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Delito de Opinião

Blogue da semana

Pedro Correia, 31.03.18

Os alfarrabistas estão cada vez mais na moda - o que muito me agrada, apreciador que sou do comércio tradicional e nada entusiasta das grandes superfícies livreiras. Confesso-me cliente habitual dos espaços de venda de livros em segunda mão, onde costumo descobrir edições há muito esgotadas entre nós e que constavam da minha lista de obras a ler.

É portanto com muita satisfação que escolho O Gato Alfarrabista como blogue da semana. Sugiro-vos que o visitem: tenho a certeza de que vão gostar.

Comparações.

Luís Menezes Leitão, 31.03.18

Num post abaixo, o João André critica a comparação que fiz entre a repressão na Catalunha e a repressão que se está a levar a cabo na Rússia e na Turquia. Mas a comparação é perfeitamente justificada. A Rússia e a Turquia também são formalmente democracias. Só na prática é que não o são. A Espanha caminha rapidamente, pelo menos no que à Catalunha diz respeito, para também não o ser. Na campanha eleitoral Puigdemont avisou que os independentistas respeitariam o resultado eleitoral, mas que se iria ver se o Estado espanhol o faria. Até agora não o tem feito, colocando os seus opositores, que venceram as eleições, na prisão. Se o João André vê alguma diferença entre as medidas que os tribunais espanhóis tomaram contra Carles Puigdemont e as que os tribunais russos tomaram contra Alexei Navalny é bom que explique qual é.

Leituras

Pedro Correia, 31.03.18

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«Não fica bem continuar a odiar um inimigo depois de terminado um conflito. Quando atiramos um homem às lonas, as coisas devem terminar aí. Não devemos, depois de o derrubarmos, aplicar-lhe pontapés.»

Kazuo Ishiguro, Os Despojos do Dia (1989), p. 92.

Ed. Gradiva, 2017. Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.

Colecção Gradiva, n.º 23

 

Algumas canções da minha vida

Pedro Correia, 31.03.18

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São estas:

La Valse a Mille Temps (Jacques Brel, 1959)

Summertime (George e Ira Gershwin, 1935)

C'est Si Bon (Henri Betti e André Hornez, 1948)

Coimbra (Raul Ferrão e José Galhardo, 1947)

Strangers in the Night (Ivo Robic, Bert Kaempfert, Charles Singleton e Eddie Snyder, 1966)

Indian Summer (Victor Herbert e Al Dubin,1939)

The Sound of Silence (Paul Simon, 1964)

Um Homme et une Femme (Francis Lai e Pierre Barouh, 1966)

João e Maria (Sivuca e Chico Buarque, 1977)

Fly Me To the Moon (Bart Howard, 1954)

Winchester Cathedral (Geoffrey Stephens, 1966)

Zé Cacilheiro (Carlos Dias, César de Oliveira e Paulo da Fonseca, 1966)

 

Outras não tardarão a vir aí.

Quais são as canções das vossas vidas?

Igual a todos nós

Pedro Correia, 30.03.18

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 Gólgota, de Edvard Munch (1900)

 

É a frase mais dramática de toda a Bíblia. A frase que Cristo profere na cruz, quando todas as forças já lhe falecem no corpo em chaga, e brada aos céus com o último alento que lhe resta:

Eloí, Eloí, Lama sabachtami?

Este episódio da Paixão, que vem mencionado nos Evangelhos de Mateus (27,46) e Marcos (15,34), sempre me impressionou. Porque nos revela, mais que nenhum outro, a face humana de Jesus - as dúvidas, as angústias, a profunda inquietação existencial de um Jesus terreno, despido da sua condição divina, igual a todos nós. Na dor, no sofrimento, no desamparo.

Este brado simboliza o desespero de múltiplas gerações de homens solitários clamando em momentos de aflição por um Pai que permanece teimosamente desconhecido, indiferente ao destino trágico dos seres dotados de consciência que lançou como grãos de areia na imensidão cósmica. É um grito lancinante que ecoa desde os confins dos tempos e se ramifica a todos os espaços onde chega a voz humana:

Meu Deus, Meu Deus, Porque Me abandonaste?

