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Delito de Opinião

John Hurt (1940 - 2017)

João Campos, 28.01.17

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Conta a lenda de que a célebre chestburster scene foi filmada sem que o elenco soubesse de que a criatura alienígena iria explodir em sangue e entranhas do peito de John Hurt - ideia de Ridley Scott para obter do elenco de Alien uma reacção mais genuína. O resultado foi uma das mais icónicas cenas do cinema tanto de horror como de ficção científica - e uma que o próprio John Hurt parodiaria oito anos depois no Spaceballs do lendário Mel Brooks. Hurt foi o oprimido Winston em 1984, o revolucionário Gilliam em Snowpiercer e o tirano Sutler em V for Vendetta; foi o Elephant Man de David Lynch e o Professor Broom dos dois Hellboy de Guillermo Del Toro (duas adaptações de banda desenhada tristemente subvalorizadas e esquecidas). Entrou, entre muitos outros filmes e inúmeras séries televisivas, em Only Lovers Left AliveTinker Taylor Soldier SpyMelancholiaJackie (a estrear em breve), Dr. Who, Merlin e The Storyteller. Emprestou também a sua voz inconfundível à animação - foi, por exemplo, o Aragorn da adaptação animada de The Lord of the Rings realizada por Ralph Bakshi em 1978. Não havia - não há - muitos actores com o seu carisma. John Hurt morreu hoje, aos 77 anos. 

O comentário da semana

Pedro Correia, 28.01.17

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«A única Odisseia que tinha era a da Europa-América, que pecava, tal como a Ilíada, pela fraca qualidade da tradução (na minha humilde opinião). Folhei a Odisseia de Frederico Lourenço há dias numa livraria e fiquei encantado, assim como o Livro Aberto e o livro Lugar Supraceleste, do mesmo autor.
Fiquei com vontade de levar tudo. A minha carteira é que não se convenceu. Vou seguir o conselho do ex-Presidente do Supremo Tribunal, "qualquer coisa" Noronha. Comprá-la-ei aos bochechos.

Há dias numa jantarada entre vários camaradas não consegui defender, eficazmente, a pertinência da utilidade da filosofia e da cultura, em geral. Eles, os meus confrades todos das ciências ditas exactas. Ocorreu-me dizer apenas que a filosofia ensina-nos o caminho da sabedoria, sendo esta o bom modo de dar uso à inteligência. De formular a pergunta acertada, onde reside, afinal, toda a Ciência (a resposta-verdade é passageira, a pergunta fica sempre).
Contudo apontaram-me para a televisão e o ar condicionado, e perguntaram-me: diga-me que obras filosóficas dão tanto consolo ao corpo como aquelas? Apeteceu-me partir os ditos aparelhos, mas preferi pegar no vinho que tinha à minha beira.

Afinal que utilidade têm as ciências ditas humanísticas no tempo de alta-tecnologia, em que o que conta é tudo o que se vê e palpa? Não teremos morto também o Espirito, quando decidimos matar Deus?
Como conseguimos convencer da maior utilidade, para a Humanidade, de uma Odisseia, uma Ilíada, um Corão, uma Bíblia, umas Cartas a Lucílio, quando comparadas com um Iphone, ou uma PS4?»

 

Do nosso leitor Borda d'Água. A propósito deste meu postal.

Liberalidades

Rui Rocha, 28.01.17

O Expresso revela hoje, em 1ª página, que o ex-líder do Montepio é suspeito de receber 1,5 milhões de euros do construtor José Guilherme. Não percebo o motivo para tal destaque. Ricardo Salgado recebeu do mesmo José Guilherme 14 milhões de euros e o ilustre causídico Calvão da Silva, que serviu depois a Pátria como Ministro do último governo de Passos Coelho durante uns dias e uma inundação em Albufeira, teve oportunidade de esclarecer em parecer fundamentado que:

"O espírito de entreajuda e solidariedade é um princípio geral de uma sociedade e é natural, pois, que um amigo possa e tenha gosto em dar sugestões, conselho ou informações a outro amigo, sendo que não é a circunstância de ser administrador ou presidente executivo de um banco que o priva dessa liberdade fundamental. E se alguém decide dar dinheiro de presente (liberalidade) em reconhecimento desse conselho, como José Guilherme deu a Ricardo Salgado, isso não põe em causa a idoneidade de quem recebe".

Cá está. Uma situação em tudo semelhante. A única diferença é o montante. Salgado e Guilherme eram mais chegados. Ou Salgado dava melhores conselhos.

É um nightmare!

