mesquita Nunes, Ana Cláudia Vicente, Ana Vidal, Diogo Noivo, Francisca Prieto, Joana Nave, José Bandeira, José Gomes André, José Navarro de Andrade, Leonor Barros, Luís Naves, Patrícia Reis, Rui Rocha, Sérgio de Almeida Correia e Teresa Ribeiro. Além do João Carvalho, que infelizmente já não se encontra entre nós mas que entendemos homenagear por esta via, e de mim próprio.

 

Dezassete "delituosos" reunidos neste volume que - estou certo - agradará a quem já o adquiriu e por estes dias o receberá. E também a todos quantos poderão adquiri-lo, a partir de agora, em livrarias.

Uma edição enriquecida com prefácios de Ferreira Fernandes ("Uma forma de ser agradecido") e Francisco Seixas da Costa ("Palavras liminares"), e um posfácio de João Taborda da Gama ("A malta dos blogues").

 

Chegou. É nosso. E vosso.

Totós

Francisca Prieto, 28.04.18

Começas a sentir os primeiros sinais de que te dás com um grupo de totós dos livros quando, num jantar, referes que tens um exemplar da Servidão Humana autografado pelo próprio Somerset Maugham e se sucedem suspiros de admiração. Mais tarde, escutas um sussurro de alerta quando confessas que compraste no ebay um jogo da Penguin, que é um cruzamento de Trivial Pursuit com Jogo da Glória, onde em vez de queijinhos se podem ganhar livrinhos e que, caso se calhe na casa errada, se pode ter de devolver livros já ganhos à biblioteca ou ir parar à torre do Conde Drácula. Gera-se um bulício, todos querem marcar uma data para uma jogatana e fazem-te prometer com código de honra que não avanças para uma partida sem ser com eles. Como se tivesses outros amigos em pulgas para ganharem livrinhos e avançarem quatro casas para o farol da Virginia Woolf.

Mas é na ocasião em que se discute o Grande Romance Americano que as sirenes da totozice livreira começam a tocar com toda a pujança. Alguém que está a ler o Moby Dick aparece a vibrar com ilustrações de baleias retiradas da internet e mencionadas pelo próprio Melville na obra. Enquanto alguns convivas confessam o tédio excruciante que sentiram ao virar dezenas de páginas com descrições pormenorizadas sobre a anatomia deste mamífero, outros entusiasmam-se e declaram querer atirar-se de imediato ao romance. Percebes finalmente que está tudo louco quando alguém, no auge do entusiasmo, se lembra que podíamos organizar um evento idêntico ao que se desenrola uma vez por ano em New Bedford: 25 horas consecutivas a ler em voz alta a obra de Melville. O pior é que estavam a falar a sério.

Reencontro com amigos no Chiado

Pedro Correia, 27.04.18

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Confesso: ontem foi um dia para mim muito preenchido, com uma entrevista na Renascença a meio da tarde, em agradável diálogo com a Ana Galvão, uma das estrelas do nosso firmamento radiofónico. Depois com o lançamento do meu livro, na histórica Livraria Bertrand do Chiado, apresentado pelo Francisco José Viegas e pela Helena Matos (a quem agradeço as generosas palavras que me dedicaram). Finalmente, à noite, com a exibição no canal Q de uma entrevista no programa É a Vida, Alvim, à conversa com o Fernando Alvim, outro grande nome da nossa comunicação radiofónica - e televisiva.

O melhor foi mesmo o convívio ao vivo com bons amigos de várias etapas da minha vida pessoal e profissional que se deram ao incómodo de acorrer à Bertrand na sessão de apresentação de 2017 - As Frases do Ano, obra em que revivo todo o ano passado em mais de mil frases. Um ano que devemos rememorar por excelentes e péssimos motivos, como fiz questão de sublinhar na minha breve intervenção de ontem.

A quantos compareceram, e também aos muitos que me enviaram mensagens, aqui deixo um forte abraço de reconhecimento. Esperando que aqueles que já compraram o livro tenham dado por bem empregue tanto o tempo como o dinheiro. Pelo menos de frases - creio eu - ficaram bem servidos.

Dia histórico

Luís Naves, 27.04.18

Ainda bem que fiquei acordado de madrugada, a ver pela televisão o início de um dia histórico. Os dois presidentes coreanos encontraram-se logo pela manhã (hora coreana) na zona desmilitarizada e, pelos gestos, pela simplicidade da cerimónia, via-se que algo de importante estava prestes a acontecer. Desliguei o televisor quando os dois entraram numa sala, em grande clima de amizade. Durante as conversações que se seguiram, Kim Jong-un e Moon Jae-in decidiram pôr termo à Guerra da Coreia, conflito tecnicamente ainda em vigor, pois só existe armistício entre as partes (pelos vistos, em breve haverá tratado de paz). Em Panmunjon, os dois líderes decidiram também concretizar a desnuclearização da península (exigência americana) e provavelmente esta possibilidade terá um complemento de segurança económica para a Coreia do Norte, factura que Seul não terá problemas em suportar. Estes desenvolvimentos confirmam o acerto da abordagem duríssima dos Estados Unidos em relação aos ensaios nucleares norte-coreanos, que incluiu a presença de porta-aviões na região. Então, houve comentadores a dizer que Donald Trump era louco e que ia provocar a Terceira Guerra Mundial, mas estes peritos terão dificuldade em manter as críticas, apesar de se esboçar uma nova linha dos ataques: Kim Jong-un é um ditador e parece lamentável que se façam acordos de paz com tiranos. A confirmar-se a desnuclearização, este dia sem precedentes (conseguir a paz na Coreia) representa o primeiro sinal concreto da mudança em curso na ordem mundial. Trump pode ser isolacionista, mas está a romper com a tradição que se mantém desde os anos 60 na diplomacia americana. No último meio século, foi dada importância aos valores democráticos dos aliados ou dos países com quem os americanos negociavam; Trump quer regressar aos anos 50 e à fórmula bem resumida pelo presidente Eisenhower, que falava de um ditador pró-americano: «Sim, ele pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta». Ignorar as questões de direitos humanos permite fazer acordos com Kim ou com a China, facilita soluções pragmáticas e evita trazer para as negociações assuntos que os tiranos consideram existenciais, pois são susceptíveis de mudar os seus regimes políticos. Por tradição, os EUA concedem a outras potências democráticas um pedaço do poder mundial, mas essa compensação deixou de ser automática, como aliás a Europa e o Japão começam a sentir na pele. A China assume-se como o grande rival da América, mas pode ter vantagens que antes estavam reservadas apenas a parceiros com democracias. A ordem mundial baseia-se agora no equilíbrio de poder, que é uma questão crua e sem sentimentalismo. Obviamente, sem a pressão da China, o entendimento coreano não existiria e nos próximos tempos veremos o que é que Washington deu em troca a Pequim. Uma coisa é certa: os direitos humanos não entraram na equação, ou nada disto teria sido possível.

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