Na Catalunha nem bons ventos nem bom senso

João André, 30.03.18

Há muito que penso que a "questão catalã" teria sido resolvida mais ou menos satisfatoriamente se tanto o governo de Rajoy como o anterior governo regional de Puigdemont tivessem tido juízo. Rajoy só teria que ter resolvido as questões do novo Estatut de forma a satisfazer o Tribunal Constitucional para o barulho se reduzir. Puigdemont, por seu lado, forçou uma questão com decisões para as quais não tinha o menor mandato. Até anunciar os resultados do dito cujo referendo, Puigdemont estava claramente a infringir a lei e qualquer lógica democrática liberal. Após ele e os seus correlegionários serem lançados aos calabouços, foi Rajoy (e Madrid) quem perdeu muita da sua força moral.

 

Neste momento não me pronuncio sobre a independência da Catalunha. É óbvio que não existem condições para a mesma. Nos melhores dias, os independentistas chegam no máximo a 50% e nunca me parece ter havido discussão sobre que tipo de sistema constitucional existiria no novo país. Seria simplesmente uma espécie de "República". Isto não chega.

 

Só que, sendo isto verdade, não faz qualquer sentido Madrid persistir na sua perseguição a Puigdemont e outros. É óbvio que não estão em risco de iniciar uma insurreição, nada na Catalunha nos dá essa impressão. Há tensão, mas ainda não vi uma única reportagem a dar a ideia de um barril de pólvora pronto a explodir. Os dirigentes independentistas infringiram a lei, mas o princípio da razoabilidade deveria dominar aqui: o procurador geral (ou equivalente em Espanha) deveria simplesmente pedir a liberdade condicional para os dirigentes enquanto esperam pelo julgamento. E, a não ser que de facto se dê como provada, num julgamento justo e imparcial, a conspiração para cometer actos verdadeiramente insidiosos (a vontade de independência ainda não o é), a máxima pena a que estes dirigentes deveriam ser condenados seria uma suspensão de cargos públicos por um determinado período.

 

Andar a lançar mandatos de captura internacionais só vem dar fogo à lenha dos independentistas, que aproveitam para insistir (com base na sua leve maioria no Parlamento Catalão) na escolha desses dirigentes para presidente da Generalitat. É uma insistência algo parva, mas estão no seu direito. Aquilo em que dará será novas eleições após Maio (se bem entendi, é esse o limite para a formação do governo), as quais poderão dar resultados que ninguém conseguirá prever.

 

Há muitas coisas que vão faltando no caso catalão: fúria independentista, repressão autoritária, e essencialmente bom senso, em Barcelona e Madrid. E, mais que Puigdemont e outros dirigentes, quem vai sofrendo com isto tudo são os catalães, independentistas ou não, que vêem a incerteza diária complicar-lhes a vida.

 

 

PS - no entanto isto não se compara nem de perto nem de longe à Turquia ou à Rússia como o Luís quer fazer passar. A comparação é tão disparatada que nem vale a pena falar no assunto. Comparar com Hungria ou Polónia ainda compreenderia, mas com dois autocratas que nunca irão ser votados para fora do cadeirão? Não gozem comigo.

As ligações insulares da Líbia

João Pedro Pimenta, 30.03.18
O suposto patrocínio de Muammar Kadhafi e do regime líbio à campanha presidencial de 2007 de Nicolas Sarkozy, que levaram à detenção deste há poucos dias,  não é exactamente uma novidade nem um rumor esquecido. Já tinha sido publicitada várias vezes, a começar pelo filho do próprio ditador da Líbia durante o levantamento no país, quando a França liderou a intervenção militar externa que seria decisiva para a queda do "regime verde" e para os acontecimentos que se seguiram. 
 