Teresa Ribeiro, 28.01.17

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Hoje quando saía de casa olhei o céu e imediatamente saltou dos confins da minha memória a expressão "chove a potes". Sorri de mim para mim. Essas palavras faziam parte do fraseado da minha avó. Acho que já não as oiço há anos. Há expressões que carregamos de tanta ternura que quando as usamos é como se fosse um agasalho. Por isso gosto de as revisitar. No entanto o que se usa agora, mais que nunca, são os vocábulos de importação. Comecei por ouvi-los com mais insistência em reuniões de trabalho (kick off, meeting point, status, fee, statement, empowerment, boost, icebreaker, core business...). Mas agora é também quando penduramos o heterónimo que usamos no trabalho: entre amigos saltam frases como "foi um nightmare", "nada como um pouco de facetime", "ele é um risk taker", "precisamos de quality time".

O que se passa connosco? Já houve quem respondesse aos meus protestos insinuando que estou uma bota de elástico (oops! shall I say "elastic boot"?) e que globalização também é isto. A mim o que me parece é que continuamos tendencialmente saloios, sempre deslumbrados com o que é estrangeiro e prontos a descartar ou desvalorizar o que é nosso. Se assim não fosse não haveria tanta gente a abraçar o Acordo Ortográfico sem pestanejar. No mundo empresarial, então, é um a ver se te avias. Como se resistir à adopção do "aborto", pelo menos até ver como isto fica, fosse um sinal de decadência. Whatever...

Ao Dr. Costa que deve pensar que está de camisola interior de alças na marquise de sua casa

Rui Rocha, 27.01.17

Vamos cá ver. O facto de o Dr. Costa ter uma visão dos mandatos que vai exercendo exclusivamente orientada para o afago do próprio ego, interesse e ambição pessoal define-o, mas não vincula os diferentes interlocutores que partilham o espaço político. O Dr. Passos Coelho, para além de, como todos nós, representar-se a si próprio conforme pode, foi eleito para dar voz no Parlamento a todos os que votaram no PSD. Quando o Dr. Passos Coelho pergunta ao Dr. Costa qual seria o valor do défice sem manobras de diversão, fá-lo porque entende que há uma parte significativa dos portugueses que gostava efectivamente de dispor dessa informação. E entende bem. Desde logo porque não sendo impossível obtê-la por outros meios, é importante que seja o primeiro-ministro a dizê-lo. E depois, porque sendo ele a dizê-lo é mais fácil contrastar a informação com a prosódia e proverbial fanfarronice do Dr. Costa. Por isso, não sendo propriamente uma surpresa que o Dr. Costa recuse responder ou que remeta uma resposta para quando o "Diabo chegar" (o estilo chocarreiro e velhaco é tão natural ao Dr. Costa como a própria transpiração), não é demais sublinhar que tal constitui uma óbvia e grave falta de respeito pelos princípios democráticos e pelos eleitores, Ora, se não se pode esperar da legião de pataratas comprados pela política de reversões (que são aliás, embora não façam ideia, os principais destinatários dessas faltas de respeito), nem do tutor com residência oficial em Belém, nem muito menos da 2ª triste figura do Estado, que alguma vez levantem a voz para colocar o Dr. Costa no seu devido lugar, é importante que não sejamos cúmplices por omissão e que não deixemos passar a situação em claro. É evidente que o meio exige contenção e que não é possível descrever aqui o Dr. Costa com todas as letras. Mas é obrigatório, pelo menos, que fique registado que o Dr. Costa se comporta como um bandalho. 

Da arte do possível

Pedro Correia, 27.01.17

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«O ainda jovem Mario Vargas Llosa perguntou certa vez a Jorge Luis Borges, numa entrevista para a televisão francesa, o que era para ele a política. O grande escritor argentino deu-lhe uma resposta lapidar: "É uma das formas do tédio." Esta frase reflecte exemplarmente o carácter fastidioso da vida política, que só pode ser protagonizada com eficácia por quem sinta genuína vocação pela condução dos destinos de uma determinada comunidade - a nível de freguesia, município, região ou país - sem temer os choques que o exercício da governação sempre enfrenta.

A política é a arte do possível aplicada num momento muito concreto e numa circunstância muito específica: compete aos intelectuais como Borges, sonhadores e visionários por natureza, imaginar outros mundos, imunes à implacável e entediante lógica dos factos. Não admira que uma das primeiras recomendações que os políticos veteranos costumam dar aos seus jovens colegas é a de ajustar os desejos às realidades: em política, raras vezes compensa ter razão antes do tempo.»

