Violência indomesticada
Desculpem-me se vos escrevo a partir de uma terra secreta. Se vos falo com a voz ingénua, voz simplista, voz naufragada, por uma visão qualquer de alguém que já não vê terra há muito, que já só procura o oásis ou a ilha deserta cheia da manga madura e carnuda e da sombra recortada pelas asas dos pássaros, irrequietos pincéis a desenhar a tarde de sol. É daí que vos escrevo para vos dizer que já há muito perdi noção dos dias, da resolução correcta dos problemas da chamada «vida real», do tempo em que é suposto vivermos - feito de resgates, transacções indevidas, muros, bombas e olhares funestos. Tempos houve em que lia com respeito e dedicação os fundamentos do direito, as bases da justiça e sua concretização num ordenamento jurídico, a luta entre o castigo e a censura do direito, a culpa, o crime, o dolo, e a «mente criativa» e retórica do senhor jurista.
Tudo isto já faz parte de um passado relativamente distante, em que na minha cabeça o idealismo ainda se fundia às séries de televisão nas quais, no final, o justo, o inocente, a vítima sempre levavam a melhor. Entretanto, os papéis burocráticos acumularam-se na minha mente e essa tal de «vida real» veio ter ao meu encontro - como comboio apressado a entrar na gare e a levar todos os passageiros desprevenidos - e conduziu-me para essoutro país feito de opiniões inocentes, desprotegidas, de quem fala como quem ama ou se indigna com o mundo, sem nada mais. É nesse espaço inocente, à beira bar plantado, feito de quem sente o justo (mas que também sabe como, quase sempre, o justo é injusto), que leio diariamente, como se se acumulasse à previsão do tempo ou ao signo astral, que «mulher tal foi morta pelo marido». Morta em Barcelos, morta em Lisboa, morta em Famalicão. Parecem notícias de Marte, mas são da Terra. Pior, da nossa terra.
No outro dia, em consequência de mais um massacre, que os jornais mostram com a avidez errada - menos da denúncia e mais do prazer mórbido da publicidade - dei por mim a voltar ao passado. Estava indignado. Como pode isto ser assim, de forma recorrente e impune - homens a pegar em facas, a pegar em revólveres, a pegar nos punhos e em palavras indevidas e a massacrar mulheres inocentes (ou mulheres culpadas, pouco importa). Abri o Código Penal, um livro que tantos «prazeres e penas» já me proporcionou, e naveguei até algumas «ilhas distantes»: o homicídio simples e sua pena, o homicídio qualificado e sua pena (pais e filhos matam-se com mais censura jurídica do que cônjuges, ao que parece), o homicídio privilegiado (que coisa tão bela, o ordenamento sensível ao temor do ciúme - misturado muitas vezes com o álcool, adiante-se -, às irreverências e desvarios do amor e da paixão que na literatura sempre fizeram tombar os corpos com graciosidade e que aqui também procuram acamar com penas as tragédias. Finalmente, o fatídico crime de «Maus Tratos e Infracção de Regras de Segurança», nome já tão adequado à violência doméstica (mas quem disse que o código penal tinha de comungar da poesia?) Artigo tão belo como poucos haverá, o art. 152, do qual resulta que, no pior dos casos, se matares a tua mulher terás 10 anos de prisão, quase o mínimo aplicável ao homicídio simples. Daí a «grande máxima» milenar: se é para matar, mata antes aqueles que conheces.
Sei que me dirão, sobretudo advogados de profissão, que se trata de uma leitura simplista (quiçá incorrecta) da forma como a justiça encara o problema da violência doméstica. Talvez. Não é que não vos avisasse desta minha imprecisão. Mas depois lemos coisas como: todas as dias 14 mulheres são vítimas de um crime de violência, em média 100 por semana. Os números da APAV também serão simplistas? Mas o meu ponto é este. Sempre existiram desde tempos imemoriais, e continuarão a existir, os chamados "crimes passionais" motivados pelos furores do amor, da paixão, do ciúme. Mas a questão, parece-me, é até filosófica: a violência é por natureza selvagem e «indomesticada» (mesmo a mais premeditada e dolosa). O equívoco está em vivermos numa sociedade que parece valorar o adjectivo «doméstico», quando chamado a qualificar a violência, como algo de menor importância, mais desculpável, uma violência de trazer por casa. Neste sentido, a violência doméstica seria uma menor violência porque a sociedade considera que nesses casos há muitos factores que interferem com as acções do agressor. Contudo, quanto mais não seja pelos números, pelas penas suspensas, pelas recorrências, por um certo sentido de impunidade, percebemos o preço que pagamos por valorar a violência doméstica como «violenciazinha», ao invés de fazer o contrário. A natureza indomesticada da violência no espaço doméstico ganha proporções ainda mais vorazes e selvagens, isto é, o facto desta violência se verificar no espaço da casa deveria ser tido não como factor desculpabilizante, mas sim agravante.
Enfim, gosto pouco de textos indignados e não é de todo o meu papel. Mas gosto ainda menos de viver numa sociedade que vai «desculpando» a gravidade destes crimes; numa sociedade em que se encoraja os homens a mostrar quem «manda lá em casa», quem é o chefe da família, ou quem «veste as calças»; uma sociedade machista e abrutalhada na qual a intimidade é um factor desculpabilizante e não agravante; uma sociedade do futebol e dos copos na qual as mulheres são aconselhadas a ter paciência quando o Benfica lá perde um pontito ou o seu homem chega a casa de grão na asa; em que os homens não sabem, ou não querem, proporcionar orgasmos às suas mulheres; numa cultura da submissão, do medo e do jantarinho pronto; numa vida de invasão de privacidade, do «vestes-te assim ou assado», do deixa ver a tua carteira, o telemóvel, o computador; uma cultura de estaladas, de berros, de empurrões; uma cultura do «onde é que passaste a tarde?», do ontem à noite fui às meninas; uma cultura de mulheres aconselhadas a vestirem-se como putas para segurar os maridos, uma cultura de costelas de Adão, de divórcios fechados à lei da bala, de humilhações sexuais e penas suspensas; uma cultura do «tenha paciência», do «aguente só mais um bocadinho»; uma cultura do fechar a boquinha e do abrir a boquinha; uma cultura do «uma lady na mesa, uma louca na cama»; uma cultura das nódoas negras, dos grunhos traidores que não admitem traição, das facas na garganta, dos berros constantes; uma cultura do «entre marido e mulher não se mete a colher», do «isto é normal», do «isto é mesmo assim», do olho à belenenses, da prepotência patriarcal do cidadão, do legislador, que vai achando tudo isto normal...
Tenho pouco jeito para textos indignados e disse-vos que vos escrevo a partir de uma terra secreta. Espero portanto que estas palavras vos encontrem bem e vos inspirem a pensar sobre o que é na verdade uma casa, o que deve ser um espaço doméstico, a pensar sobre essas 14 mulheres, essas 100 mulheres, essas casas em Barcelos, em Lisboa, no planeta Marte ou no meio do mar. Ingenuamente vos digo - e essa ingenuidade é um espaço intocado que conquistei escavando, resistindo, às matemáticas legalistas do Direito - contra a violência indomesticada só há uma coisa a fazer. Impedi-la, por todos os meios - leis, braços, palavras - já.
Carlos Natálio
(blogue ORDET)