A ser verdade não sei quais as razões deste patrocínio financeiro a Sarkozy, mas por certo seria para obter quaisquer objectivos financeiros ou estratégicos da parte da França. De resto, Kadhafi nunca deixou de se imiscuir nos assuntos dos outros países de forma diversa. Na sua versão mais recente fazia-o através de recursos económicos proporcionados pelo petróleo líbio, como os interesses que tinha em empresas italianas como a FIAT, ou até em clubes de futebol. Mas nas primeiras décadas, o coronel esteve envolvido em  quase todos os conflitos envolvendo terrorismo e rebelião. Do IRA à ETA, passando por todas as organizações palestinianas e estando por trás de grandes atentados dos anos oitenta, como a explosão do avião sobre Lockerbie, ou estreitamente ligado aos grandes terroristas da época, como Carlos, O Chacal, ou Abu Nidal, Kadhafi não perdia uma. E quando não tinha uma organização terrorista ou ma causa subversiva para apoiar, procurava-as. Um artigo recente de Rui Tavares conta-nos que o ditador líbio, numa reunião da Organização dos Estados Africanos, exigira a "liberdade da colónia africana da Madeira, ocupada por Portugal", dizendo o mesmo das Canárias. Se a esta ainda podia fazer referências aos guanches, o povo autóctone pré-espanhol, já dificilmente veríamos os madeirenses a querer ser libertados por Kadhafi. 

 

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Mas os líbios, sempre prestes a auxiliar um bom movimento separatista, também olhavam para os Açores, já fora da órbita africana. César Oliveira, antigo deputado e autarca do PS (e pai de Tiago Oliveira, agora muito falado por estar à frente da estrutura que previne os fogos rurais), já desaparecido, conta-nos as suas impressões da Líbia em finais dos anos setenta no seu livro de memórias de 1993, Os Anos Decisivos:

País de um novo-riquismo impressionante e avassalador, a Líbia constituiu (...) a certeza de que representava uma ameaça para a paz e no Norte de África como para o próprio Sul da Europa (...) Um alto dirigente líbio colocou-me a pergunta sobre a posição da UEDS quanto à ala esquerda da FLAMA e da FLA. E como tivéssemos respondido, naturalmente, que não víamos qualquer ala esquerda naqueles movimentos insulares e que, pelo contrário, os víamos como de extrema-direita e politicamente suspeitos, acabaram-se todas as facilidades e tive mesmo dificuldades em obter o bilhete de avião  para Lisboa, via Roma. 
 
Claro que o apoio a tais movimentos não passou de intenções, discursos e perguntas. Mas revela bem até que ponto aquele excêntrico regime líbio interferia ou procurava interferir nos assuntos dos outros países. Daí que não possa deixar de me rir quando ainda ouço inúmeras indignações A invasão e "violação da soberania da Líbia." Não que não tivesse acontecido, que aquilo não tenha redundado num caos e que a morte de Kadhafi e outros não seja condenável. Mas se houve país que se imiscuiu nos assuntos alheios, com consequências trágicas, a Líbia é o melhor exemplo, assim como Kadhafi é o responsável por inúmeras mortes e conflitos. Aplicou-se, de novo, a velha teoria de que quem com ferros mata...

A guerra que Thatcher "inventou"

Pedro Correia, 29.03.18

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Estamos sempre a aprender. Acabo de escutar um historiador, em tom categórico e professoral, proclamar em horário nobre da televisão: "A senhora Thatcher, quando estava a braços com uma crise de agitação social na Inglaterra, inventou uma guerra, a guerra das Malvinas."

Extraordinário doutor Fernando Rosas: folheando sabe-se lá quantos canhenhos empoeirados, só ele conseguiu descobrir que foi afinal a primeira-ministra Margaret Thatcher quem ordenou aos odiosos déspotas do regime militar de Buenos Aires - apoiados pelo ditador cubano Fidel Castro - para  invadirem o arquipélago das Malvinas no dia das mentiras de 1982.