 

Excerto do verbete POLÍTICA, do livro Política de A a Z

(edição Contraponto, 2017)

'Política de A a Z': sala cheia

Pedro Correia, 27.01.17

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Não me lembro, sinceramente, de uma sessão de apresentação de um livro tão concorrida no piso 7 do Corte Inglés, de onde se desfruta um dos panoramas mais belos de Lisboa. Ontem a sala encheu-se na apresentação da Política de A a Z, o dicionário enciclopédico que a editora Contraponto - pertencente ao grupo Bertrand-Círculo - apresenta como "um guia para compreender todos os segredos da política" e considera "altamente recomendado para políticos". Mas também para jornalistas, líderes de opinião, estudantes e cidadãos em geral - permito-me acrescentar, como co-autor desta obra, que tem 333 entradas. De Absolutismo a Zé-Povinho.

Havia deputados, autarcas, escritores, vários jornalistas, muita gente amiga. Tive o gosto de encontrar por lá companheiros de diversas etapas profissionais e quatro colegas de blogue - a Inês Pedrosa, a Teresa Ribeiro, o Diogo Noivo e o Luís Naves. E também leitores do DELITO, que gosto sempre de conhecer nestas ocasiões.

 

Foi igualmente com imenso gosto que vi dois políticos que muito estimo acederem ao meu convite para apresentarem a Política de A a Z: José Ribeiro e Castro, que foi deputado logo na primeira legislatura democrática e presidente do CDS, e António Galamba, ex-secretário nacional do PS, ex-deputado e último governador civil de Lisboa. Dois benfiquistas que merecem o maior respeito do sportinguista que escreve estas linhas. Por pensarem pela própria cabeça e nunca terem hesitado em remar contra a maré dentro dos seus próprios partidos, dando assim genuínas lições de cidadania. Agradeço aqui as palavras lisonjeiras e porventura imerecidas que ontem proferiram, recomendando a leitura deste livro.

O Rodrigo Gonçalves e eu sublinhámos que uma das intenções da obra é colmatar uma lacuna do mercado editorial português num ano em que tanto se falará em política, por cá e lá fora. A propósito da nova administração norte-americana, dos processos eleitorais em França, Holanda e Alemanha, das eleições autárquicas portuguesas e do centenário da Revolução de Outubro na Rússia.

 

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A sessão terminou quase duas horas após as primeiras pessoas terem chegado ao sétimo piso do Corte Inglés. E depois de uma longa sessão de autógrafos, etapa que tanto parece maçar alguns autores mas que protagonizo sempre com muito agrado (este é já o meu quarto livro). Porque me recorda sempre quando estava eu do lado de lá, na fila dos autógrafos, para conseguir a assinatura de alguém que admirava ou estimava.

Hei-de falar disso aqui muito em breve. Para já, fica a minha recomendação para que espreitem esta Política de A a Z. Se me permitem a imodéstia, sou capaz de apostar desde já que vão gostar.

Música recente (65)

José António Abreu, 27.01.17

 Rita Wilson, álbum Rita Wilson.

Imensos actores cantam, outros tocam banjo. Rita Wilson (que, com Tom Hanks, forma um dos casais do mundo do show business com que é mais fácil simpatizar) será apenas mais um exemplo. Mas canta bastante bem, neste seu segundo álbum, ao contrário do que aconteceu no primeiro, até escreveu as letras e, honestamente, hoje apetece-me algo alegre e inconsequente.

 

(É provável que esta tendência para associar alegria a inconsequência diga muito sobre mim.)

Síndrome de Stendhal e tal

Bandeira, 27.01.17

José Bandeira

(Foto: Um homem atacado pela síndrome de Stendhal em plena Santa Croce, num momento místico captado por este seu criado. A igreja está escura para que não se veja o quanto é feia.)

O grande crítico vitoriano John Ruskin (a quem por vezes acendo velinhas e cuja foto quero muito em versão magneto de frigorífico) diz que a basílica florentina de Santa Croce não passa de uma espécie de mal amanhada despensa de frescos, túmulos e turistas, não forçosamente por esta ordem. O alvo dele é praticamente tudo o que não passou pelo crivo do arquitecto original, Arnolfo di Cambio, cujo estilo aprecia e ao qual, num rasgo de genialidade que ainda hoje me tira o sono, deu o nome de... Arnolfo-Gótico.

Permita, galerníssimo leitor, que cite Ruskin em Mornings in Florence (tradução caseira):

“[o leitor] Regressará a casa com a vaga impressão de que Santa Croce é, de algum modo, a mais feia igreja gótica em que alguma vez pôs os pés. Bom, de facto assim é (…)”

E pronto, no que aos ingleses diz respeito é case closed.

