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Delito de Opinião

Duas perguntas em Aveiro.

Luís Menezes Leitão, 27.11.17

Querido Líder e Primeiro-Ministro:
 
Quero em primeiro lugar agradecer a oportunidade que V. Exª deu a humildes cidadãos como eu, de virem aqui a Aveiro confrontar V. Exª com uma simples pergunta, que seguramente o seu superior génio não terá qualquer problema em responder. A minha pergunta é apenas como é possível que, perante o extraordinário sucesso do seu governo, continue a haver portugueses que não vêem a luz? Afinal de contas os fogos já estão todos apagados, as armas de Tancos já foram restituídas e, se o Porto não ganhou a EMA, pelo menos vai receber o Infarmed. Tudo graças a V. Exª e ao seu magnífico governo, que vai de vento em popa no seu segundo aniversário, apesar do que alguns maldizentes andam por aí a dizer.
 
Penso que já fiz aquilo para que fui contratado. Agora permita-me ainda uma segunda pergunta. Já posso ir buscar o vale e ir-me embora?

O comentário da semana

Pedro Correia, 27.11.17

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«Olha, desde miúdo que convivo intimamente com elas. Na infância e puberdade com as lá de Tomar, que os meus avós tinham nas pequenas propriedades, figueiras, oliveiras, macieiras, pereiras, nogueiras, amendoeiras, nespereiras, cerejeiras, ameixeiras, laranjeiras, pessegueiros e mais algumas de fruto de que agora me não lembro e mais os pinheiros bravos e mansos (estes cujo fruto também se come e é delicioso) e os choupos e os freixos e os vimeiros e os chorões à beira do pequeno ribeiro que atravessava a horta. A determinada altura, já na juventude, deu-se a invasão do eucalipto, que foi roubando espaço ao pinhal (eu não sou contra, desde que com conta, peso e medida).
Havia também uma acácia enorme, linda, em frente à casa. Na cidade havia (e há) uma panóplia enorme na Mata Nacional dos Sete Montes (a Cerca - do Convento de Cristo) e pela própria cidade, predominando o choupo nas ruas e avenidas, havendo alguns jacarandás e plátanos.


Cá em casa, contadas assim de repente, há cinco variedades de ameixeiras, algumas no mesmo pé, que é de amendoeira, que tem uma vida mais longa, duas de cereja, na mesma árvore ("dão" pouco, faz pouco frio em Caneças), duas variedades de nêsperas, cinco de pessegueiro, três de figueira no mesmo pé, seis de pereira também num só pé, um abacateiro, uma anoneira que produz que se farta (ainda hoje colhi uma com 800 gramas e mais meia dúzia com mais de 1/2 kg), três variedades de romã, também na mesma árvore, uma laranjeira e uma clementina e um marmeleiro e uma bananeira e mais uns pés de videira que parecem árvores, que me dão uma trabalheira desgraçada, mas que me dão um enorme prazer. As glicínias, que também estavam enormes, foram cortadas p'lo pé, que já me estavam a dar cabo das árvores vizinhas e exigem uma manutenção "sempre em cima", desisti.

Este ano as folhas não caíram ainda na maior parte delas, as que já as deviam ter perdido, mas a pré-poda já teve que ser feita e elas já estão a "rebentar". Se o meu avô fosse vivo, diria "isto é dos astros, Mundinho", mas eu sei que não é nada dos astros.


Para terminar, por dever de ofício, durante muitos anos andei na rua e fui assistindo à plantação de muitas árvores sem qualquer critério e completamente desadequadas para o meio urbano, como as pimenteiras, para dar um exemplo flagrante, ou o próprio local onde as plantam, ou as podas radicais que se fazem só porque "é hábito" nos plátanos, matando-os aos poucos.

São bonitas, as árvores na cidade, mas seria bonito que os paisagistas e os urbanizadores se preocupassem em adequar as espécies aos locais, para depois os moradores não levarem com os ramos das árvores nas janelas e elas não se tornem um convite à ladroagem. Os próprios choupos, que como dizes resistem muito bem a ambientes poluídos, são hoje inimigos de um nosso bom amigo, o ar condicionado. Portanto, em resumo, as árvores sempre primeiro, mas se não for dar muito trabalho, que sejam adequadas aos locais onde são plantadas.»

 

Do nosso leitor Edmundo Gonçalves. A propósito deste meu texto.