A maquiavélica senhora precisava dessa invasão para "inventar uma guerra" que só poderia culminar com a vitória britânica, emulando o triunfo da Royal Navy sobre Bonaparte em Trafalgar, enquanto as massas ignaras entoavam o God Save the Queen.

Fiquei esmagado com tão eloquente demonstração de sapiência do reputado académico. E aqui venho inclinar-me em respeitosa vénia à sua luminosa e profícua erudição.

A América que muda

Patrícia Reis, 29.03.18

Milhares de pessoas, em especial jovens, saíram à rua e fizeram uma revolução. Não foi apenas um acto isolado, e isso é evidente para quem ouviu os diferentes discursos nas diversas cidades.

Este movimento veio para ficar e para mostrar a Donald Trump que talvez seja derrotado por quem é mais jovem, por quem é capaz de pisar um palco e, com tão pouca idade, dizer de sua justiça, invocando palavras sábias, relatando episódios traumáticos de violência, exigindo que os políticos sejam melhores. É uma revolução.

“É um novo Maio de 68”, disse a escritora Inês Pedrosa no twitter. É é verdade. Um Maio de 68 em Março de 2018 cujo enfoque não é apenas a questão da venda de armas, a falta de controlo (os jovens exigem a proibição da comercialização de armas de fogo, da venda livre de carregadores para armas semiautomáticas e o reforço dos controles de antecedentes das pessoas interessadas em comprar armas). É uma revolução pela vida, pela segurança, pelos direitos elementares, pela liberdade de expressão. Não são “jovens corajosos”, como refere o comunicado da Casa Branca, de forma condescendente. Nada disso: são jovens com voz, com ideias, com discurso, com capacidade de mobilização, com ideias, com objectivos. Tal e qual como eram os estudantes que mudaram o mundo à sua maneira em 1968.

A geração das redes sociais, do século XXI, não é comodista e preguiçosa, é informada, articulada e tem coisas para dizer, em especial quando se sente ameaçada. Estes jovens norte-americanos estão fartos, cansados de ter medo de quem possa ter uma arma e atacar. Os ataques a liceus não são ocasionais, são constantes. O poder que o negócio das armas detém nos EUA reside no esquema mafioso de benefícios financeiros para políticos para quem os eleitores, na verdade, são um pormenor de somenos na equação da democracia. Estes milhares de jovens de provenientes de diferentes meios sócio-culturais, de ambos os sexos, habitantes de vários estados norte-americanos, não querem mais conversas e subterfúgios, querem uma solução. Não podem – nem devem – ser encarados com condescendência. É a eles que o futuro pertence, são eles os leitores que Trump deve temer.

Estes jovens pensam pelas suas cabeças e não são, como explicou Naomi Wadler, de 11 anos de idade, “manipulados por adultos”. São capazes de perceber a diferença entre o certo e errado e não têm medo de enfrentar o mundo para dizer de sua justiça.

Com uma organização exemplar, a Marcha pelas Nossas Vidas foi uma iniciativa de estudantes sobreviventes do tiroteio numa escola em Parkland, na Florida, um tiroteio que ocorreu no mês passado, durou seis minutos e vinte segundos e resultou na morte de 17 pessoas. Emma González, uma das estudantes sobreviventes, de origem cubana, assumidamente bissexual, surgiu no palco principal do evento em Washington, com um casaco a lembrar o universo militar, cabelo rapado, e tornou-se o rosto de uma geração, de uma geração com direitos e exigências, uma geração que exige que sejamos melhores enquanto sociedade, na forma como nos comportamos, como lidamos uns com os outros. Emma Gonzalez anteve-se em silêncio durante quatro minutos e vinte segundos, um tempo infinito, as lágrimas a espreitarem, a rosto cerrado. Podia ser uma cena de um filme de Hollywood a puxar ao sentimento, mas é a vida real e é impossível ouvir e ver esta jovem sem qualquer comoção, é obrigatório chorar com ela.