Mas de Stendhal, que não era crítico de arte, vitoriano muito menos e as más-línguas chegam a jurar francês, dir-se-ia que apreciou Santa Croce, que foi o primeiro local turístico que visitou, pelo que percebo das suas notas de viagem, aquando de uma visita à cidade toscana. Tanto assim que, em saindo da basílica, o autor do jamais concluído O Rosa e o Verde (cores que, digo-o a título de curiosidade, abundam nos mármores florentinos), trocou os passos, sofreu uma espécie de vertigem, quase desfalecia. A citação que se segue é traduzida de Naples, Rome et Florence:

“Havia atingido aquele ponto emocional onde se cruzam os sentimentos apaixonados e as sensações celestiais que nos dão as Belas-Artes. Em saindo de Santa Croce, sofri um acelerar do coração, aquilo que em Berlim chamam 'nervos'; a vida exauria-se dentro de mim, caminhava com receio de cair.”

O fenómeno, que atingia um sem-número de outros visitantes de Florença, depressa se tornou conhecido como “Síndrome de Stendhal”; e no Ospedale di Santa Maria Nuova inaugurou-se um serviço – que viria a tornar-se muito conceituado – dedicado ao estudo dessa estranha condição clínica que atinge aqueles que sofrem os efeitos da exposição excessiva a obras de arte. Ignoro se o serviço ainda funciona, a bem da tradição espero que sim, se bem que continue a achar que o mal de Stendhal era falta de brioches e cappuccino.

“E como… ahm… como ultrapassou Stendhal a desagradável situação?”, ouço perguntar, de Moleskine e caneta em riste, o plantivo leitor, recordado de haver sentido algo de semelhante numa exposição de aguarelas de um Artista Local na junta de freguesia do seu bairro.

Pois ultrapassou-a, respondo eu, sentando-se num banco e lendo poesia – à época, o ansiolítico mais eficaz, até porque se podia tomar com álcool. Muito álcool.

 

Viagem ao Egipto (19).

Luís Menezes Leitão, 27.01.17

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Muito perto do Vale dos Reis, encontra-se o templo da rainha Hatchepsut, a única mulher que assumiu no Egipto a dignidade de faraó. Mulher de Tutmés II, quando ele morreu, em lugar de se limitar a assumir a regência em nome do seu enteado Tutmés III, decidiu ela própria coroar-se faraó, passando a governar o país.

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Em sua homenagem foi construído este magnífico templo, estando a rainha representada como qualquer outro faraó, incluindo com uma barba postiça.

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O reinado de Hatchepsut não foi, no entanto, aceite pelo seu enteado, Tutmés III, que, quando lhe sucedeu, mandou apagar todas as representações da madrasta, querendo eliminar o seu reinado da memória colectiva. Tanto foi assim que o calendário que mandou elaborar transita directamente do reinado de Tutmés II para o de Tutmés III, apagando à maneira orwelliana o reinado de Hatchepsut da história do Egipto.

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Tutmés III não se atreveu, no entanto, a desafiar os sacerdotes, destruindo o templo que a rainha tinha querido construir. E assim este magnífico templo permanece até aos nossos dias, recordando para a posteridade a corajosa história de uma mulher se atreveu a assumir um cargo até então reservado aos homens.

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Trump

José António Abreu, 26.01.17

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Alguém já deve ter feito um estudo relacionando o nível de riqueza dos países e o nível de proteccionismo das respectivas economias. Confesso desconhecê-lo. Estou, porém, convencido de que, a prazo, o proteccionismo nunca cria riqueza. Quando muito, é útil para dar algum tempo de adaptação a sectores específicos, de modo a evitar mudanças demasiado bruscas. Nenhum regime fortemente proteccionista é verdadeiramente rico (exemplo-limite: a Coreia do Norte) e, no mundo actual, baseado na tecnologia e no conhecimento, o proteccionismo é uma táctica suicida para economias pequenas e mal desenvolvidas (como a portuguesa).

 