Notas sobre o Focus Group e assim

Rui Rocha, 26.11.17

1 - É óbvio que o governo utilizou o estudo do focus group e o evento de hoje em Aveiro como instrumento de propaganda política. É, pois, uma imoralidade utilizar dinheiros públicos para financiar uma acção promocional descarada de Costa y sus muchachos.

2 - A validade da metodologia e a probidade de quem agora ou antes (Carlos Jalali ou Marina Costa Lobo) conduziu o estudo não estão em causa. Mas o que é claro é que os académicos não perceberam (ou não quiseram perceber) que uma coisa é a validade científica e outra, bem diferente, é a instrumentalização do seu trabalho para uma manobra de lavagem e promoção de imagem à custa do dinheiro do contribuinte. A intervenção de hoje de Jalali, focada na metodologia e na sua credibilidade, é bem o exemplo disso. Não é obviamente esse o ponto fundamental da discussão. É penoso ver alguém com créditos académicos prestar-se ao papel de idiota útil ao serviço dos propósitos do governo.

3 - O evento está, em todo o caso, morto e enterrado. Aquilo não funciona. Não há entusiasmo. Não há sequer aparência de contraditório que crie uma percepção de credibilidade. Nada daquilo é verosímil. Se o que Costa pretendia era projectar uma imagem de proximidade e transparência, tudo o que conseguiu provocar foi um enorme fastio. Não fosse a polémica prévia e ninguém teria suportado aquilo mais de 10 minutos. Assim, os mais resistentes terão chegado aos 15. Este modelo de comunicação não conseguiria entuasiasmar um exército de formigas ainda que lhes acenasse com um pacote de açúcar.

4 - O governo deu este fim de semana dois sinais claros de que se encontra numa situação fragilizada e que sente que perdeu o contacto emocional com os eleitores. Ontem, pôs todos os ministros na estrada, nas mais diversas iniciativas um pouco por todo o lado. Eduardo Cabrita esteve na inauguração do Centro Regional do Sistema de Alerta de Tsunamis, no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Centeno visitou a Alfândega do Aeroporto de Lisboa. Manuel Heitor, da Ciência e do Ensino Superior, foi a Matosinhos e a Braga para lançar uma nova iniciativa – «Manhãs Com Tecnologia». Hoje, foi o que se viu. Uma tentativa falhada de falar com o país em ambiente controlado, fazendo lembrar, nos propósitos e no contexto, as Conversas em Família de Marcello Caetano. Seguramente, não será pondo os membros do governo a esvoaçar como libelinhas tontas ou com iniciativas de comunicação postiças que Costa recuperará da imagem que, por sua inépcia, viu degradar-se nas últimas semanas.

Blogue da semana

Sérgio de Almeida Correia, 26.11.17

Fotografias, música e poesia. Imagens, sons e palavras que normalmente anunciam o dia e nos fazem começá-lo de um modo saudável, ao mesmo tempo calmo e reflexivo. É com esses três ingredientes que se faz um blogue que se deixa levar pelo vento, o que também funciona como motivo inspirador e convite à introspecção. Muito em razão desta última é ditada a minha escolha, porque é ela que também nos ajuda a caminhar. Por tudo isso, a minha escolha desta semana é "E o vento levar-nos-á", o blogue do Fernando Moura Santos.

'Casablanca': amor e liberdade

Pedro Correia, 26.11.17

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A retórica antinazi datou irremediavelmente muitos dos filmes americanos produzidos no tempo da guerra (1939-45). Até Chaplin, o mestre do mudo, caiu nesta armadilha na célebre cena final do seu O Grande Ditador (1940) – e foi quanto bastou para se perder uma obra-prima. Inversamente, o que faz a força perene de Casablanca (Michael Curtiz, 1942) é o facto de jamais ser um filme de propaganda óbvia ao esforço aliado no combate sem tréguas contra o III Reich. E no entanto não conheço outra película tão eficaz no apelo subliminar ao envolvimento de Washington no conflito.
Numa cena poucas vezes mencionada, Richard Blaine (Humphrey Bogart) pergunta ao pianista Sam (Dooley Wilson) que horas seriam em Nova Iorque. Pergunta aparentemente sem nexo, mas logo justificada pelo comentário adicional de Blaine: “Está toda a gente a dormir na América.”
 