Cameron Kasdy, outro estudante de Parkland, disse: “Desde que o movimento começou, as pessoas perguntam-me: ‘Pensas que isto vai provocar alguma mudança? Olhem à vossa volta. Nós somos a mudança”.

Christopher Underwood, de 11 anos de idade, falou sobre o irmão, baleado em 2012. Tinha 14 anos. “Na altura, eu tinha apenas cinco anos. Transformei a minha dor e raiva em acção (...) As nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecermos em silêncio sobre as coisas que importam”. A citação de Martin Luther King é exemplar do que acontece(u) na Marcha Pelas Nossas Vidas. A neta de Martin Luther King, de nove anos de idade, Yolanda Renne King pediu "um mundo sem armas". Tem o mesmo sonho do avô. Não está sozinha.

Em Los Angeles, Edna Chavez, também ela estudante de 17 anos, declarou: “Sou uma sobrevivente. Vivi no centro de Los Angeles a minha vida toda e perdi muitos dos meus entes queridos por causa da violência. Isto é o normal. (...) Eu perdi mais do que o meu irmão naquele dia, perdi o meu herói. Também perdi a minha mãe, a minha irmã e a mim mesma para o trauma e ansiedade”.

Desde Janeiro deste ano foram registados 49 tiroteios, já morreram 3 mil 159 pessoas em incidentes com armas nos Estados Unidos. Destes, 737 tinham menos de 17 anos de idade. Os jovens gritaram: “Já chega!”

A História mostrará que têm a capacidade para mudar o mundo e que nada os deteve.

O que dirá Freitas agora?

Pedro Correia, 29.03.18

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Na sequência do inaceitável acto homicida que visou o cidadão russo Serguei Skripal e a sua filha Iulia, por intervenção de agentes infiltrados da Rússia em território britânico, o Governo do Reino Unido expulsou 23 diplomatas de Moscovo e solicitou a solidariedade activa dos seus aliados. Nada mais compreensível.

Nos últimos dias, 28 países - incluindo 19 Estados membros da União Europeia - anunciaram também a expulsão de quadros diplomáticos russos: um gesto de firmeza política que ultrapassa largamente o plano simbólico. Pelo menos 125 diplomatas receberam já ordem para fazerem as malas.

Entre as raras capitais da UE que permaneceram à margem deste processo inclui-se Lisboa. "Governo prefere diálogo à expulsão: diplomatas russos a salvo em Portugal", na síntese certeira de um título jornalístico. Isto apesar de o Executivo liderado por António Costa "acreditar que a concertação no quadro da UE é o instrumento mais eficaz para responder à gravidade da situação presente", como jesuiticamente observou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. O tal que gosta de "malhar", mas é "na direita". Esquecendo que Putin é o maior apoiante financeiro e logístico da mais repulsiva extrema-direita europeia.

 

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O nosso Governo, lamentavelmente, ignorou neste processo os compromissos inscritos na aliança histórica que mantemos desde 1373 com o Reino Unido - aliás a mais antiga relação diplomática ininterrupta da história.

Pior: a diplomacia portuguesa parece cruzar os braços perante reiteradas e comprovadas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado russo - que inclui ataques cibernéticos com a colaboração de sofisticada pirataria informática, a intromissão em processos eleitorais estrangeiros, o assassínio e detenção ilegal de opositores, o silenciamento de jornalistas e as agressões militares contra a soberania de Estados vizinhos, nomeadamente com a anexação da Crimeia, pertencente à Ucrânia, e a criação dos bandustões russos da Abcásia e da Ossétia do Sul, tornados enclaves em território soberano da Geórgia.

Como se isto já não bastasse, os agentes de Putin liquidam compatriotas incómodos em solo estrangeiro, recorrendo a uma substância tóxica proibida por convenções que o próprio Estado russo subscreveu.

