Da incapacidade crónica para debater civilizadamente
Há uns dias, André Freire escreveu um artigo intitulado “Sete razões para não votar Fernando Medina nas autárquicas”. O artigo tece várias críticas à gestão camarária da capital, dando particular relevância às questões das obras públicas e da mobilidade, não se enredando em querelas ideológicas ou partidárias. Ainda assim, numa época em que as redes sociais potenciam o efeito de câmara de eco e contribuem para o entrincheiramento de partes em contenda ideológica e/ou partidária, que não se coíbem de fazer concursos de ortodoxia, passar certificados de pureza ou impureza ideológica e protagonizar purgas dos impuros que apresentem qualquer desvio ao que deva ser a linha orientadora da respectiva tribo política, não deixaram de surgir críticas ao artigo, em especial no mural do autor no Facebook, assentes em argumentos como os seguintes: “isto não é de todo uma postura de esquerda e fundamentada que nos tem feito crer como sendo a sua orientação”; “Esta gente de esquerda deviam (sic) ter cuidado no que escreve. Parece que estou a ouvir a cristas (sic)”; “O Sr. André Freire a fazer a política da direita! O povo não dorme e lhe irá dar a resposta em 1 Outubro de 2017...”
Dir-me-ão que, vindas de perfeitos desconhecidos, e atendendo aos níveis reduzidos de cultura democrática e pluralista e de preparação para o debate político civilizado do cidadão médio (se dúvidas houvesse a este respeito, as caixas de comentários dos blogs e jornais e as redes sociais esclareceram-nas), estas críticas não assumem especial relevo. Afinal, é pública e notória a hemiplegia moral, nas palavras de Ortega y Gasset, de que muitos sofrem, tornando-os incapazes de manter um debate civilizado com aqueles que perfilham outros pontos de vista (o mesmo Ortega y Gasset adoptava o perspectivismo, ou seja, a lógica tópica aristotélica, revitalizada no século XX pelo jurista alemão Theodor Viehweg, segundo a qual os diferentes pontos de vista sobre uma mesma realidade são complementares e as diferenças e peculiaridades, ao invés de obstaculizarem a procura da verdade, permitem captar certas porções da realidade). Contudo, às tantas surge uma conhecida historiadora, Irene Pimentel, que demole o artigo de André Freire não com argumentos, mas com esta prosa: “detesto todo o artigo, discordo dele, e nem percebo o interesse...”. Instada por André Freire a produzir argumentos, seguiu-se uma discussão em que Irene Pimentel passou o certificado de impureza, “Agora não me venha dizer que é de esquerda. Aliás fartei-me...”, ao que o autor do artigo replicou “já cá faltava essa da proprietária exclusiva e que passa certidões a dizer quem é e não é de esquerda!... passe bem minha senhora!”, e a historiadora treplicou “idiota mal criado. Sim, sou de esquerda. E deixe de me convidar para apresentar livros seus, por favor... Não se esqueça que eu tenho memória. Mas que mal educado, arrogante. Não passe bem. Vou eliminá-lo.”
Portanto, alicerçada na sua preferência ideológica ou partidária, Irene Pimentel sentiu-se no direito de purgar André Freire da sua tribo política, de o insultar e de revelar publicamente um convite privado que este lhe terá dirigido. Estamos a falar de alguém que, por defeito, deveria ter a capacidade de debater com elevação e não cair no insulto fácil. Infelizmente, parece-me que John Gray está certo ao considerar que a acepção oakeshottiana da política, que a entende como uma conversação, uma forma de acomodação de diferentes perspectivas, foi quase totalmente perdida. De facto, aquilo que Oakeshott classificava como política racionalista, a política do livro ou da cartilha ideológica, impera na política contemporânea, complementada por uma forte personalização da política que leva a que as tribos imponham ortodoxias, censurem heterodoxias, escondam e desculpem os defeitos dos seus membros e exaltem os dos membros das tribos opostas, sendo capazes de criticar ou defender uma mesma decisão ou atitude consoante a pertença ideológica ou partidária de quem a toma – como diria Sir Humphrey Appleby, “Where one stands depends upon where one sits”.
Existirá, porventura, alguma razão para que alguns partam para a discussão no debate público ou político a partir de um pedestal de superioridade moral a que se alcandoram? Creio que não. Alguns, à esquerda, ainda acreditam na possibilidade de uma ideologia científica, que julgam ser aquela que professam; outros, à direita, crêem que o alegado fim da história de Fukuyama lhes deu razão; muitos pensam estar do lado certo da história (como se esta fosse a Força do universo Star Wars); mas a esmagadora maioria considera-se moralmente superior apenas por mera convicção individual, um viés cognitivo que o neurologista Robert Burton explora em On Being Certain.
Infelizmente, na época em que vivemos, a humildade e a honestidade intelectual parecem não assistir a indivíduos que as deveriam fomentar e que, assim, acabam por se barricar em redutos assentes em racionalismos ideológicos ou meras convicções pessoais. O mesmo é dizer que em vez de utilizarem a força da razão, recorrem à razão da força. E como escrevi há uns anos, do debate num espaço público caracterizado pela cacofonia, onde a discussão é quase sempre dominada por surdos que sofrem de hemiplegia moral, (…) aos gritos uns com os outros, não pode surgir razão alguma.
Samuel de Paiva Pires
(blogue ESTADO SENTIDO)