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É uma frase emblemática. Corria o mês de Dezembro de 1941, eram as vésperas de Pearl Harbor, os americanos viviam ainda embalados pelo sonho da neutralidade que Philip Roth tão bem retrata no seu romance Conspiração Contra a América. Mas Blaine, o cínico Rick, dono do bar do mesmo nome em Casablanca, já se havia antecipado ao curso da História. Em 1935 fizera chegar armas aos abissínios que lutavam contra Mussolini, no ano seguinte ingressara nas Brigadas Internacionais em defesa da República espanhola. Ao contrário do que aparentava, era um homem de causas e capaz de se envolver até ao limite por elas. Esta dimensão política de Casablanca, que se me tem revelado em sucessivas revisões do filme, ultrapassa claramente as malhas do melodrama a que muitos gostariam de vê-lo confinado. E se algo sobrevive ao malogrado romance entre Rick e Ilsa Lund (deslumbrante Ingrid Bergman) é precisamente a batalha decisiva em que ambos apostam, também em nome do amor – neste caso, do amor à liberdade.

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“Agora só luto por mim. Sou a única causa que me interessa”, diz Bogart a Victor Laszlo (Paul Henreid), tentando aparentar cinismo por uma última vez. Nesta fase já ninguém acredita em tal fachada: há uma dimensão moral em Rick que de todo não existe no dúplice capitão Louis Renault (Claude Rains), sempre virado – nas suas próprias palavras – para “o lado de que sopra o vento”.
O “vento” daqueles tempos era o do cobarde colaboracionismo de Pétain – o velho marechal que se rendeu a Hitler e que surge em cartaz, no início do filme, contra o qual é assassinado um suposto membro da resistência francesa.
Bogart, o aventureiro de passado sombrio, e Bergman, a mulher dividida entre dois homens, não são figuras sem mácula, ao jeito dos “heróis exemplares” que o realismo socialista fornecia às massas. São gente de carne e osso, com os mesmos defeitos de qualquer de nós – e daí o facto de, tantos anos volvidos, continuarmos a identificar-nos com o destino deles. Rick, que jurava “não arriscar o pescoço por ninguém”, proclama afinal que o futuro do planeta importa bem mais do que “três pessoas insignificantes”. Ilsa, incapaz de voltar duas vezes costas à mesma paixão, segreda-lhe: “Terás de ser tu a pensar por nós.”
 
Rick assim faz. Entre o amor sem sombra de liberdade e a liberdade sem garantia de amor, optou por esta. Como se conhecesse os belíssimos versos de Sophia: “Terror de te amar num sítio tão frágil como o Mundo. / Mal de te amar neste lugar de imperfeição / Onde tudo nos quebra e emudece / Onde tudo nos mente e separa.”
Esta é talvez a maior lição que aprendemos em Casablanca: o verdadeiro amor é sinónimo absoluto de verdadeira liberdade.
 
 
Texto reeditado para assinalar o 75.º aniversário da estreia do filme, que hoje se assinala

Leituras

Pedro Correia, 25.11.17

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«Não existem demónios, menos ainda criaturas sobrenaturais, como as imagina a superstição popular. Os únicos diabos que receio são os diabos humanos. Conheço muitos que são bastante reais. Mas trazem fatos de lã. São uns sujeitos dignos, respeitadores da lei.»

Liam O' FlahertyO Denunciante (1925), p. 199

Ed. Publicações Europa-América, 1973. Tradução de José Saramago. Colecção Livros de Bolso Europa-América, n.º 72

frames da vida

Patrícia Reis, 25.11.17

O Pedro a cortar um texto na Grafinova, em pé, com o x-acto na mão, concentrado. Foi a primeira vez que o vi, fazia ele parte daquele grupo especial do Caderno 3 de O Independente.

Não nos tornámos amigos com rapidez, eu era apenas a estagiária. Foi o tempo. Pedimos desculpa um ao outro num certo almoço de bacalhau num restaurante de que o Pedro gostava em especial.

Rimos os dois às gargalhadas com recordações da vida amorosa de cada um de nós.

Mostrámos o orgulho devido com as conquistas dos nossos filhos, filhos com Maria no nome.

E depois pequenos frames da vida.

O Pedro a discutir músicas com o João Gobern.

O Pedro abraçado à Cila. À Ana Teresa. À Margarida.

O Pedro sério. Na televisão, na rádio, por escrito.

O Pedro com a Helena a rirem os dois, a grupeta reunida, num jantar ali ao lado, num restaurante, e eu a invejar tanta partilha e alegria.