Entre os nossos amigos e aliados da UE e a cleptocracia russa, com a sua corte de oligarcas corruptos, ficamos equidistantes. Algo que não acontecia desde os tempos pós-revolucionários, quando uns tantos lunáticos andaram por aí a enaltecer a putativa integração de Portugal no lote dos países pertencentes ao Terceiro Mundo.

 

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Afinal o prometido "novo impulso para a convergência com a Europa" que o Executivo PS prometeu em Novembro de 2015 no seu programa era apenas uma flor de retórica. Na óptica de Santos Silva, que há três meses celebrava como "vitória para Portugal" a eleição de Mário Centeno para a presidência do Eurogrupo, a solidariedade europeia será uma via de sentido único.

Por mim, fiquei esclarecido. Aguardo apenas com alguma curiosidade o pronunciamento de Diogo Freitas do Amaral, que era vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros do Executivo da Aliança Democrática, que em 1980 decidiu expulsar quatro diplomatas russos, no quadro dos duros protestos ocidentais contra a invasão soviética do Afeganistão ocorrida meses antes e que incluiu apelos do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro ao boicote português dos Jogos Olímpicos de Moscovo, onde a participação nacional esteve reduzida ao mínimo.

Tudo isto sucedeu, note-se, quando ainda nem éramos membros do espaço comunitário europeu.

O que dirá Freitas do Amaral agora?

Sobre o olhar destinado a Moçambique

jpt, 29.03.18

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Há alguns dias deixei aqui um postal aludindo à incoerência, sinal de incompetência e submissão ao casuístico, do parlamento português, o qual votou, de modo unânime, um pesar pelo assassinato de uma vereadora do Rio de Janeiro e que havia, recentemente, ignorado o asssassinato do presidente de Nampula. Aquele que me pareceu ser um texto liso ("flat") foi comentado de forma que me surpreendeu (concedo que cada vez mais tenho dificuldades em dialogar em comentários nos blogs, pois o tom parece-me bem menos profundo, num apenas provocatório, do que o que acontece no FB, mesmo que ali sendo abrasivos, o que se prende, decerto, com o efectivo anonimato de grande parte dos comentários bloguísticos). Assim ser contraposto naquele meu texto por considerações que julgam normal ("natural") que o parlamento siga a agenda mediática é difícil de contra-argumentar. Pior ainda deparar-me com comentários reduzindo, de forma altaneira, o que havia escrito a um "disparate" ou a "misoginia". Não é um lamento o que agora escrevo, é mesmo um cansaço. Explico-o, agora, através de dois pontos:

 

1. Não reclamei o interesse para um qualquer contexto longínquo. A Assembleia da República não é o governo. Como tal é normal, até desejável, que funcione um pouco segundo as comoções e pressões do eleitorado, da opinião pública. E que os interesses e focos de atenção das forças sociais que apoiam os partidos sejam mais ecoados através dos deputados. Assim sendo, é normal que o que tem mais peso mediático (o Rio é mais sonante do que Nampula, claro) induza mais reacções. Não é um defeito, é uma característica do parlamento. Ou seja, se a AR está vinculada à "razão de estado" vive esse vínculo de forma menos radical, em termos de imagem e discursos públicos, do que o governo, particularmente em questões de política externa. Sendo mais sensível a ecoar as correntes de pensamento internas, muitas vezes potenciadas pelas emoções colectivas e pela agenda mediática, esta salutar em democracia. 