Os Estados Unidos não têm nem o problema da dimensão (o PIB norte-americano representa cerca de 24% do PIB mundial) nem o de constituírem uma economia subdesenvolvida. Na realidade, numa economia tão grande, tão variada, tão baseada no consumo (68% do PIB) e tecnologicamente tão avançada como a norte-americana, é perfeitamente possível que medidas proteccionistas dêem origem a recuperação do emprego e aumento dos salários – durante uns tempos. Depois os preços tenderão a subir, o dólar a valorizar-se (com péssimas consequências para a sustentabilidade das dívidas de vários países periféricos), o consumo a travar, as exportações a diminuir (tanto pelo aumento dos custos de produção como pela imposição de tarifas aos produtos norte-americanos por parte de outros países), a imigração a aumentar (o efeito negativo na economia mexicana será imediato), o nível de inovação a descer, o investimento estrangeiro a hesitar, o mercado de capitais (assente em empresas multinacionais) a ressentir-se. Já para não mencionar o surgimento de dificuldades logísticas ou até mesmo político-logísticas: alguns materiais necessários para fabricar certos produtos obtêm-se apenas em países específicos (a China produz 85% dos metais de terras raras - como o neodímio e o lantânio - essenciais para o fabrico de smartphones e computadores) e uma deterioração das relações internacionais poderá dificultar o acesso a eles. (Vejam-se, por exemplo, as implicações de transferir a produção do iPhone para os Estados Unidos.) Enquanto isto for acontecendo, países mais fracos enfrentarão tremendas dificuldades (o México encontra-se prestes a ficar numa posição similar àquela em que Portugal se encontraria se perdesse o acesso livre ao mercado europeu) e a economia mundial também.

 

Mas Donald Trump está apenas a fazer o que prometeu. Na verdade, está até a fazer o que sempre defendeu. Comprovando a teoria (tão injustamente atacada) de que se pode ler a Playboy pelos artigos, parece que no interior do governo alemão tem andado a circular a edição de Março de 1990. Trump - que, pelos vistos, não gosta apenas de gatinhas (pussies), mas também de coelhinhas - era o entrevistado. E não tinha dúvidas: os problemas da economia norte-americana (no início de uma década de excelente desempenho) tinham origem nas importações de produtos japoneses e alemães, tornados competitivos através de subsídios dos respectivos governos, os quais ganhavam a folga para os pagar devido ao facto de serem os Estados Unidos a assegurar que os dois países não eram «removidos da face da Terra em cerca de 15 minutos». Trump acusava japoneses e alemães de roubarem o amor-próprio dos norte-americanos e terminava dizendo que «os nossos aliados lucram biliões lixando-nos». De então para cá, apenas necessitou de acrescentar China, México e, suponho, Coreia do Sul à lista dos seus ódios de estimação. Para Trump, tudo assenta em análises custo-benefício simplistas, feitas sempre numa perspectiva de curto prazo. Trata-se de uma excelente receita para o desastre. Que ele esteja a posicionar-se para incentivar o desmembramento da União Europeia, de modo a forçar acordos bilaterais a partir de uma posição de força que as condições actuais não lhe providenciam, só pode reforçar os motivos de preocupação.

 

Há um ponto, todavia, em que é necessário elogiá-lo. Um ponto que até ajuda a explicar por que venceu as eleições. Nos primeiros dois dias, Trump reuniu-se com líderes de grupos industriais e com sindicalistas. Nas conferências de imprensa diárias, Sean Spicer, o porta-voz da Casa Branca, fez questão de realçar que vários deles nunca tinham estado na Sala Oval e que alguns nunca haviam sequer entrado na Casa Branca. Para um cidadão desempregado, ou num emprego de baixo rendimento, que via as estrelas de Hollywood descreverem, nos programas de Stephen Colbert ou Jimmy Fallon, as festas e os jantares na Casa Branca em que haviam participado, isto é um tremendo sinal. Os encontros de Trump podem não passar de demagogia ou significar o pontapé de partida para uma crise mundial. Para essas pessoas, contudo, marcam a diferença. Barack e Michelle Obama eram elegantes, politicamente correctos, excelentes oradores e dançarinos - o epítome do cosmopolitismo. Mas Trump está a lutar por eles. Não há piada desdenhosa ou crítica mal fundamentada capaz de vencer esta ideia.

Já li o livro e vi o filme (169)

Pedro Correia, 26.01.17

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EXODUS (1958)

Autor: Leon Uris

Realizador: Otto Preminger (1960)

A saga do regresso dos judeus à Terra Prometida após dois mil anos de perseguições deu origem a este monumental romance, o maior sucesso de vendas nos EUA desde E Tudo o Vento Levou. Os bons desempenhos de Paul Newman e Eva Marie Saint não dão grande alento ao filme, mais conhecido pela banda sonora de Ernest Gold.

De Belém, com afecto

Diogo Noivo, 26.01.17

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O conceito "pós-facto" já entrou no léxico diário. Trump é a epítome desse mundo detestável onde a realidade é torcida e retorcida com o intuito de servir agendas próprias, ignorando os interesses nacionais e, por definição, os factos. Cá, em Portugal, não temos disso. Ou se calhar temos, mas a coisa é menos grave porque é feita com abraços, afecto e votos de saudinha a quem passa.