Bolas, Pedro, podias ter avisado que isto ia ser tão curto. Podíamos ter feito aquela coisa estranha para a Egoísta, ou aquela proposta igualmente estranha a uma fundação.

Podíamos ter feito tanto, e agora não há tempo. Tu fizeste muito e quem te conheceu só pode mesmo chorar-te. Desculpa se não te respondi com mais pressa, desculpa se a vida nos atrapalhou em algum momento.

Agora resta-me dizer, até já. Ficamos mais pobres sem ti.

Contornar a censura

Pedro Correia, 25.11.17

Pedro Alvim (1935-1997), também poeta, foi um dos mais brilhantes jornalistas portugueses. Na última década do salazarismo, distinguiu-se entre os profissionais da escrita que souberam contornar com talento e profundo conhecimento da língua portuguesa as severas malhas da censura.

Um dos melhores textos deste autor, hoje infelizmente tão esquecido, foi publicado há meio século, a 26 de Novembro de 1967, no Diário de Lisboa. A propósito das trágicas inundações ocorridas nas horas anteriores em Lisboa, Loures, Odivelas, Alenquer, Arruda dos Vinhos e Vila Franca de Xira que provocaram largas centenas de mortos e um número incalculável de desalojados, sobretudo nos amontoados de barracas que então circundavam a capital. Uma tragédia que nem o regime ditatorial conseguiu esconder, embora os censores de turno tenham tentado tudo para limar arestas, proibindo a difusão das imagens mais chocantes e feito várias emendas a prosas e títulos.

Alvim deu a volta ao texto com inegável mestria, fintando a censura da forma que passou a reproduzir numa das mais belas e pungentes crónicas desde sempre publicadas na imprensa portuguesa. Com a devida vénia à sua memória. E o meu agradecimento à Alice Vieira, também grande escritora e jornalista, que o recordou aqui.

 

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Os mortos e os fósforos

 

Era ao cair da tarde – e havia mortos.

Todos muito juntos, enlameados, compridos.

Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de Inverno.

Eu estava ao telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades.

Ia escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à pressa, abreviados, secos.

Um bombeiro, uma pilha nas mãos, tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada, hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize.

“Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”

E teimava, teimava em ser exacto, pedia, pedia ao bombeiro que mantivesse o foco da pilha sobre o papel em que tinha escrito os nomes dos mortos. E carregava nas moedas de cinco tostões, mantinha a ligação telefónica, identificava-os um a um.

O tempo passava, o tempo passava sem luz eléctrica, e eu estava sempre ali ao telefone, e os familiares dos mortos iam entrando, (que longa bicha!), identificavam os mortos, os nomes dos mortos eram-me dados, e eu dava os nomes dos mortos ao jornal.

Ouvia o choro dos vivos, ouvia o silêncio dos cadáveres, ouvia a noite lá fora – Depressa! Depressa! – diziam-me do jornal – Depressa que é para a terceira edição!

Iam-me faltando as moedas de cinco tostões, sentia-me aflito, pedia que me trocassem moedas de cinco, dez escudos.

E os nomes dos mortos continuavam na minha boca, lidos um a um, o mais exactamente possível.

Como um preito de homenagem.

Como um choro.

Chegavam aos meus ouvidos pormenores da tragédia, da chuva, da lama.

Eu carregava nas moedas de cinco tostões, afligia-me com o seu desaparecimento contínuo e, automatizado já, ia lendo os nomes dos mortos à luz da pilha.

Escuridão total.

– Acabou-se a carga! – disse o bombeiro.

O suor tomou-me o corpo todo – e os meus dedos amarfanhavam o papel com os nomes dos mortos ainda não transmitidos.

E agora? E agora? Agora que a pilha tinha dado de si – que fazer, que fazer?

– Acendam fósforos! – gritei – Estes fósforos!

E assim foi: à chama tremida do enxofre, dos fósforos, acesos um a um, fui lendo o nome dos mortos que restavam, que estavam ainda no papel, sem o mais pequeno deslize.

“Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília“.

Quando, finalmente, abandonei o telefone, ganhei a rua, respirei a noite, apeteceu-me loucamente um cigarro, um cigarro que me turvasse, um cigarro para esquecer aquilo tudo.

Meti, os pulmões ansiosos, um cigarro na boca – mas não pude, não pude fumar, não pude acender o cigarro: os mortos tinham queimado todos os meus fósforos.