Dizer isso não implica que a AR não tenha também uma dimensão "estadista". Nela está gente que se dedica à política externa e, mais em particular, à ajuda pública ao desenvolvimento, vulgo "cooperação" (terá comissões, grupos de trabalho; terá profissionais disso eleitos; terá políticos que já ocuparam postos na área; representa interesses económicos envolvidos; tem deputados da emigração; etc.). Assim, em questões estrangeiras não está, nem pode estar, limitada às solidariedades dos partidos representados, às comunhões ideológicas. Nem às parangonas das televisões e jornais. Poder-se-á discutir a pertinência formal de um parlamento votar um pesar sobre o assassinato de um vereador municipal (talvez que a reacção das instâncias políticas nacionais devesse incorrer sob o âmbito da Assembleia dos Municípios Portugueses, e das assembleias municipais - em particular a das grandes cidades portuguesas geminadas com o Rio; isso daria uma homologia). Mas pode-se ter querido incrementar o peso simbólico da reacção (duvido que tenha havido sequer essa consideração, mas enfim ... dou de barato). Mas isso implica uma questão - deve a AR debruçar-se sobre qualquer assassinato de agentes políticos estrangeiros? Deverá ter uma atenção abrangente? E se sim sobre que universo se dedicará, e segundo que critérios? Só os do Rio? Só os Brasil? Só os da CPLP? Também os da UE? Ou por aí adiante até englobar os da ONU? Ou vota-se apenas segundo as proximidades ideológicas com alguns partidos da nossa AR, mais diligentes nas propostas?

Talvez que a AR não deva apenas depender da mera agenda  mediática e das solidariedades internacionais dos seus partidos.  Moçambique é o 2º país mais populoso da CPLP. Esta é um vector fundamental da política externa portuguesa (pelo menos ao nível discursivo). Portugal tem interesses no país (variados, desde os "morais" aos "económicos", etc.). Tem tido papel na mediação de conflitos (inclusivamente nas negociações do recente conflito militar entre o Estado e o partido Renamo). Nampula é a segunda cidade do país. É a capital administrativa e económica da zona linguística macua - e há mais falantes de macua como primeira língua do que portugueses em Portugal, o que também dará para reflectir quando o discurso estatal e social aqui se centra na noção da "lusofonia" (ainda recentemente recuperada pelo nosso ministro da cultura, com reacção inexistente e debate nulo por parte das outras forças políticas nacionais). O presidente da câmara de Nampula (não um mero vereador) pertencia ao terceiro partido moçambicano, instaurado como o mais importante partido autárquico do país. E estava, dizia-se, de saída para fundar um quarto partido. Era um católico num contexto regional de esmagadora maioria muçulmana. Moçambique tem vivido conflitos militares nos últimos anos (houve uma pacificação nos últimos meses), e tem havido assassinatos de membros importantes do partido Renamo.

Nada disto explica o seu assassinato, sobre o qual não há informações. Mas tudo isto dá um contexto, óbvio, em que seria normal que a AR portuguesa, se entende expressar "pesar" pelo assassinato de autarcas estrangeiros, entendesse ter uma opinião política, de valor simbólico. Mas não teve, esqueceu-se: muito provavelmente apenas porque não há no seu seio um partido que se considere "companheiro de estrada" do falecido presidente. Ou, se calhar, porque nem sequer se lembraram do assunto. A mim parece-me simples, é um reflexo sobre as (in)competências da nossa AR em termos de reflexão sobre a política externa. Não é reclamar atenção para Nampula ou menosprezar a indignidade do lamentável assassinato da autarca carioca.  Mas é dizer que a AR não é apenas o fruto das primeiras páginas dos jornais (ainda que neles deva atentar) nem o rescaldo dos guias turísticos - que obviamente valorizam a "cidade maravilhosa" em detrimento da "cidade da chuva".

Mas se aludir a tudo isto é sinal de misoginia e a continuidade de um costumeiro disparatar então não haja dúvida: sou eu, apesar de mim-mesmo, um disparatado misógino;

 