 

Pedro Alvim

Pensamento da semana

Sérgio de Almeida Correia, 25.11.17

A dificuldade nem sempre está no problema.

Tirando os que não têm remédio, como a morte, que sabemos que há-de chegar embora não se saiba exactamente quando, nem como, o que de certa forma a retira do rol dos problemas que carecem de resolução, mesmo quando se é apanhado desprevenido, o ângulo de abordagem, o modo como o problema é analisado e as hipóteses de solução que se encaram são pontos de partida para a sua ultrapassagem. E mudam tudo.

A procura da solução pode ser desconfortável, sem com isso deixar de ser sempre bem mais estimulante do que o simples abandono. A solução de um problema é uma outra forma de concretizar um sonho. Não há sonhos cómodos (a não ser nos sonhos).

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana

A morte

Helena Sacadura Cabral, 24.11.17
 

Morreu hoje o Pedro Rolo Duarte. Era uma morte anunciada para quem, como eu, viveu há cinco anos, exactamente a sua história. 
Talvez por isso, o meu primeiro pensamento vá para a sua mãe, a quem a vida acaba de roubar o bem mais precioso e, só depois, para o filho. Para este, haverá sempre uma lógica temporal, que não existe no caso da sua avó. Nenhuma mãe deveria, alguma vez, passar por isto.
Finalmente, o meu pensamento vai para os amigos que sempre lhe serviram de esteio e jamais o abandonaram. E eram muitos. Muitos, mesmo!
Conheci o PRD há muitos anos quando, com o Miguel Esteves Cardoso, o meu saudoso MEC, faziam aquela inesquecível revista chamada KAPA. E era eu quem lhes tinha sempre de cortar os orçamentos. Não foi, assim, um primeiro encontro fácil dado que era olhada como aquela que lhes cerceava os sonhos. Havíamos de, aos poucos, ir resolvendo esses problemas já que, com o lançamento da minha FORTUNA, passei a ter mais projectos para gerir. Mas ele e eu  havíamos de nos cruzar noutros aventuras.
Depois, amigos comuns juntaram-nos na GRUPA, esse conjunto de gente de quem eu podia quase ser a "avozinha", mas que me tem dado muito bons momentos. Aí conheci um outro Pedro, que o tempo havia transformado e enriquecido. 
Era um homem livre, que dizia o que pensava, uma cabeça que não parava, um comunicador excelente, uma verdadeira força da natureza. Não conseguiu vencer essa besta que é o cancro. Mas julgo poder dizer que na batalha da vida, ela a dominou e terá sido um homem com muitos momentos felizes!

Tão perto e já tão longe

Pedro Correia, 24.11.17

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 Pedro Rolo Duarte (Foto: Leonardo Negrão)

 

Há notícias que nos atingem como murros no estômago. Nunca estaremos preparados para elas.

Acaba de acontecer-me ao saber que o Pedro Rolo Duarte partiu de vez, sem avisar quase ninguém, aos 53 anos. Sabia-o doente, alguém me avisara há uns meses, como sempre sucede nesta cidade-aldeia, mas nunca imaginei que a doença fosse tão grave e tivesse tanta pressa em roubá-lo ao nosso convívio.

Conhecíamo-nos há 20 anos exactos. Estava eu na secção política do Diário de Notícias, como repórter parlamentar, e ele editava aquele que foi o mais inclassificável e fascinante suplemento da imprensa portuguesa, o DNa de boa memória – que viria a ter fim prematuro, às mãos de uma direcção do jornal incapaz de perceber que tinha ali uma pepita de ouro que nunca devia ter sido extinta. Vê-lo desaparecer doeu-me, como já tinha doído o desaparecimento do DN Jovem, espaço do jornal cultivado e editado pelo Manuel Dias em que se revelaram, ainda na adolescência, tantos actuais talentos da literatura portuguesa.

Prefigurava-se já ali, nessas mudanças abruptas, a presente agonia da nossa imprensa – consequência de demasiadas opções erradas de excessivos decisores medíocres.