2. Ericino de Salema, jurista e jornalista moçambicano, comentador político na televisão, foi anteontem raptado e violentamente agredido, tendo, felizmente, o seu sequestro sido interrompido pela chegada de um grupo de crianças ao local para onde tinha sido levado e onde o espancavam com barras de ferro tentando partir-lhe os membros. Na sequência do acontecido o jornal Verdade elenca os 12 crimes políticos dos últimos 3 anos, incluindo vários assassinatos, desde o do constitucionalista Gilles Cistac, bem como o sequestro de Jaime Macuane, também comentador televisivo, levado de casa e baleado com cinco tiros nas pernas, ambos apartidários e meus colegas na Universidade Eduardo Mondlane. Este é um traço do processo político no, como acima refiro, 2º país mais populoso da CPLP, essa que é uma dimensão importante da política externa portuguesa, num país que a retórica estatal (e parlamentar) nacional afirma como bastante próximo - recordo, como símbolo, que Rebelo de Sousa convidou apenas três países para a sua tomada de posse: Espanha, Brasil, .... Moçambique. Referir que será expectável uma particular atenção, e concomitantes actos simbólicos, sobre este processo e seus epifenómenos, por parte do parlamento (e de outras instâncias políticas) será, no entender daqueles que entendem a política como um feixe de solidariedades sobre as causas identitárias (o género, a raça, a etnia, a ... religião) que dominam o pós-marxismo actual, uma misoginia, falocrata, e um disparate, reaccionário.

Eu penso que não. E continuarei a pensar. Apesar dos comentários.

Já li o livro e vi o filme (227)

Pedro Correia, 28.03.18

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      PASSAGEM PARA A ÍNDIA (1924)

Autor: E. M. Forster

Realizador: David Lean (1984)

Raras vezes livro e película se entrelaçam tão bem: o admirável romance de E. M. Forster - que o Guardian inclui entre as cem melhor obras de ficção em língua inglesa - foi transposto de forma exemplar para a tela por David Lean, um dos grandes mestres do cinema, neste seu filme-testamento.

Negócios Estrangeiros

Diogo Noivo, 28.03.18

Moscovo está apostada na desestabilização política da Europa. Interferiu no referendo que culminou com o Brexit, como interferiu também no supuesto referendo de 1 de Outubro na Catalunha (de acordo com a organização Securing Democracy, os perfis russos no Twitter aumentaram em 2000% a sua actividade a favor da independência catalã na véspera da alegada consulta popular). Nas presidenciais francesas os sinais de interferência foram menores, mas o flirt com a Frente Nacional de Marine Le Pen foi claro. Embora as consequências destas intromissões sejam difíceis de aferir, o propósito de criar brechas no espaço europeu é inegável.

São, contudo, factos com contornos difusos quando comparados com o sucedido na Crimeia, com a constante violação do espaço aéreo de países do Norte e Leste da Europa, com os ataques cibernéticos a países europeus, ou com a exploração de antagonismos políticos existentes no seio de países como a Áustria, o Chipre, a República Checa ou a Eslováquia. O envenenamento de Sergei Skripal, antigo espião russo a residir no Reino Unido, é apenas o último de uma longa e penosa lista de episódios condenáveis.

Perante a sucessão de casos, 23 países ocidentais decidiram levar a cabo a maior expulsão de diplomatas russos na História contemporânea. Após anos de interferência e de pressão, há uma frente democrática que se opõe ao acosso vindo da Federação Russa. Portugal pôs-se de fora. Informa o Palácio das Necessidades que prefere a “concertação” no quadro da União Europeia para “responder à gravidade da situação presente” – nesta matéria, parece que a concertação não é uma “feira de gado”.

A prudência é sempre boa conselheira. No entanto, importa ter presente três aspectos. Primeiro, o silêncio da Europa não deu bons resultados – as intromissões russas tornaram-se cada vez mais agressivas e danosas para a salubridade democrática na Europa. Segundo, Portugal deve estar atento porque, depois de ter sido um dos últimos países a aderir à Cooperação Estruturada de Defesa, convém que não existam dúvidas sobre o nosso compromisso com a estabilidade e a segurança europeias. Terceiro e muito importante, o Governo não deve confundir os interesses nacionais, que no plano externo assentam em grande medida na União Europeia e na Aliança Atlântica, com os interesses paroquianos que estão na base da solução política que sustenta o Executivo de António Costa.

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