 

O DNa – de que guardo com devoção quase religiosa os primeiros cem exemplares, novos como se tivessem saído agora da gráfica – foi um tesouro da imprensa portuguesa e talvez o mais precioso fruto do talento do Pedro Rolo Duarte na sua carreira jornalística impressionantemente longa e afinal dolorosamente fugaz. Ele teve o condão de conceber um conceito jornalístico difícil de etiquetar, mesclando o melhor da tradição com o melhor da inovação, dinamizando uma restrita mas brilhante equipa de infatigáveis colaboradores. Por lá passaram – em diferentes fases dessa década – o Francisco José Viegas, o Luís Osório, a Anabela Mota Ribeiro, a Sónia Morais Santos, o João Gobern, o Carlos Oliveira Santos, o Pedro Mexia, o José Mário Silva, o Carlos Vaz Marques, a irmã dele, Fátima Rolo Duarte, entre outros. Poucos mas bons.

 

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Na redacção, o Pedro era de poucas falas. Alguns, por lá, confundiam essa timidez natural com arrogância, nada dispostos a quebrar o gelo. Nunca senti essa dificuldade – e foi precisamente lá que ficámos amigos. Colaborei com gosto no DNa, à margem das minhas tarefas na absorvente agenda diária do jornal, e lembro-me de duas capas que assinei no suplemento – elegendo-as ainda hoje entre as peças que mais gostei de produzir em trinta anos de jornalismo: entrevistas com Mário Castrim, o decano dos críticos de televisão portugueses, e João Amaral, deputado do PCP e um dos mais brilhantes parlamentares que passaram pela sala das sessões da Assembleia da República.

 

Já acompanhava desde o início da década de 80, como leitor, o percurso do muito jovem Pedro Rolo Duarte - primeiro no semanário Se7e, depois no irrepetível Independente de Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas, e pela igualmente inclassificável revista K. Legou-nos largos milhares de textos, de todo o género e sobre todos os temas, espalhados pelas mais diversas publicações – herança que recebeu nos genes: os pais, António Rolo Duarte e Maria João Duarte, também jornalistas de profissão, inculcaram-lhe este saudável vício do qual nunca se libertou.

Chegou a integrar uma direcção do DN – de duração efémera, como aconteceu com quase todas desde a partida do nosso comum amigo Mário Bettencourt Resendes, também demasiado cedo desaparecido, deixando um lugar que nunca foi devidamente preenchido no nosso jornalismo. Depois fez-se à estrada, pedalando em pista própria, como sempre. Colaborou na televisão, publicou livros (guardo um aqui à mão, Noites em Branco, recolha de textos avulsos, com a escrita elegante, a suave mordacidade e a discreta ironia que nos habituou), abriu um blogue em nome próprio e regressou à rádio, paixão antiga e sempre renovada.

 

Encontrávamo-nos por vezes, no nosso bairro de Alvalade, em regra no Mercantina – um dos quatro ou cinco restaurantes que frequento em Lisboa – ou na Livraria Barata. Quando lancei o primeiro livro, em 2013, ele teve a amabilidade de me convidar para uma inesquecível entrevista a três vozes (ele, eu e o João Gobern) no seu programa Hotel Babilónia, da Antena 1: foi de longe a mais estimulante conversa jornalística que tive desde sempre, não como entrevistador mas enquanto entrevistado.

Ao contrário do que é mau costume entre nós, nunca lhe faltou capacidade de admiração. Lançou e promoveu vários jornalistas, com uma generosidade rara, e não se deixava contaminar pelo vírus da inveja: nisto, e se calhar só mesmo nisto, parecia pouco português.

 

Trocávamos uma correspondência esporádica e mantínhamos alguma cumplicidade blogosférica. Publiquei aqui no DELITO dois textos dele: o primeiro em Novembro de 2010, fez ontem sete anos; o segundo, no mês passado. Tão longe de imaginar que seria o último.

Ignorava a que ponto estava já debilitado quando dele recebi, a 27 de Setembro, uma calorosa mensagem em que dizia ter superado um sério problema de saúde que não especificou (nem eu o questionei sobre isso, nesta nossa contenção tão masculina que nos leva a contornar detalhes do reduto íntimo de cada qual) e aceitando o meu convite para escrever um texto neste blogue, aqui publicado a 5 de Outubro.

 

Tão perto - e já tão longe. Nunca estamos preparados para dizer adeus a quem parte demasiado cedo. Deixando tantos livros por ler, tantas viagens por fazer, tantos petiscos por partilhar com gente amiga de todas as idades e todos os quadrantes.

É assim, com um nó no estômago e a voz emudecida, que me despeço dele deixando um beijo terno a sua Mãe, um abraço fraterno à Fátima e uma palavra de alento ao filho, baptizado com o nome do avô. Tu, António, tens todos os motivos para sentires orgulho do teu pai.